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quarta-feira, 04 dezembro 2019 10:19

Sumbi

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Apaixonei-me por ela, logo no primeiro dia que a vi passar em frente a minha casa. Passam dois anos, e de lá para cá  a nossa relação tem sido intensa. Cada vez que nos encontramos, o amor que nos une,  aumenta. Recrudesce a minha responsabilidade, no sentido de que não posso cometer a mínima imprudência, sob o risco de deitar tudo a perder. O azimute que me guia altera de forma espontânea quando a vejo, na rua ou no mercado, onde quer que seja. Ela já me arrebatou por inteiro, e sinto-me cada vez mais empurrado para a condição de ter que assumir a paternidade de uma criança que nem sei de onde vem. Na verdade esta menina tem idade de ser minha neta.

 

O que mete medo nela, é a sua maturidade precoce. Ela é determinada na luta pela sobrevivência,  que desenvolve todos os dias sob ambrela da verdadeira avó. Sabe que é pobre, absolutamente pobre, tem profundas necessidades. Os lábios secos denunciam um pequeno ser que passa horas e horas sem comer. Os olhos também, chamam-nos a atenção para alguém que tem quase nada para se alimentar. Mas  tudo isso não a demove, não a resigna. Parece acreditar que as coisas mais sólidas começam daqui, de baixo, onde muitas vezes temos que consentir sacrifícios.

 

Nunca me pediu nada, apesar de eu perceber que Sumbi não tem claramente nada. Se não a chamo para entrar no meu quintal, ela passa. Olha para as abundantes mangas dependuradas na copa das duas árvores fartas, que se erguem no meu espaço, e continua o seu caminho. Sem olhar para trás. E se não calha eu estar por ali, olhando para o caminho que usa sempre, quase todos os dias, então a minha neta vai engolir saliva para dentro de um estômago que nunca esteve saciado. Porém, se a vejo, por entre as frestas das plantas que servem de vedação, saio a correr e chamo-a.... Sumbi! Ela sustem a marcha, como uma tigreza que apesar de não ter encontrado a presa, mantem a confiança. Rodopia, e volta.

 

Enquanto a miúda entra, eu já estou a arrancar a fruta, sem medir a quantidade. E é ela  que vai dizer assim, chega, Bitonga Blu!

 

Há uma consonância entre as palavras da Sumbi, e aquilo que lhe vai no coração, e na mente. Se assim não fosse, eu já teria entendido. Aliás, ontem mesmo, no mercado da Mafurreira, nos arredores da cidade de Inhambane onde moramos, voltou a revelar-me a sua personalidade. O seu forte carácter. Ou seja, de entre muitas vendedeiras de marisco, a minha netinha estava lá, vendendo também, lutando ombro com ombro com as demais, na disputa pelos potenciais clientes, mas sem perder a postura. Ainda não a tinha visto, até que no meio daquela azáfama, ouvi uma voz que conheço muito bem, chamando-me como um leve trovão no seio das montanhas de pedra: Bitonga Blu! Olhei para ela, e senti toda a minha alma fluindo.

 

Ali, todas aquelas “magweva” (revendedoras) conhecem-me. Conquistam-me para a freguesia, freguês para aqui, freguês para ali. Mas nesta circunstância, quem ganhou foi Sumbi, a minha neta. Cheguei perto dela e perguntei, quanto custa todo este camarão? E ela respondeu-me, 150.

 

A nossa amizade vale mais que todo o dinheiro do planeta, para além de que eu queria que a miúda vendesse tudo, de uma vez, e voltasse para casa como um passarinho vitorioso, entregue ao vento, em liberdade. E foi o que fiz, comprei tudo, que nem é tanto assim, para agraciar os meus sentimentos, e da Sumbi. É um camarão miúdo, apanhado na pequena rede que ela arrasta nas noites, na companhia da avó, sem poder dormir como outras crianças.

 

Dei-lhe uma nota de duzentos meticais, e fiquei sem saber se recebia o troco, ou deixava com ela. De resto, esta é uma criatura delicada, e eu tenho medo de magoá-la.

Sir Motors

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