Tenho 96 anos de idade e nunca tinha visto antes uma coisa igual. Já vivi momentos dramáticos e de medo, que ultrapassam os limites da dor, como estar uma noite inteira debaixo do matraquear incessante do granizo por sobre as chapas de zinco que cobrem a minha casota, e do rimbombar apocaliptico dos trovões que pareciam a última ira do próprio Jehová dos Exércitos. Experimentei a terrível sensação de que o mundo ia implodir para dentro dele mesmo, ou para dentro de nós, nos anos 40, quando um terramoto flagelou aldeias inteiras em Kassakatiza, alí no limite entre Tete e Zâmbia. Tenho ainda na parede da memória, o remoínho que me arrancou do rio Zambeze, para fustração dos crocodilos, colocando-me no ar como Jesus Cristo em ascenção, depois de se despedir dos Seus discípulos em Galileia. Tenho esses profundos episódios todos, inesquecíveis, e eu a pensar que não haveria mais nada de extraoridnário para viver.
Eis que agora, empurrado pela própria história, provavelmente pelo destino, estou aqui, numa cidade alagada de preconceitos e tabus sem fim. A princípio, quando cheguei, vindo de Chinde - outra escala da minha existência de andarilho anarquista - esta urbe parecia incapaz de produzir feitos notáveis, para além do sossego, que por sua vez nos dá a falsa sensação de que a vida aqui é completamente musicada. Mas aos poucos e poucos, fui percebendo que por detrás deste sereno ulular, podem estar escondidas várias hienas que passam a vida a sorrir para esconder o asco.
Moro num ponto privilegiado da baía, em Nhapossa, de onde posso contemplar, de longe, as cidades de Inhambane e Maxixe. À noite passo horas e horas observando tranquilamente as luzes emanadas pelas duas urbes, as quais, por sua vez, deixam escapar as gotas da iluminação que se espalham pelo mar, tornando a paisagem ainda mais reverberante. Tudo isto é uma beleza sem paralelo, enfatizada pelo murmúrio imperceptível das ondas pacatas. É uma dávida.
E porque a cidade de Inhambane é um alfobre de mistérios, temos que estar preparados para o pior. Na última quinta-feira (9 de Janeiro de 2020), acordamos entusiasmados ao ver o Céu completamente coberto de nuvens, depois de meses e meses sem chover por estas terras. Era o renovar da esperança, que mesmo assim, perante todos os sinais de infausto, nunca desvaneceu. Trovejou em sussurro sem que antes podessemos visualizar os relâmpagos. Pingos escassos começaram a tamborilar por sobre os nossos tectos, mas pouco tempo depois tudo voltou com era. Sol devastador.
Porém, do lado da Maxixe, que fica aqui pertinho, chovia a potes. E no lugar de a precipitação alastrar-se até onde havia sido anunciada, foi desviada para Homoíne, Panda e Funhalouro, deixando-nos a mercê da canícula e dos pensamentos. Dizem que alguém, cheio de maldade e rancor contra estes lugares, “amarrou” a chuva. Aqui não pode chover, e muitos acreditam nisso. Aliás, eu também, que pensava ter vivido o lado mais dramático da vida, sou tentado a pensar como esses muitos. Até porque aqui mesmo, nas profundezas deste pedaço de mar, há pessoas que vivem em comunhão com os peixes e mariscos afins, incluindo tubarões que têm aparecido como se fossem o terror dos mares. Esses seres humanos naufragaram. Uns reapareceram, e hoje são curandeiros. Outros, contudo, continuam lá, na esperança de um dia voltarem.
Nos meados de Dezembro de 2019 eu voltava de Linga-Linga, depois de uma visita familiar. Esse poderá ser o dia mais espectacular dos meus últimos tempos. Fomos perseguidos pela chuva, que entretanto limitava-se a cair à volta do barco à vela que nos transportava, sem nos atingir. Andamos cerca de duas horas à favor do vento, cheios de medo, com a chuva a escoltar-nos, e o marinheiro, experiente nestas andanças, dizia-nos, fiquem calmos, havemos de chegar.
Na verdade, depois da Ilha de Inhambane (Giidwane), a chuva desapareceu. Vimo-la voltando para Linga-Linga e ninguém ousou perguntar, mas o que é isto!