O Ministério Público é um dos principais garantes da legalidade no Estado moçambicano. De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 233 da Constituição da República de Moçambique (CRM) e no n.º 1 do artigo 1 da Lei Orgânica do Ministério Público e Estatuto dos Magistrados do Ministério Público aprovada através da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, o Ministério Público constitui uma magistratura hierarquicamente organizada, subordinada ao Procurador-Geral da República.
De entre outras funções, o Procurador-Geral da República presta informação anual à Assembleia da República (AR) sobre o estado geral do controlo da legalidade no País. O que deve fazer em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 238 da CRM, dos n.ºs 1 e 2 do artigo 20 da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro e artigo 204 da Lei n.º 17/2013, de 12 de Agosto, que aprova o Regimento da Assembleia da República de Moçambique.
Nos dias 19 e 20 de Abril de 2023, a Procuradora-Geral da República foi à Assembleia da República prestar informação sobre o estado geral da legalidade e, quiçá, da justiça em Moçambique referente ao ano de 2022.
No âmbito da prestação da informação anual à Assembleia da República sobre a actividade do Ministério Público, a Procuradora-Geral da República deve, nos termos do n.º 2 do artigo 20 da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, abordar o estado geral do controlo da legalidade focando essencialmente, entre outras, as seguintes matérias:
a) Aspectos específicos relativos ao controlo da legalidade e direitos humanos;
b) Índices de criminalidade, medidas de prevenção e seu combate;
c) Aspectos relevantes das funções do Ministério Público no âmbito da administração da justiça, com salvaguarda do segredo de justiça;
d) As reformas necessárias para uma maior eficácia da acção da justiça;
Perspectivas para o melhor desenvolvimento do Ministério Público;
Importa aqui lembrar que há vários anos e com tendência crescente que pairam na sociedade muitas questões complexas e polémicas sobre a legalidade das limitações sobre o livre exercício da cidadania, com destaque sobre o exercício do direito à liberdade de manifestação contra a má governação e gestão do bem público no geral e contra as violações dos direitos humanos.
Facto estranho e preocupante é que a Informação Anual da Procuradora-Geral da República à Assembleia da República quase que ignora a referência de aspectos e situações preocupantes da sociedade relativamente à violação da legalidade que tem sido não apenas recorrente, mas gritante, chegando a representar violação de direitos e liberdades fundamentais no contexto da limitação ilegal do direito à liberdade de manifestação, em que a brutalidade policial está praticamente institucionalizada como a forma mais eficaz do Estado para reprimir os cidadãos que ousam manifestar contra a má gestão do bem público e violação de direitos humanos.
Curiosamente, a Informação Anual da Procuradora-Geral da República à Assembleia da República parece mais uma acção de natureza política pouco séria em que basta a apreciação positiva dos deputados do partido no poder na Assembleia da Repúblico para que se considere uma informação anual que responde à questão da legalidade e da justiça no País. Não parece que a Procuradora-Geral da República esteja, de forma responsável, a prestar contas ao povo vítima das grosseiras ilegalidades e injustiças.
Na verdade, são sobejamente conhecidos os inúmeros casos de restrição ilegal ou arbitrária do exercício do direito à liberdade de manifestação e da liberdade de expressão com recurso ao abuso de poder por parte das autoridades, nos quais se destacam a Polícia da República de Moçambique (PRM) e os municípios, sobretudo os governados pelo partido no poder, em que se destaca o Conselho Municipal de Maputo.
Na sequência desses actos arbitrários e abusivos contra o direito à manifestação e liberdade de expressão e de imprensa, os cidadãos foram vezes sem conta detidos, vítimas de agressão física, baleados e sujeitos a maus tratos. Esses casos sempre foram objecto de diversos debates públicos nos órgãos de comunicação social, incluindo nas redes sociais, fundamentalmente a título de denúncia para que quem de direito pudesse agir em conformidade, neste caso o Ministério Público, considerando as suas funções constitucionais de garante da legalidade.
Ora, não obstante o direito à liberdade de manifestação, que está intimamente ligado à liberdade de expressão, enquadrar o leque dos direitos humanos, na vertente dos direitos políticos e civis e, acima de tudo, estarem constitucionalmente consagrados como direitos e liberdades fundamentais conforme se vislumbra dos artigos 48 e 51 da CRM e nos principais instrumentos internacionais de direitos humanos de que Moçambique é parte; o Ministério Público não revela no seu informe anual dados esclarecedores sobre a sua vigorosa actuação no sentido de repor a legalidade violada e efectivamente responsabilizar as autoridades que arbitrariamente limitaram os direitos e liberdades em referência, pela violação de outros direitos humanos e da legalidade, o que tem alimentando a impunidade com uma espécie de chancela do Ministério Público, que pouco faz para a promoção e protecção do direito à liberdade de manifestação.
Não são conhecidas as acções concretas e fortes deste órgão de justiça, garante da legalidade, para acabar com o abuso de poder, intimidação e outras formas de limitação ilegal do direito à manifestação e da liberdade de expressão por parte do Governo, das autoridades policiais e municipais.
Aliás, é curioso que até ao momento em que a Procuradora-Geral da República apresenta o seu informe anual sobre a actividade do Ministério Público no controlo da legalidade, é manifesto no debate público a indignação dos cidadãos sobre a proibição infundada do direito à manifestação como se Moçambique fosse uma Estado ditatorial ou Estado de Polícia em detrimento do Estado de Direito Democrático.
Urge o Ministério Público tomar uma posição pública sobre a onda de violência e brutalidade policial contra o exercício do direito à manifestação e intimar o Governo, as autoridades policiais e municipais para se conformarem com a lei e nesse sentido não agirem de modo a limitar ou proibir os cidadãos de exercerem o direito à liberdade de manifestação sem fundamento bastante nos termos da lei aplicável ao caso.
De acordo com o artigo 4 da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, as competências do Ministério Público incluem as seguintes, no que releva para o controlo da legalidade para a salvaguarda dos direitos e liberdades supra:
- Defender o interesse público e os direitos indisponíveis; (al. b) do artigo 4);
- Zelar pela observância da legalidade e fiscalizar o cumprimento da Constituição da República, das leis e demais normas legais; al. g) do artigo 4);
- Providenciar consulta jurídica, mediante a emissão de pareceres jurídicos em matéria de estrita legalidade, por determinação da lei ou solicitação dos órgãos do Estado; al. l) do artigo 4);
- Realizar inquérito, inspecções e sindicâncias, ou solicitar a sua realização pelos órgãos da Administração Pública, nos termos da lei; al. v) do artigo 4);
Considerando as competências supra, na sua informação anual à Assembleia da República sobre o estado geral do controlo da legalidade, a Procuradora-Geral da República deveria demonstrar em que medida o Ministério Público pôs em prática as suas competências para garantir a legalidade na salvaguarda do exercício do direito à liberdade de manifestação, da liberdade de expressão e de imprensa.
Representar o Estado e defender os interesses que a lei determina significa fundamentalmente prosseguir o interesse público no pleno respeito à lei, ao Estado de Direito e aos direitos e liberdades dos cidadãos, uma vez que o interesse público e o respeito pela legalidade são interesses do Estado, isto é, interesses que o Estado visa e deve prosseguir. Representar os interesses do Estado é defender a prossecução do interesse público, de tal sorte que se o Estado através dos seus agentes, serviços ou órgãos não respeita a prossecução do interesse público deve ser denunciado e demandado para respeitar o interesse público.
O Ministério Público nas suas funções deve sempre e incondicionalmente, de forma isenta, objectiva, imparcial e legal, defender ou salvaguardar interesse público nos termos da lei e pautar pela justiça mesmo que para o efeito tenha de denunciar comportamentos ilícitos, ilegais do Estado que prejudicam o interesse público ou direitos e liberdades dos cidadãos.
Assim, relativamente aos critérios de legalidade, objectividade, isenção e exclusiva sujeição à lei a que o Ministério Público está sujeito no exercício das suas funções em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 233 da Constituição da República, pelo menos no que respeita às garantias de protecção do exercício do direito à liberdade de manifestação, dúvidas não restam de que a informação anual da Procuradora-Geral da República não espelha a aplicação desses critérios na actuação do Ministério Público.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos