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Actualizado de Segunda a Sexta

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Sérgio Raimundo

Sérgio Raimundo

sexta-feira, 26 novembro 2021 08:29

Sou imigrante e fui criança-soldado…

Tinha a cabeça submersa, como um cágado, no casco da camisola, movimentava-a mas só para os lados. Tinha os óculos poisados sobre a mesa, mas as marcas dos óculos continuavam em seu nariz; e seus olhos mexiam-se a cada instante como pés húmidos arrancados das meias. Os óculos de costas estavam sobre a mesa, um isqueiro descansando o sopro de lume mexia-se o seu gás sobre um maço de cigarros. O homem, de quando em quando, atirava o seu olhar solto das algemas dos óculos sobre a Ria Formosa.

 

As lanchas arquivadas em filas nas bermas da ria eram como mulheres aninhando-se nos corredores de uma maternidade, os carros comendo-se de impaciência na passadeira para um velho puxado por um cachorro magro, os turistas de calções curtos estendendo suas pernas povoadas por pêlos murchos e outros remastigavam fumo de cigarros de olhos fechados, tudo isso corria no centro de Faro. E o homem continuava ali sentado, sobrepondo os pés, de segundo a segundo, como se ensaiasse passos para caminhar para dentro de si.

 

Andamos todos com medo de sermos atacados, por isso armei-me de máscara e sentei-me na mesma mesa com o homem; e ele, também, por segurança, manejou o revólver da sua máscara e ficamos um vigiando o outro com medo do ataque; o homem tossiu duas vezes, três vezes e quase os pulmões saiam-lhe pelas fendas do nariz. Como um bom militar de guerra, recuei a cadeira, estiquei os gatilhos elásticos da minha máscara e homem riu-se sem parar. “Esses tipos já começaram a despachar esta porcaria de cigarrilhas”. E a conversa começou. Primeiro foi a recolha obrigatória que recolheu toda a nossa timidez na conversa, depois foi a gripe que adormecia toda a Europa a enfiar-se na mesa; e do nada o homem, equilibrando a máscara no queixo para mais uma cigarrilha, disse-me: “o único imigrante que não é bem-vindo em todo mundo é esta gripe”.

 

O homem sacudindo a cauda da última cigarrilha, ainda com a boca transbordando de fumo, diz-me: “depois de morto que levem os meus pulmões para a Amazónia; assim o mundo respira muito mais. Podes não acreditar mas tenho os pulmões mais saudáveis do mundo”. Filtrei, com a máscara, um sorriso que o homem não viu, mas apercebeu-se pelas leves deslocações das bochechas. E o homem foi falando sem parar, reclamava da esposa que lhe trocava por um cão. E no meio disso o homem diz que na terra onde cresceu os cães não têm nenhum direito; o único direito que têm, por piedade, é de morrerem apedrejados na rua.

 

“Eu sou imigrante como tu, imigrante como todos os que saíram da sua terra com um par de calças no cabide da cintura”. Kassoma era o nome do homem. Disse-me que é de Angola e tinha chegado a Portugal porque queria, antes de tudo, fugir da memória pesada do assassino dos pais durante a guerra civil. Um senhor mexeu nas lanchas arquivadas em filas nas bermas da ria e as lanchas agitaram-se, desta vez como mulheres sendo engolidas por porta de uma maternidade. E Kassoma não parava de falar dos seus pais assassinados como cães, na sua terra onde os cães eram apedrejados nas ruas. “Os meus pais foram podados os pescoços com duas baionetas, tu sabes o que é isso? És puto demais para isso”.

 

Já não tinha mais cigarrilhas, começou a roer as unhas como se quisesse desenterrar uma cigarrilha, agitou o isqueiro. Quando me preparava para uma pergunta qualquer o homem dispara-me: “o que tu queres saber de mim? Tu sabes que sou imigrante, Portugal acolheu-me, apesar de existirem alguns racistas que me chamam macaco, mas eu também fui criança-soldado. É isso que queres saber?”. Quando o homem afundava-se num enorme poço de silêncio eis que um carro, com um cão agitando-se no interior, buzina à nossa mesa; uma senhora branca entorna a cabeça pela janela e Kassoma levanta-se, junta-se aos poucos, mete-se no carro e desaparece.

segunda-feira, 22 novembro 2021 07:43

“Amanhã vocês sairão daqui”, Pascoal Mocumbi

Naquela sala, do Hospital José Macamo, éramos um rebanho de doentes comendo restos de sono e capim nas camas de lençóis sujos. Os enfermeiros surgiam arrastando tubos de soros e nós éramos um enorme rebanho. Cada doente tinha um pastor que lhe espetava as agulhas, que lhe corrigia o lençol no canto da cama, que lhe abria e fechava a pequena torneira do soro…

 

Naquela sala disputávamos pequenas fatias de ar, os mais graves sugavam com enormes palhinhas o oxigénio aninhado em botijas metálicas. E os enfermeiros afogados em máscaras trocavam-nos a ração do soro como aves, entulhavam-nos os buracos das bocas com comprimidos e recolhiam a nossa urina em balões, o nosso sangue e o nosso escaro.

 

Era um milagre acordar vivo ali. Primeiro foi o senhor Hugo, um mulato, que foi descoberto enterrado pela morte no meio dos lençóis, depois foi uma criança, de feridas nas orelhas, a ser evacuada para a morgue com a língua de fora como uma cabra sem vida. As moscas aterravam à procura das feridas da menina, todavia ela já não lá estava.

 

Um dia, um senhor magro e de cabelos pretos tropeçando em mechas brancas, entrou na sala com um enxame de senhores de fatos. Era Pascoal Mocumbi, ouvi isso de uma voz qualquer na sala. Foi passeando de cama em cama, examinando os processos e fazendo levantamento de sintomas como os quisesse levar à sua casa.

 

Tão simpático, tão magro: Pascoal Mocumbi. Eu ainda era criança, mas não me esqueço dos dentes empenados de onde surgia um sorriso preguiçoso. Com uma enorme corda de elegância disfarçada em gravata no pescoço, Pascoal Mocumbi, abriu-me um dos olhos com o saca-rolhas dos dedos e eu chorei porque temia que aquele gigante me comesse o olho inteiro. Examinou-me as manchas dos olhos e seguiu para outra cama.

 

E o enxame de senhores de fatos seguia os passos de Pascoal Mocumbi, uma senhora gorda espetava-se os dentes com uma tapa BIC e entornava os óculos numa agenda para anotar os nossos gemidos; e Pascoal Mocumbi encheu a sala toda com um fumo de esperança dizendo “amanhã vocês sairão daqui”; ele repetia isso sem parar; era como se pulverizasse a sala das mortes e da desesperança. “Amanhã vocês sairão daqui”. Depois de circular de cama em cama, como uma servente recolhendo lençóis para o tanque, Pascoal Mocumbi saiu da sala e o enxame de fatos foi arrastando com ele.

 

Claro que ficamos todos ali a disputar aquela frase como cães lutando por um osso. “Amanhã vocês sairão daqui”. E aos poucos fomos saindo com a sabotagem da doença: uns para as gavetas da morgue e outros foram carregados por ambulâncias para esperar pela morte em outros hospitais. Mas todos saímos. Todos saímos. Obrigado, Pascoal Mocumbi, pela fé, pelo isqueiro de esperança que nunca mais se apagou em mim.

segunda-feira, 15 novembro 2021 07:30

As raízes que acabaram com o editor Trindade

Como estagiário a primeira pessoa que conheci naquele jornal foi um branco, meio gasto, que sempre que entrasse na redacção deixava, em forma de cheiro, uma enorme cauda com bocejos de álcool e pêlos leves de tabaco. Entrava sempre aos berros na redacção com a língua sobre o peito e punha-se a ladrar: "isto é capa e vende muito".

 

O editor Trindade, com a cabeça metida na cova do ecrã do computador, de quando em quando ressuscitava para vociferar: "ó estagiário, compra-me um cigarro ali na esquina". E eu corria porque queria ser importante na capa que o editor preparava. Um dia o editor Trindade encontrou, na sua mesa, uma pequena garrafa de vidro com raízes e uma pele de macaco enrolado no gargalo.

 

Fitou a garrafa com a cintura, afastou-a com o calcanhar da mão e a garrafa ficou em cacos no chão. Toda redacção atirou os olhos ao editor e ele apenas "alguém anda com inveja das minhas capas". A partir daquele dia a vida do meu editor virou uma mesa com duas pernas; já tinha perdido o equilíbrio.

 

O editor Trindade começou a ser capa da sua própria vida, chamava-me para que lhe ajudasse a galgar as escadas, a borda do seu cinzeiro transbordava de tiras de algodão cheias de sangue e as suas narinas a cada respirar expiravam botões de sangue. E as capas não podiam parar, por isso um tal de Chirindza foi colocado para conceber as capas, mas o jornal sem o editor Trindade não era o mesmo. E foi sob a chefia de Chirindza que as capas do jornal foram enterradas. O jornal faliu e eu, estagiário de meia tigela, baixei as orelhas, enterrei a cauda das mãos entre as pernas para a qualquer momento ser afastado como uma cadela.

Uma vez o editor Trindade surgiu, já gasto, na redacção para criticar uma capa de Chirindza: com um molho de erros ortográficos. Quando saiu deixou, em forma de cheiro, uma enorme cauda com bocejos de comprimidos. Tinha na testa o número da sua campa em forma de veias. Parou nas escadas, chamou-me e disse: "já viste como os nossos colegas são?".

 

E depois disso não vi mais o editor Trindade. Vi o seu cadáver de costas, de olhos fechados, descendo pelas cordas numa cova no cemitério de Texlom. Ele tinha sapatos novos, mas desceu à cova pelas cordas. E os coveiros suados faziam barulho com pás no meio de orações de um padre branco; saímos todos do cemitério, uma voz seguiu-me, tombou a mão sobre o meu ombro e sussurrou "isto é uma capa e vende muito".

sexta-feira, 12 novembro 2021 07:42

O Senhor Deputado da minha turma…

A sua enorme barriga com cardume de lombrigas como a de um canguru em gestação e a habilidade de dormir de boca aberta na sala, levaram a turma toda a chamá-lo Senhor Deputado. Seu nome era Viriato Bernardo Maposse. Era um espectáculo vê-lo dormindo de boca aberta e as moscas aterrando zumbidos sobre a pista do seu mau hálito. De tempos a tempos despertava para humedecer os lábios com uma pincelada da língua e voltava a dormir. Saudades tuas, Viriato Bernardo Maposse.

 

Era um rapaz doentio e por isso, tal como os deputados, tinha muitas regalias: não apanhava papéis na sala, tinha imunidade total às réguas da tabuada e tinha subsídio de notas nas provas e redacções.

O Senhor Deputado por vezes ficava meses sem pôr o pé à escola e para justificar as suas ausências surgia um senhor velho, descalço, com um molho de receitas preso por um elástico e falava com a nossa professora. Era o pai do Senhor Deputado, dava para ver pelas escamas de fome que tinha nos lábios secos. O Senhor Deputado era evacuado de hospital em hospital, passava dias em clínicas de curandeiros e voltava sempre o mesmo; com resto de saúde espalhando-se pela sala quando respirava. E sempre fendia de comprimidos e raízes.

 

E toda a turma gozava com ele. O Zeferino era sempre o primeiro; ria-se das pequenas nádegas do Senhor Deputado que eram amputadas por seringas nos hospitais e apimentava a piada: “as rodas do Mercedes do Senhor Deputado estão sem ar”. E o Senhor Deputado ameaçava-nos com um soco que não conseguia arremessar, um soco cheio de ossos nas mãos. Às vezes o Senhor Deputado chorava, mas tinha sempre uma resposta: “tem regalias e ainda chora como se sofresse".

 

O Senhor Deputado reprovou quatro vezes por faltas e quando se preparava para reprovar pela quinta vez baixou as poucas pestanas dos olhos que tinha, abriu a boca e morreu no Hospital Geral José Macamo. Foi a primeira vez que o Senhor Deputado fez-nos falta. Com a morte do Senhor Deputado a turma toda ficou de luto, era como se fosse o país inteiro. Chefes de turmas de outras classes apresentaram-me a mim condolências porque era chefe da turma do Senhor Deputado.

“O Senhor Deputado afinal não tinha seguro médico?", perguntou-me o chefe da turma 7, da quinta classe. Não me recordo o que lhe respondi, mas recordo-me de ver, três meses depois, a pauta que anunciava o cadáver do Senhor Deputado como reprovado pela quinta vez. Uma escola injustiça, tão injustiça que até reprovava deputados mortos.

segunda-feira, 08 novembro 2021 05:24

Restos mortais de um País…

Quando a funerária meteu-se no cemitério com o cadáver do país enrolado num pano branco e trancado no caixão, os soluços dos presentes começaram a espumar. Eram soluços breves que decaíam das gargantas como pequenas cascatas. O país estreava-se no cemitério depois anos e anos lutando contra um cancro da corrupção.

Um fulano qualquer, metido em uma gigante bata, com o pescoço preso por colarinho branco como uma cadela, tropeçava a vista em páginas da constituição procurando pelos cânticos da despedida. Organizava a cerimónia e, de instante a instante, chamava o povo para perguntá-lo sobre os dados do óbito; nome, data de nascimento, filiação.

O caixão foi poisado e a boca da cova com dentes bem afiados por pás aguardava para engolir os restos do país. O país estava nu no caixão, tal qual sempre andou em vida. Depois de morrer não foi preciso deslizar as pestanas dos seus olhos, o país sempre andou de olhos fechados. Os coveiros da função pública ali estavam com canhões de pás para disparar contra o cadáver do país e irem-se embora antes das quinze e trinta.

 

E todos queriam despedir-se do país que foi evacuado pelos pés pelo cancro da corrupção no hospital central. Os tribunais envelhecidos por processos arquivados, os ex-presidentes suportando a velhice em muletas de poder, os senhores deputados sonecando sobre o fardo das suas barrigas cheias de subsídios.

 

Recordo-me de ter visto todas as províncias metidas em luto e evacuando bolhas de lágrimas em lencinhos. Um bando de jornalistas, sem dó, disparava setas de flash ao caixão do país e um exército de moscas, nas bordas do caixão, afinava as antenas para roer o muco do cadáver e os restos que o cancro não conseguiu engolir.

 

O fulano que dirigia a cerimónia leu artigos de consolação, recitou versos do hino nacional, encheu o cemitério de cânticos e decretos de esperança e desparafusou o caixão para a última despedida; as moscas antenaram-se sobre os despojos do país. “Esse país cheira mal”, disse um ministro.

 

No adeus. Primeiro foram os tribunais que foram sacudir uma vénia ao caixão, depois seguiram os ministros que tentavam fermentar lágrimas, depois seguiram as forças armadas que se comprometeram a proteger com honra e coragem o túmulo do país e depois os senhores deputados saindo, um a um, do túnel da soneca foram dizer adeus ao país.

 

O povo foi o último a despedir-se do país. Como sempre, apresentou-se com uma camisa descosida que não escondia a enorme barriga cheia de tripas e coágulos de fome, o povo que assistiu ao cancro do país sem se importar, o povo que no lugar de correr com as receitas para curar o país, corria com boletins de voto, o povo que elegia o melhor cancro para o país. O povo chorou perante o cadáver do país, mas a cerimónia teve de continuar, porque o povo nunca fez nada para que o país continuasse vivo.

 

O caixão desceu à boca da cova, as pás começaram a fazer o seu trabalho e as formigas exigiram subsídio, pois não queriam devorar um cadáver que já tinha sido esvaziado pela corrupção.

sexta-feira, 05 novembro 2021 05:30

“É a vida, amigo. Quem não gosta de viver?”

Corri com tralhas para entregar a um fulano que já estava com as malas prontas e as horas esgotadas para regressar a Maputo. Eram tralhas de saudades, de falta, de lágrimas que queria que ele ajeitasse-me na sua mala. Fiz tudo a correr, de modo que a caixinha de saudades fazia barulho como uma caneca num poço.

 

Arrastei tudo ao hotel onde se encontrava hospedado o fulano. O recepcionista, antes mesmo de cumprimenta-lo, desviou-me pelo indicador ao elevador. Era um tipo alto que tapava o bocal do telefone equilibrado ao ombro para fazer registos de datas num papel. “Reserva para o fim do ano, dois casais”. Tinha uma marca viva de aliança no dedo, talvez fosse divorciado, talvez a sua mulher tal como eu arrastou as malas e foi-se embora com um outro homem.

 

O quarto do fulano que partia estava no quarto andar. O elevador ressonou, dois alemães de cabeças plantadas no telhado do elevador, como futebolistas entoando hino nacional, ordenaram ao elevador que avançasse. Fiquei ali plantado e vendo pelos números, o elevador cavando sem parar o prédio: -1, -2, -3. De que ossos é feito a coluna dos elevadores, meu Deus?

 

Esperei pelo segundo corredor. As empregadas do hotel surgiam das pontas, como larvas, conduzindo gruas e camiões carregados de entulho de lençóis sujos e mantas com cheiro azedo dos turistas. As empregas surgiam com as mãos enterradas nos aventais e sobre os tapetes dos corredores não davam, levitavam sem nenhum ruído. O elevador novamente chegou a mim, arrastei as tralhas e entrei.

 

E no elevador estava o senhor ministro; ao seu colo estava deitada uma mulata, de cabeça murcha. De quando em quando, miavam-se palavras e o senhor ministro imigrava as mãos ao sutiã da mulata. Os beijos eram carregados de litros de saliva, dentro desses beijos era possível ouvir as suas línguas nadando como objectos afogados.

 

Era ele, o senhor ministro do meu país. A mulata, que tinhas as bochechas do rabo nas mãos do senhor ministro, a dado momento disse: “olha que o tempo já começou a contar aqui, querido”. E o senhor ministro ria-se sem parar e, quando parava, mexia o bolso e explodia mais um beijo na mulata. “Sabes que isso é meu trabalho, querido”, miava a mulata de mão estendida para receber as notas…

 

Chegamos ao sexto andar, puxei as tralhas, eles seguiam até ao nono. Baixei a máscara e disse no último segundo quando a porta do elevador juntava-se em jeito de beijo como eles: “bom proveito, senhor ministro da minha terra”. Dois minutos depois, quando tentava achar o quarto do fulano, vi o senhor ministro atrás de mim. “É o senhor jornalista, não é?”. E eu já sabia que o senhor ministro andava por cá, pois não tinha dado a cara no último conselho de ministros e sabia que o seu gabinete, em Maputo, andava selado.

 

O senhor ministro olhou-me como uma criança aflita num miolo de pão.

 

Molhou os lábios com o pincel da língua e novamente cuspiu-me na cara: “É o senhor jornalista, não é?”; depois fez um discurso longo e no fim tirou 200 euros e disse-me “é a vida, amigo. Quem não gosta de viver?”.

segunda-feira, 01 novembro 2021 07:06

A cueca do senhor Governador…

Trabalhava como jornalista quando fui apontado para cobrir a inauguração de uma fontanária numa província do sul do país. O gabinete do senhor Governador deu-nos ajuda de custo, mas tudo evaporou nas mãos do meu editor; dia seguinte o homem apareceu bêbado no jornal e disparou em todos lados: “vocês sabiam que o primeiro homem a ir à lua não bebeu remédio de lua”?.

 

Seguimos para a inauguração da fontanária. A fontanária tinha sido coberta com capulanas do Partido, rodeada por senhoras descalças de seios pingando de vazio e dois, três líderes comunitários com os ossos enterrados em pesados mantos de poder. Estava ali uma senhora da AMETRAMO que afiava uma lâmina para degolar pescoços de galinhas e verificava atenta a validade da farinha de milho que seria servido aos verdadeiros donos do bairro, os mortos.

 

Quando o senhor Governador chegou, as senhoras descalças de papaias caídas no lugar dos seios começaram a cantar hosanas e mais hosanas. E o senhor Governador, com sua esposa que deixava pegadas devido ao seu salto de madeira, saudou a população e descansou as nádegas numa cadeira que já tinha sido benzida pelo seu secretário. Não me esqueço de um jornalista que, de quando em quando, corria ao sol para buscar as pilhas do gravador que recarregava com os raios, não me esqueço de uma criança que ali vi, meu Deus, que tinha os lábios cercados por uma fortaleza de moscas que sorvia as bolhas de saliva que surgiam pelos cantos da boca.

 

O senhor Governador leu um enorme discurso, a senhora da AMETRAMO decapitou as galinhas que se puseram a rodopiar drogadas de morte, os líderes comunitários, de joelhos, falavam para um tronco e até hoje não sei o porquê de os mortos que tapamos no cemitério vivem, depois, debaixo das árvores. As senhoras descalças do bairro tropeçavam nos buracos que os saltos da esposa do senhor Governador deixavam no chão.

 

E chegou a hora da inauguração da fontanária, o senhor Governador inclinou-se para arrancar as capulanas do Partido, mas a sua blusa curta elevou-se e as suas nádegas enormes, que puxavam as calças para baixo, projectaram-nos a sua cueca. As senhoras do bairro cantavam com alegria ao verem a fontanária que surgia aos poucos do embrulho das capulanas e eu, ali atento, assistia à cueca suja do senhor Governador. A cueca era suja e tinha o elástico gasto que mesmo assim não se largava da cintura oleosa do senhor Governador.

 

Vi a cueca e pensei nos tantos elásticos gastos que rodeavam o senhor Governador. Pensei nos elásticos de dinheiro que tinha gasto com milhares de pessoas para inaugurar uma torneira de uma simples fontanária, pensei nas milhares de cuecas que se nos mostram em todo país, porque afinal de contas vale a pena ter um Governador que não mede esforço para gastar tanto e mostrar o seu elástico gasto.

 

A população agradeceu pela fontanária e não se esqueceu de dizer ao senhor Governador que, tal como ele, já andava com o elástico da paciência gasto; o Governador aplaudiu e todos esticaram os elásticos das vozes nas cinturas das gargantas. O mesmo Governador depois de alguns dias foi seguido os passos por um tribunal porque tinha gasto às escondidas os elásticos dos cofres do seu gabinete. Ao tribunal puxou a blusa, apertou o cinto e negou que tinha gasto o elástico do dinheiro público.

 

E parece-me que nós um pequeno país de elásticos gastos; quem não acredita que vá levantar as camisas dos governadores para ver os elásticos gastos que têm nas cinturas. É tanto malabarismo que fazem com a cintura para permanecer no poder e talvez seja por isso que têm os elásticos gastos e sujos. Quanto sofrem os Governadores, obrigados a governar províncias e nem um minuto resta-lhes para governar as suas cuecas, nem um minuto têm para verificar se a sua governação tem ainda elástico suficiente para se segurar à cintura da política.

 

Depois de abrir a torneira de bronze da fontanária o senhor Governador fechou a cerimónia dizendo: “nós sempre nos esticaremos e incluiremos a todos na nossa elástica cintura do desenvolvimento”.

Quando a Federação Moçambicana de Futebol foi arrastada pelos pés para fora do jogo, com seus dirigentes que passavam a vida soprando apitos de sono nos escritórios como pastores de gado, todas as bolas foram transformadas em berlindes e assim surgiu dessa devastação a Federação Moçambicana de Berlindes. O timbre da nova federação era um berlinde submerso num buraco e um enorme dedo indicador em posição de remate.

 

Umas das primeiras obras da Federação Moçambicana de Berlindes foi a massificação da nova modalidade; a federação comprou um rebanho de retroescavadoras para abrir buracos que facilitassem a prática da modalidade. E não houve muito trabalho, visto que em todas as regiões do país o que não faltava eram buracos. Na própria sede da federação existência um enorme buraco deixado pela direcção de futebol que servia de campo de treinos das sub-selecções.

 

A selecção nacional de berlindes treinava em diversos campos bem equipados que temos em todo país, mas a estrada nacional número um era o palco predilecto. Claro que fazia todo sentido ter uma selecção que aproveitasse os buracos do país do que uma federação de futebol que afundasse a selecção em buracos. O Governo apoiou muito a selecção nacional de berlindes: financiou sem medir esforços projectos que ampliassem os buracos do país.

 

Foi muito curioso ver a federação nacional de berlindes aproveitando-se dos enormes buracos deixados pela federação nacional de futebol para praticar a sua modalidade. A selecção nacional de berlindes ganhava tudo que fosse campeonato mundial, aliás, enquanto a federação nacional de futebol ocupava-se em encher os bolsos de moedas, a outra enchia os buracos dos bolsos com berlindes novos e taças. Se a memória não me falha, a última vez que a selecção de berlindes perdeu num campeonato mundial, a população saiu furiosa à rua armada de alcatrão, ameaçou tapar todos os buracos e assim acabar com a modalidade e todas as derrotas azedas, mas a polícia, no seu exemplar trabalho, interveio, impediu as manifestações e recolheu todas as barras de alcatrão aos seus armazéns. Tapar os buracos da selecção era, sem dúvidas, um enorme insulto ao desporto nacional e ao esforço imensurável do Governo.

 

A modalidade dos berlindes nos buracos cresceu; o Governo não parava de inaugurar mais buracos em todo país, a bandeira de Moçambique, pelo dom dos buracos e dos movimentos dos dedos, era erguida em todo mundo e há quem viajava para o país para conhecer os buracos onde eram formados os melhores do planeta. A federação moçambicana de futebol nunca mais fez falta; os estádios foram transformados em mercados, os camiões de batatas e cebolas invadiram o Estádio Nacional de Zimpeto, as plantações de alface e couve galgaram, como trepadeiras, as bancadas do Estádio da Machava e assim o desporto cresceu.

 

A selecção nacional de berlindes usava luvas, fazia jogos amigáveis nos luxuosos buracos de Burundi, Eritreia e Malawi, testava as penalidades com os dedos nos buracos oficiais dos mistérios e sempre usava as redes das balizas da antiga federação moçambicana de futebol para pescar mais vitórias em campeonatos mundiais. Os campeonatos mundiais aconteciam no nosso país, pois a FIFA dos berlindes rendia-se e curvava-se à excelente conservação que fazíamos das nossas covas. Nunca fomos reprovados por falta de covas excelentes.

 

Quando a Federação Moçambicana de Futebol foi arrastada pelos pés para fora do jogo, com seus dirigentes, os berlindes ganharam espaço e todos pusemo-nos a gritar as taças que nos qualificavam para os buracos das nossas satisfações. E assim fomos conhecidos como o país dos berlindes e dos buracos.

quarta-feira, 20 outubro 2021 07:39

Dá-me um abraço, Mariano Nyongo

Mariano, vi-te nas fotografias deitado de costas como uma baleia cuspida pela fúria do mar, os teus olhos pendurados no rosto pareciam duas lâmpadas fundidas balançando e divertindo os insectos das tuas sobrancelhas. E aparece-me que tinhas muita pressa em morrer, pois nem uma lâmina de gilete passaste pela barba e não baixaste os lábios para esconder os molares. A vida não é cruel, os homens é que o são e tu eras homem.

 

E porque antes de morrer não pediste apenas um minuto, um minutinho, para vestires o fato que nos exibias na televisão, um minutinho para te deixares estar no espelho e arrumares o nó da gravata, um minutinho para juntares a tua Junta e dizeres um simples adeus, um minutinho para mostrares as costas à tua Junta e depois caíres morto de costas. Custava-te pedir um minutinho?

 

Não te escondas de mim, Mariano. Eu apenas te quero ajudar a carregar o teu corpo cheio de balas, talvez seja pesado demais; quero acender uma pequena vela e fazer sinal de cruz com o mesmo indicador que usavas para accionar o gatilho. A vida não é cruel, os homens é que o são e tu eras homem. Foste cruel, a vida é cruel, os homens são cruéis e tu eras homem. O melhor que podemos ter no mundo é um abraço, Mariano. Não há DDR que nos tire um abraço, não há um ex-guerrilheiro do abraço, não há subsídios que nos afastem do abraço e um abraço nunca precisa de mediadores. 

 

Dá-me um abraço, Mariano Nyongo, e eu tentarei orar pela tua alma. Juro-te que Deus tem ouvido as minhas orações, juro-te que Ele pode arranjar-te uma lâmina para barbeares o rosto, um pequeno fusível para pôr nos teus olhos fundidos, dar-te um minutinho para correres atrás do teu fato e talvez um minutinho para desarmar-te da morte.

 

Ouves-me, Mariano? A vida não é cruel, os homens é que o são e tu eras homem. Não quero falar dos camiões que atacaste, das pessoas que fuzilaste, das paisagens de sangue que meteste pelas janelas dos autocarros, dos homens que pastavas nas matas e das tuas mãos inchadas de calos de armas. Não quero falar disso. Quero falar dos teus olhos, que vi nas fotografias, que pareciam duas lâmpadas fundidas, dos teus olhos que não tinham força para virarem ao seu amigo de lado e ciciar: “vês que a vida é cruel, amigo?”. Os teus olhos que mesmo abertos tropeçavam no vazio.

 

Não quero falar das tuas reivindicações e nem dos teus homens que viviam nas matas e saíam como hienas para atacar camiões. Podia falar do saco plástico onde foste embrulhado como um cão atropelado, mas eu quero falar dos teus olhos, Mariano, mas eu quero abraçar-te. Tu mataste, foste morto e a qualquer dia todos terminamos assim; não se pode dar muita confiança a um país que carrega uma arma na bandeira. Falando em bandeira, Mariano, achas que valeu a pena tentar erguer a bandeira da tua resistência? Não sou católico, mas posso rezar o terço, quem sabe cada missanga do terço cure-te as feridas das balas e os teus olhos fechem-se de vergonha e peçam perdão por tudo.

 

Dá-me um abraço, Mariano Nyongo. Não perdes nada em dar-me um abraço, nada de ti hoje resta. Engano-me; restam fotografias tuas que serão exumadas das gavetas e tatuadas com cruzes vermelhas à testa, resta uma arma tua que vai enferrujar de cobardia porque não te soube proteger e resta esse meu abraço que não queres receber.

terça-feira, 12 outubro 2021 11:28

O punk do meritíssimo juiz é uma fraude

Claro que aquele punk é uma total fraude. Nos primeiros dias de julgamento, confesso que disputei as almofadas do sofá com os gatos para ouvir e ver o juiz. Os meus gatos miavam e enrolavam as antenas das suas caudas sobre as minhas pernas e eu com um frasquinho de pomada acompanhava o julgamento, pois o juiz já nos tinha dito que era alérgico à corrupção. Não sei, mas se a alergia o atacasse podia esfregá-lo através do ecrã da televisão a pomadinha contra a alergia. Todos reclamam naquela tenda: de fome, de cansaço, dos sapatos com a graxa comida por poeira, mas o juiz é o único que não se revolta contra a pomada de alergia que não tem. (Será que ainda precisa?)

 

Deixei, aos poucos, de acompanhar o julgamento, pois o juiz a cada dia virava uma pequena ave naquela tenda; abria as asas da sua bata e as punha sobre os seus registos como uma galinha aquecendo os seus ovos. E de quando em quando, o juiz cacarejava para pôr ordem na tenda, mas os pavões de farda amarela sobrevoavam sobre as suas ordens. E o juiz coçava-se sem parar, talvez precisava da sua pomadinha.

 

O juiz depois disse-nos que era católico, talvez tenha sido a partir desse momento que nos encheu de sacramentos de desesperança que revelaram a nossa comunhão distante com a justiça. Foi nesse mesmo momento que o juiz passou a ser acólito na tenda da BO: acompanhava as rezas em forma de provas do ministério público, ungia os réus com gotas de paciência e ajudava com toda sinceridade a afastar as bocas superiores que comeram a grande hóstia das dívidas.

 

Eu dizia que o punk do juiz é uma total fraude, pois claro. Mas antes do punk, falemos do juiz futebolista que não se faz presente na tenda. O meritíssimo juiz disse que gostava de futebol, muito bem. Mas diversas vezes o vi com possibilidades de remates bem acertados, com bolas que podia levar ao peito, mas sempre reclamou que não tivesse provas e nem indícios para encher a tenda de golos e gritos. E o juiz, às vezes, baralha tudo, pois coloca-se como árbitro e indica a baliza em que se deve marcar e diversas vezes apita um fora-de-jogo quando os réus avançam com dribles de nomes na grande área. Haja paciência, senhor juiz. Se a tenda não tiver o relvado em condições, diga-nos; podemos pedir um tribunal em Marrocos.

 

Quem ainda não viu que o punk do juiz é uma total fraude? Quem já parou para julgar o punk do juiz? Um homem com punk sabe agir, sabe usar a calma para agigantar a justiça. Quem nunca viu os homens de punk manifestando-se na Europa, exigindo subsídios e colocando os governos entre a lâmina e o chicote? Senhor juiz, por favor, dê mínima dignidade ao teu punk. Curta o teu punk, mas por favor, não nos exija provas e indícios, aliás, a tua tarefa é julgar e não fazer recortes a alguns nomes dos processos. Deixa os recortes para os barbeiros. Se o senhor juiz levasse os processos todos ao salão, de certeza o barbeiro reclamaria muito dos cortes que tens feito aos processos e aos nomes.

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