Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
terça-feira, 26 novembro 2019 13:21

Chico da Conceição no crepúsculo do entardecer *

Escrito por

A voz do Chico é outra melodia. Dentro da música. Embala. Levita no espaço em que temos de um lado o amor, e do outro lado a tristeza. Ombro com ombro. Ressurge das vísceras como o cantar dos últimos pássaros na retirada aos ninhos, no fim da tarde, voando em voo rasante entre as últimas gotas da luz do sol e a descida inevitável da noite que nos vai acolher a todos. É como se a alma toda deste bitonga residisse ali. Na voz. É nela onde também se abrem os poros da poesia que nos leva por exemplo à Praia do Tofo, ou seja,

 

se você quiser passar férias arregaladas

 

 vai à Praia do Tofo

 

Tofo é nome de mulher

 

Não tem igual

 

Nestes versos está o abanar da mão do Chico da Conceição, o pestanejar vão dos olhos escondidos por detrás dos falsos óculos escuros. Ele acena. Chama-nos numa música que será, mais do que o escorrer de um simples poema, uma elegia que orbita sobretudo na voz resignada. É a laringe trémula que vai à frente, reinventando as ondas do Índico que agora marulham por dentro de nós que escutamos a música que deixou de ser dos manhambanas. Extravazou na respiração do próprio mar. E agora é exaltada na convivência cosmopolita da arte.

 

Há dois crepúsculos, obviamente! O do amanhecer, e do entardecer. Os dois são belos. A musicalidade que emanam no seu silêncio, tem a mesma intensidade. Vibra da mesma forma na escala diatónica deste lado da plateia, e na escala diatónica do outro lado da mesma plateia. Onde poisamos amiúde para deixar livres as vibrações do sentimento. Mas Chico é o crepúsculo do entardecer. É por isso que nos comove. Embevece-nos. Olhamos para ele e percebemos rapidamente  que a glaucoma colocou-lhe a última venda. Mas não lhe decapitou o ramal da poesia, nem lhe impediu a paródia,

 

Vanhamayi gaya khu gupwa gu tsamba vadi davatela (As mulheres da minha terra dançaram com a barriga ao sentirem o sabor da  música)

 

A paródia está aqui. Chico mudou os passos de dança, vacilou no corpo desde a noite de 25 de Junho de 1975, em pleno içar da bandeira da liberdade, quando de repente disse assim, para as pessoas que o acompanhavam: epá, apagaram as luzes! Este foi o dia em que desceu para sempre o capuz da glaucoma, e fechou uma etapa da sua vida. Ou começava outra etapa, ou ainda, se calhar, era a continuação do mesmo percurso. Da mesma vida que agora terá que ser tacteada, ou entregue a um cicerone, que nem sempre está disponível para aturar o “chato” de um “cegueta”. Contudo, Chico da Conceição tinha outro cicerone. Ou melhor, dois cicerones fieis. Leais: a voz e o saxofone. Foi nessas tenases asas que se pendurou e perdurou. Planando com alegria. Com a leveza dos astros.  Até que o coração, cansado das longas jardas incessantes, sufocou e parou de bater.

 

Mas ficou o cheiro do homem. Galvanizado pelo saxofone ora suave, ora vertiginoso. Foi essa alfaia que Chico usou como muralha para se defender contra todas as investidas do tempo. Das feridas da cegueira. Ou por outra, ele transformou o instrumento em hidroeléctrica, com várias albufeiras para disfarçar o padecimento e oferecer luz aos convívios.Também para enxotar a solidão. A sua própria solidão.

 

Chico da Conceição sabia perfeitamente que tinha nascido para reverberar, e proporcionar aurora às pessoas. Foi isso que ele fez. Cumpriu com os preceitos sem olhar para trás. Rindo-se das trevas que lhe traziam em catadupa, lembranças da sua terra,

 

Nyagu dundruga Nhambane, monho wangu gu bisa (Quando me lembro da cidade de Inhambane,  meu coração dói)

 

O autor de “Queremos paz” recorda-se de tudo isso. Das vanunwana (donzelas muçulumanas do bairro  Chalambe). Da tranquila baía. Da dádiva que Deus inoculou na Sua misericórdia sobre Inhambane, e que ele, o Chico, já não poderia ver,

Nhagu dundruga vanunwana (quando me lembro das donzelas muçulumanas)

 

momho wangu kha wu gumani gurula (meu coração nãoencontra paz)

 

REGRESSAR NA HORIZONTAL PARA UMA CIDADE ESCURA

 

Em Wussiwana, um dos seus  temas mais sentimentais, ele não resiste e entrega-se profundamente ao sofrimento. Por inteiro. Diz-nos, por exemplo, que “assim como estou (cego), já não vou reconhecer os caminhos que me acolheram na  juventude. Mas um dia hei-de voltar para passear com os meus amigos por aí”.

 

Porém a vida real ultrapassou os sonhos do Chico da Conceição. Desmentiu-lhe. Ou seja, o homem nunca mais voltou, desde que daqui saíu, em 1959, para Lumbo, como funcionário dos Correios  de Moçambique.

 

Aliás regressa agora (Outubro de 2019), sessenta anos depois, embutido num caixão. De vez para sua terra, uma cidade  tranquila, entretanto escurecida na glaucoma do autor de Marumana Gaya. E foi neste entardecer que umas senhoras, no mercado da Mafureira, aqui mesmo, perguntavam-me assim, afinal quem é que morreu?  E eu respondi-lhes, é Chico da Conceição.

 

- Chico da Conceição!?

 

- Sim

 

- Qual Chico da Conceição?

 

- Aquele que canta Marrumana Gaya.

 

- Iiiiiiiiiiiiiii! Vocêgiiiiiii! Morreu aquele senhor?

 

Em Inhambane são poucos os que podem se gabar de o terem conhecido. Zarpou em 1959. Eu também não tenho memória dele por estas bandas onde nasceu, a não ser do dia em que fui entrevista-lo, na sua casa, na Av. Ahmed Sekou Touré, em 1999, em Maputo. Ele também não vai-se lembrar de muitos. Morreu com medo de que não fosse reconhecido. Se um dia voltasse. Por isso dizia,

 

Nhi veleguidwe Nhambane (Sou natural de Inhambane)

 

Nhi veleguidwe Nhambane sewi (Sou natural de Inhambane Sewi)

 

Nhi tonga biho, kha nhi langui (sou bitonga, não me escondo)

 

O tigre não precisa proclamar sua tigritude. E Chico parecia ter medo depois dessas longas décadas de ausência. Então era preciso que nos lembrasse: Nhi veleguidwe Nhambane (Sou natural de Inhambane), Nhi tonga, biho kha nhi langui (sou bitonga, não me escondo).

 

Seja como for não nos resta mais nada, senão a rendição  perante a partida deste pássaro sagrado. Que vai cantar as últimas canções ao fim da tarde, de recolha definitiva ao ninho.

 

Adeus Chico!

 

  • Texto de homenagem ao Chico da Conceição, falecido em Outubro, vítima de doença

Sir Motors

Ler 4013 vezes
Mais nesta categoria: « O paredão Cadê o Povo? »