Uma leitura minimamente atenta do referido texto, particularmente nos seus primeiros 2/3 terços, fez-me chegar a 3 constatações.
Ponto 1
O autor do referido livro citado pelo articulista referia-se a um espaço, tempo e contexto completamente distinto do moçambicano. Fui a internet e baixei o livro, para lê-lo primeiro. Ora, Stanley Cohen escreveu “Folk devils and moral panics : the creation of the Mods and Rockers” (este é que é o título completo da obra citada) na década de 1970. Obviamente que foi desde então reeditada, até à versão de 2011 que o Egídio Vaz faz referência no texto. Egídio Vaz omitiu deliberadamente a expressão “Mods and Rockers” do título do livro. Este livro, segundo o que o próprio autor diz na introdução à sua terceira edição, foi baseado na sua tese de doutoramento escrita entre 1967 e 1969 (e que versava especialmente sobre os desvios culturais dos anos 1960 na Inglaterra: delinquência, subculturas juvenis, vandalismo, drogas e hooliganismo). “Mods and Rockers” eram o nome de duas gangs (britânicas) rivais da altura, compostas por jovens delinquentes que resolviam as suas querelas em sessões de pancadaria sensacionalmente cobertas pelas redes de televisão locais.
Ponto 2
Denota-se no texto uma associação substancialmente inexistente entre o que o Stanley Cohen diz no seu livro e o que Egídio Vaz pretende fazer chegar aos seus leitores (distraídos). Com efeito, não se percebe por que cargas de água um livro que fala sobre desvios comportamentais de jovens da década de 1960 e subsequentes de um país desenvolvido (e a cobertura sensacionalista que a imprensa local faz disso) tem a ver com a denúncia e a escrutinação pública dos crimes contra a pátria levados a cabo pela elite dirigente do nosso país (esta última devidamente identificada por indivíduos, organizações da sociedade civil e órgãos de comunicação social independente em Moçambique).
Cohen fala, na obra citada por Egídio Vaz, de episódios de violência urbana associada a delinquência protagonizados por jovens expostos a drogas, de abusos sexuais, de rituais satânicos, de pornografia, de sistemas de segurança social disfuncionais, de desestruturação do núcleo tradicional de famílias, da crise de refugiados (e etc). Ele diz que esses eventos (bem como outros mais recentes como condução em estado de embriaguez, crimes de ódio, “stalking”, problemas ambientais, desordens mentais, intoxicação alimentar, etc) atingem um patamar de pânico social por causa da sua excessiva mediatização. Não fala, em lado algum, que a media ou determinados indivíduos e/ou grupos de pressão inventam (esses) problemas (reais) para fazer a cabeça das pessoas (ou para as aterrorizar). Ou para virá-las contra o Governo. Obviamente que a media tem os seus próprios critérios de aferição do que pode ser noticiável e os indivíduos e/ou grupos de pressão idem, em qualquer parte do mundo. No caso moçambicano, desafiaria o Egídio Vaz a, mais do que citar acriticamente ideias desenvolvidas por um autor estrangeiro sobre uma realidade espácio-temporal e contextual distinta da moçambicana, apresentar factos que consubstanciem a teoria de “pânico social” induzida por estes sujeitos para distorcer os factos e manipular a opinião pública.
Aliás, vamos aos factos. Quase que diariamente, multiplicam-se os casos de corrupção de larga escala envolvendo funcionários séniores do Estado desde o seu escalão supremo, as suas alianças político-empresariais e, pasme-se, até os seus familiares de primeiro grau. Arrolam-se nomes de chefes de Estado e ministros (em exercício ou cessantes), governador de banco central, embaixadores, governadores, deputados, presidentes de conselhos de administração de empresas publicas e até um director-geral dos serviços secretos... Muitos deles estão a contas com a justiça. Outros tantos já presos preventivamente, só para situar a magnitude da seriedade do assunto. São biliões de dólares norte-americanos, dentre dinheiros públicos e “emprestados” em nome do povo moçambicano, a circularem como amendoins torrados nas mãos facínoras de uma facção já identificada da nossa elite cleptocrática. Dinheiro que poderia ser investido para recuperar o nosso atraso cronológico em todos os índices básicos de desenvolvimento humano a ser usado para deteriorar ainda mais as condições sub-humanas da nossa actual e vindoura população. Determinados indivíduos, algumas organizações da sociedade civil e a media independente tem estado a jogar um papel preponderante na exposição pública e na reivindicação de aplicação da devida justiça e a consequente responsabilização dos seus perpetradores. Egídio Vaz chama a isso de promoção de “pânico moral”.
Falar ou discutir sobre isso é, na visão do Egídio Vaz, agitar a população para mudanças estranhas aos seus interesses (e não há no seu texto qualquer sustentação factual disso). Mas só na visão e na percepção do Egídio Vaz, porque nas do Stanley Cohen não há nada disso no seu livro (que tenho aqui comigo em versão digital e que posso enviar por e-mail a quem o quiser ler pessoalmente). Stanley Cohen fala exclusivamente da espectacularização de desvios comportamentais urbanos na Inglaterra, no seu livro. Em Moçambique, o debate público do dia gravita em torno da corrupção desalmada, pornográfica e perniciosa das nossas elites. A media independente e alguns grupos de pressão estão apenas a (re)mexer no fétido vazio de pudor que caracteriza a condução actual dos destinos deste país. A media independente e alguns grupos de pressão (combatidos inescrupulosamente, embora de modo incompetente, no texto do Egídio Vaz) estão apenas a conferir a merecida legitimidade e a devida liderança ao sentimento de indignação colectiva das massas. E eu até acho que a reacção social a estes abusos sistemáticos das nossas elites está a ser “light” demais. Deveria ser muito mais contundente (nos devidos limites impostos pela lei, obviamente).
Ponto 3
A predominância exagerada e desestruturada de “take aways” de citações do pensamento do Stanley Cohen no corpo total do texto espelha uma esterilidade de argumentação por parte do Egídio Vaz que, felizmente, também denuncia a qualidade dos novos intelectuais (como ele) que temos andado a cultivar em Moçambique: os intelectuais copy & paste. Este tipo de intelectuais sobrevive de retalhos descontextualizados de citações aqui e acolá de um livro que nunca leu do início ao fim (e sobre o qual se pressupõe que ninguém mais o lerá quando o citar). Tenta, regra geral, buscar referências bibliográficas que acredita estarem fora do alcance da larga maioria do seu público para vender a imagem de um pesquisador refinado e distinto. Ademais, e num exercício ainda mais perigoso, faz irresponsavelmente passar ao público que o lê coisas que o suposto autor lido não disse em circunstância alguma. Como leitores sérios que somos (ou deveríamos ser), temos de começar a escrutiná-los diligentemente.
Considerações finais
Eu acredito que um intelectual que se preze tem sempre de escolher o caminho da honestidade, da integridade e da responsabilidade. É sua função social primária falar a verdade e expor mentiras. Qualquer comissário político pode fazer o inverso, vendendo as suas narrativas às dinâmicas da oferta e da procura no mercado de consciências. Não condenarei as lógicas de sobrevivência destes últimos, que preferem atrelar a sua produção intelectual às cordas do poder vigente e orientar todas as suas mais vivas energias para combater a todos os que não se deixam manietar pelas estruturas poderosas das elites. Pretendo homenagear os tidos como “fabricadores de pânico” apenas porque buscam verdades, expõem factos e exigem justiça. Aqueles que, terminantemente, mostram ao seu povo que os verdadeiros culpados pelos assombrosos destinos do país e pela deterioração sistemática das suas condições de vida têm nomes e endereços.
Têm todo o meu respeito, consideração e admiração os intelectuais que não usam citações copiadas de livros sobre outros mundos para justificar mentiras, acobertar ladrões ou defender a incompetência comprovada de funcionários e agentes do Estado ao mais alto escalão. Muitas das vezes, e de tanto serem inférteis e irrelevantes as suas próprias ideias no activismo do indefensável, este tipo de intelectuais recorrem a artimanhas torpes semelhantes às do Egídio Vaz: preenchem as suas insonsas intervenções com toneladas de retórica falaciosa pretensamente ditas por uma autoridade científica qualquer. Distorcem propositadamente todo o esforço crítico de análise das causas e dos motivos (bem como das reais intenções escondidas) nas decisões políticas (como a do calote das dívidas ocultas) e nos desvios megalómanos dos recursos do Estado por parte de alguns dos nossos líderes. Só sabem copiar (muito mal) as ideias genuínas de outros pensadores e, com elas, tentar confundir a opinião pública desatenta. São, estes, os intelectuais copy & paste.