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quarta-feira, 20 outubro 2021 07:39

Dá-me um abraço, Mariano Nyongo

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Mariano, vi-te nas fotografias deitado de costas como uma baleia cuspida pela fúria do mar, os teus olhos pendurados no rosto pareciam duas lâmpadas fundidas balançando e divertindo os insectos das tuas sobrancelhas. E aparece-me que tinhas muita pressa em morrer, pois nem uma lâmina de gilete passaste pela barba e não baixaste os lábios para esconder os molares. A vida não é cruel, os homens é que o são e tu eras homem.

 

E porque antes de morrer não pediste apenas um minuto, um minutinho, para vestires o fato que nos exibias na televisão, um minutinho para te deixares estar no espelho e arrumares o nó da gravata, um minutinho para juntares a tua Junta e dizeres um simples adeus, um minutinho para mostrares as costas à tua Junta e depois caíres morto de costas. Custava-te pedir um minutinho?

 

Não te escondas de mim, Mariano. Eu apenas te quero ajudar a carregar o teu corpo cheio de balas, talvez seja pesado demais; quero acender uma pequena vela e fazer sinal de cruz com o mesmo indicador que usavas para accionar o gatilho. A vida não é cruel, os homens é que o são e tu eras homem. Foste cruel, a vida é cruel, os homens são cruéis e tu eras homem. O melhor que podemos ter no mundo é um abraço, Mariano. Não há DDR que nos tire um abraço, não há um ex-guerrilheiro do abraço, não há subsídios que nos afastem do abraço e um abraço nunca precisa de mediadores. 

 

Dá-me um abraço, Mariano Nyongo, e eu tentarei orar pela tua alma. Juro-te que Deus tem ouvido as minhas orações, juro-te que Ele pode arranjar-te uma lâmina para barbeares o rosto, um pequeno fusível para pôr nos teus olhos fundidos, dar-te um minutinho para correres atrás do teu fato e talvez um minutinho para desarmar-te da morte.

 

Ouves-me, Mariano? A vida não é cruel, os homens é que o são e tu eras homem. Não quero falar dos camiões que atacaste, das pessoas que fuzilaste, das paisagens de sangue que meteste pelas janelas dos autocarros, dos homens que pastavas nas matas e das tuas mãos inchadas de calos de armas. Não quero falar disso. Quero falar dos teus olhos, que vi nas fotografias, que pareciam duas lâmpadas fundidas, dos teus olhos que não tinham força para virarem ao seu amigo de lado e ciciar: “vês que a vida é cruel, amigo?”. Os teus olhos que mesmo abertos tropeçavam no vazio.

 

Não quero falar das tuas reivindicações e nem dos teus homens que viviam nas matas e saíam como hienas para atacar camiões. Podia falar do saco plástico onde foste embrulhado como um cão atropelado, mas eu quero falar dos teus olhos, Mariano, mas eu quero abraçar-te. Tu mataste, foste morto e a qualquer dia todos terminamos assim; não se pode dar muita confiança a um país que carrega uma arma na bandeira. Falando em bandeira, Mariano, achas que valeu a pena tentar erguer a bandeira da tua resistência? Não sou católico, mas posso rezar o terço, quem sabe cada missanga do terço cure-te as feridas das balas e os teus olhos fechem-se de vergonha e peçam perdão por tudo.

 

Dá-me um abraço, Mariano Nyongo. Não perdes nada em dar-me um abraço, nada de ti hoje resta. Engano-me; restam fotografias tuas que serão exumadas das gavetas e tatuadas com cruzes vermelhas à testa, resta uma arma tua que vai enferrujar de cobardia porque não te soube proteger e resta esse meu abraço que não queres receber.

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