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segunda-feira, 21 setembro 2020 08:23

A ‘poeira’ discursiva das (nas) redes sociais da Internet em Moçambique

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O surgimento de termos como ‘milicianos digitais’ e ‘Mahindras digitais’ faz parte de um vocabulário do quotidiano das redes sociais da Internet em Moçambique. Com algum interesse particular, nos últimos anos temos tentado perceber que significados podem ser obtidos dos discursos que são emitidos por plataformas socio-virtuais no contexto moçambicano. Num passado recente, o Professor Brazão Mazula referiu que a existência de pessoas que empoeiram o debate por meio das redes sociais da Internet é prejudicial para a Democracia em Moçambique. Nesse contexto, podemos associar a fala de Mazula com o que designaremos como ‘agressão verbal-virtual’ – todo e qualquer comportamento que use palavras, em vez de ataques físicos, para causar danos como insultos, calúnia ou ameaças. Na sua dimensão virtual, a ‘agressão verbal’ descreve uma forma destrutiva de comunicação, que pode ocorrer face a face, bem como mediada por um computador ou outro tipo de plataformas electrónicas (falamos especificamente das redes sociais da Internet).

 

Existe uma vasta literatura que explica como é que as opiniões podem ser (de)formadas a partir ou nas redes sociais da Internet. Num artigo publicado em 2016, Rösner e Krämer mostram-nos que todos os dias, milhares de usuários da Internet publicam comentários agressivos em plataformas virtuais como Facebook ou Twitter, para expressar críticas públicas, indignação pessoal ou simplesmente para desabafar. Em muitos casos, esses comentários incluem observações desprimorosas que podem ser dirigidas contra empresas, marcas ou personalidades públicas como políticos ou ainda fazedores de artes diversas.

 

Especialmente no contexto político, alguns autores investigaram a agressão verbal em discussões virtuais sob o nome de incivilidade, o que se refere a ‘’características de discussão que transmitem um tom desnecessariamente desrespeitoso para com o fórum de discussão, seus participantes ou seus tópicos’’ (Coe, Kenski, & Rains, 2014: 660). Nesse sentido, os pesquisadores desenvolveram vários esquemas de categorias para avaliar e explorar as diferentes expressões de agressão. Tais categorias incluem, por exemplo, ‘’palavras e expressões hostis, palavrões e nomes depreciativos, ameaças directas e indirectas, uso de letras, símbolos e sinais de pontuação que transmitem hostilidade ou agressão e comentários insultuosos, sarcásticos, provocadores, negativos ou cínicos” (Lapidot-Lefler & Barak, 2012: 437). Importa sublinhar que este é um campo de análise que tem merecido particular atenção para especialistas de linguagem socio-cognitiva, bem como psicólogos, um campo que certamente não é a nossa especialidade para o presente texto.

 

Por sua vez, D’Errico, Poggi e Corriero (2014: 195) referem que a política sempre foi uma excelente arena para a comunicação agressiva. De facto, desde a antiguidade, não apenas os actos de fala, mas até mesmo tipos de textos, de insultos a injúrias, de calúnias a panfletos, têm se dedicado a culpar os oponentes, para vencê-los com o martelo da linguagem. Os autores anteriormente referenciados prosseguem e dizem, na era virtual, a agressividade comunicativa passou para as redes sociais da Internet, tanto na interacção pessoal quanto em blogues e fóruns políticos, onde parece ainda mais dura do que na interacção face a face, talvez devido à ideia de que a escalada para a agressão física por questões de ordem política está descartada nos tempos que correm.

 

Baseando-se no contexto Indiano, Udupa (2017) procurou estudar aquilo que chamou de ‘antropologia do insulto’ para perceber a distinção entre o que é insulto no espaço virtual como meio de participação política, bem como as relações de dominação que esse mesmo insulto reproduz como resultado. Udupa (2017a) avança dois argumentos centrais: (1) primeiro, os abusos de linguagem abrem novas linhas de participação política – pelo menos como engajamento discursivo – para actores experientes numa determinada rede social da Internet, mesmo que isso ocorra em um contexto de debate altamente volátil. Embora não seja verdade que os abusos são o único meio de participar em debates políticos virtuais, eles constituem um contexto comunicacional fundamental para os usuários virtuais que cada vez mais sentem a necessidade de desenvolver as habilidades para lançar, esquivar ou criticar os abusos, bem como para se manterem activos nesses mesmos espaços discursivos virtuais; (2) em segundo lugar, o abuso virtual tem uma estruturação profundamente de género, em que o levantamento de acusações “privadas” e sexuais representa a repolitização da “esfera doméstica” através da lógica masculinista da vergonha com efeitos de intimidação.

 

Admitindo que a realidade moçambicana possui características próprias e que o actual debate decorrente das redes sociais da Internet está empoeirado, nos parece igualmente verdade que tal realidade constitui uma dimensão de participação política (entendida aqui para além da regular ida às urnas). Pode parecer um paradoxo, mas com o alargar do uso das redes sociais da Internet a consequência directa é ou seria o surgimento de vozes várias, sejam elas polidas ou não. Aliado ao manancial teórico acima apesentado, pensamos que o essencial da nossa discussão não deve ser a surpresa que nos cria o surgimento dos chamados ‘milicianos ou Mahindras’ digitais, mas acima de tudo perceber que impacto isto cria para a promoção ou não das diferentes formas de participação política oferecidas pela Internet.

 

Claro, não defendemos a promoção ou reprodução da linguagem agressiva no espaço virtual moçambicano. Contudo, argumentamos, de forma hipotética, que estamos diante de uma oportunidade para alargar, através das redes sociais da Internet, o que parece nos escapar com maior regularidade nos últimos anos: espaços e práticas de participação política em Moçambique. Dito de outra forma, não nos parece que o surgimento dos referidos ‘milicianos/Mahindras’ digitais seja de facto problemático, dado que através destes ampliam-se algumas vozes contrárias que não encontram eco nos espaços tradicionais de participação política como as ruas, jornais ou televisões, em razão destes últimos terem sido cativos pelos mesmos actores. Diante disto, uma questão pode ser levantada: como aproveitar positivamente a existência dos ‘milicianos/Mahindras’ digitais para alargar os espaços e oportunidades de participação política (através das) nas redes sociais da Internet?

 

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Para aprofundamento, algumas referências:

 

Coe, K., Kenski, K., & Rains, S. A., Online and uncivil? Patterns and determinants of incivility in newspaper web- site comments, Journal of Communication 64, p. 658–679, 2014.

 

D’Errico, F. et al., Aggressive language and insults in digital political participation, International Conferences ICT, p. 105-114, 2014.

 

Lapidot-Lefler, N., & Barak, A., Effects of anonymity, invis- ibility, and lack of eye-contact on toxic online disinhibition, Computers in Human Behavior 28, p. 434–443, 2012.

 

Rösner, L. et al., Verbal Venting in the Social Web: Effects of Anonymity and Group Norms on Aggressive Language Use in Online Comments, Social Media + Society 1–13, 2016.

 

Udupa, S., Gaali cultures: The politics of abusive exchange on social media, New media & society 20(4), p. 1506–1522, 2018.

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