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quinta-feira, 23 fevereiro 2023 07:04

A problemática da fundamentação da proposta de lei das organizações sem fins lucrativos e a salvaguarda da liberdade de associação

Escrito por

JoaoNhampossanovaa220322

Contextualização

 

O Conselho de Ministros elaborou e aprovou a proposta de lei das organizações sem fins lucrativos (Proposta de Lei das OSFL) tendo submetido à apreciação da Assembleia da República no dia 27 de Outubro de 2022.

 

Essa Proposta de lei das OSFL é, fundamentalmente, concebida pelo Conselho de Ministros como um acto ou processo de revisão da Lei n.º 8/91, de 18 de Julho (Lei das Associações) e do Decreto n.º 55/98, de 13 de Outubro, que cria o quadro legal que define os critérios da autorização, objectivos a atingir e os mecanismos de actuação das Organizações não Governamentais Estrangeiras em Moçambique (ONGs Estrangeiras).

 

Desde que a mesma Proposta de Lei das OSFL foi dada a conhecer ao público em geral e as organizações da sociedade civil em particular tem sido objecto de acesos debates públicos na perspectiva de contestação da mesma, principalmente, pelos principais visados que são as organizações sociais de advocacia.

 

O processo de revisão legal obedece, regra geral, aos preceitos da Constituição da República de Moçambique e a determinados critérios que justificam a razoabilidade e importância desse exercício para a resolução de um problema fundamental que é de difícil resolução, seja por existência de um vazio legal na matéria em causa, seja porque a legislação em vigor não está adequada para responder aos desafios da actualidade de diferente natureza que se pretende regular.

 

É, pois, por isso que deve haver estudos feitos para sustentar essa revisão, bem como identificação da metodologia que a revisão legal vai obedecer, a apresentação da sua fundamentação e a exposição dos principais objectivos que se pretende alcançar com a mesma revisão legal. São estes os elementos que o presente artigo traz à reflexão no que respeita à Proposta de Lei das OSFL que é percebida pelo seu proponente como um processo de revisão da Lei das Associações e do Decreto n.º 55/98, de 13 de Outubro que regula as ONGs Estrangeiras em Moçambique.

 

A Problemática

 

A proposta de Lei das OSFL trata essencialmente de liberdade fundamental de associação, o que significa que em primeira linha a mesma proposta deve respeitar as garantias constitucionais sobre os direitos e liberdades fundamentais, bem assim os princípios e objectivos fundamentais do Estado que norteiam a Constituição. Qualquer modificação da legislação ordinária que regula a liberdade de associação tem de ter como finalidade adequá-la à realidade constitucional e às dinâmicas da protecção dos direitos humanos.

 

No entanto, não se percebe qual a metodologia adoptada para a elaboração da Proposta de Lei das OSFL, tanto é que não são apresentados os estudos metodológicos que serviram de base para a elaboração da mesma proposta. Na fundamentação, resulta que a Lei das Associações em vigor se mostra desajustada da realidade, sendo necessária a sua revisão. No entanto, não é demonstrada a investigação levada a cabo para se chegar a essa conclusão, nem se demonstra em que medida a Proposta de Lei das OSFL resolve o alegado problema de desajustamento da realidade por parte da Lei das Associações em vigor.

 

Estranha e curiosamente, da fundamentação da Proposta de Lei das OSFL resulta ainda que: “A revisão antecedeu a um vasto processo que iniciou em Agosto de 2008, abrangendo todo o território nacional, chegando a ser depositada na Assembleia da República em 2017, onde não foi apreciada, justificando-se a sua urgente aprovação pela necessidade de adequar o regime das Organizações Sem Fins Lucrativos à actual conjuntura política, económica e social do País.”

 

Porém, infelizmente, esta asserção não constitui verdade, uma vez que a Proposta de Lei das OSFL foi elaborada e aprovada pelo Governo até à efectiva submissão à apreciação da Assembleia da República, sem qualquer participação pública relevante das organizações da sociedade civil, principalmente das organizações sociais de advocacia, para além de que não é resultado do processo de revisão que iniciou em 2008 com término em 2017. Aliás, um dos maiores défices desta Proposta de Lei das OSFL é a falta de participação pública que reflecte indubitavelmente violação do princípio do Estado de Direito Democrático constitucionalmente consagrado.

 

No mesmo sentido, é deficitário o acesso à informação em torno da lógica deste processo de revisão sobre a legislação que regula o funcionamento das associações. Pelo que fica comprometida a credibilidade e legitimidade desta proposta de lei por apresentação de fundamentação com sérios sinais de falsidade e por dificultar o acesso à informação sobre as razões da revisão.

 

Mais do que isso, é que da fundamentação da proposta de lei das OSFL fica inequívoca a principal necessidade da revisão da Lei das Associações em vigor ao se referir que: “Na essência, pretende-se que os mecanismos e os procedimentos da actuação das ONGs previnam o branqueamento de capitais e o financiamento ao terrorismo, sendo necessário descortinar as fontes e origem de financiamento, mecanismos de coordenação, monitoria e avaliação, regime fiscal e aduaneiro, primazia de mão-de-obra local, formação e transferência de tecnologia a favor das comunidades beneficiárias dos projectos ou programas destas organizações.” A base da revisão da Lei das Associações através desta Proposta de Lei das OSFL é, pois, o branqueamento de capitais e o financiamento ao terrorismo, sem que tivesse sido feito um estudo e avaliação de risco das associações visadas sobre o envolvimento nesta matéria.

 

Concluindo

 

A fundamentação da Proposta de Lei das OSFL é de tal forma atabalhoada e problemática que deixa a entender que a mesma ainda carece de fundamentação no quadro do Estado de Direito Democrático para que seja legítima, razoável e idónea.

 

O branqueamento de capitais e o financiamento ao terrorismo é que constituem o pretexto da revisão do regime jurídico das associações sociais com vista a marginalizá-las e limitar arbitrariamente a liberdade de associação e o exercício da cidadania.

 

Até ao presente momento não se percebe as razões da revisão, bem como os objectivos da mesma à luz da salvaguarda da liberdade de associação nos termos constitucionalmente previstos. Da fundamentação da Proposta de Lei das OSFL não é possível vislumbrar as incongruências que o regime jurídico em vigor sobre associações apresenta para justificar uma revisão nos termos ora propostos pelo Governo de Moçambique.

 

Por: João Nhampossa

Human Rights Lawyer

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

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