Na generalidade, todos os quatro candidatos presidenciais na presente contenda eleitoral prometeram uma coisa que parece impossível de alcançar: a revisão dos contratos vigentes entre o Estado e as multinacionais que operam na Bacia do Rovuma. Daniel Chapo (da Frelimo) e Venâncio Mondlane (do Podemos) foram os mais incisivos na pronunciação dessa promessa. Mas nenhum deles explicou ainda, cabalmente, como e até que ponto essa revisão contratual pode ser feita.
Mas eu não sou o personagem principal nesta trama, também não sou um figurante. Sou o tabuleiro indicado para que todas as cenas passem por mim como nas pontes de betão, onde os camiões de grande tonelagem atravessam, fazendo com que os fundamentos de toda a estrutura estremeçam. Por vezes dá-me prazer vestir a pele que me atribuiram, de um inconsequente, porém noutras vezes sinto que o meu lombo não aguenta, sou frágil demais para suportar este papel, é como se o meu castigo viesse para ficar.
A informação que tenho é de vamos partir às quatro da manhã, então às três estarei de pé para aquecer água no fogareiro à carvão, e foi isso que eu fiz. A minha casa de banho é externa, e em cima da hora fui descobrir que a lâmpada fundiu, está escuro lá dentro. Recorri à lanterna do telefone que me dava a sensação de eu próprio ser um fantasma. Ou seja, não parece real alguém estar a tomar banho às três da manhã, num silêncio em que o único som que se ouve, é da água deslizando pela minha cutis.
Cheguei a pensar que a única pessoa que estaria acordada àquela hora, sou eu. Mas esses pensamentos não me perturbavam, o que me empolgava era a viagem que iria iniciar daqui a pouco. Uma longa viagem que terminaria numa cidade cercada de montanhas pedra, Tete, e eu conheço o percurso que passa pela espectacular cordilheira de Catandica. Do outro lado fica o Zimbabwe, onde se pode entrar também pela fronteira de Cuchamano. Pensava em tudo isto durante um banho que não durou mais do que dez minutos, um banho quente e agradável.
Ao sair da toilett vejo um homem parado em frente à porta da minha casa, na verdade uma silhueta virada de costas para mim, parecia Yupidu, e eu cubro as partes sensíveis com a toalha, entregando o meu tronco à cacimba fria que cai imperceptível, sem deixar, mesmo assim, de ser letal. Perguntei, quem é você!
Quem me responde é o silêncio, mas eu estou animado pela viagem que vai começar daqui a pocuo e já são quatro horas! Há uma rola que arrulha à esta hora e isso não é normal, pode ser sinal de mau agoiro. Ao mesmo tempo o meu telefone retine com um número desconhecido. Um cão que ladra lá fora de forma persistente, mas aqui na zona nenhum dos meu vizinhos tem cão. Sinto cheiro de tabaco aceso, alguém está a fumar.
Mas isto é um turbilhão, e o centro do remoínho sou eu, condenado com pena de tormenta, sem julgamento sem nada, o juiz da causa são os meus actos, os meus caminhos tortos. É por isso que estou aqui apenas com a toalha na cintura, e o tronco do meu corpo sendo molhando pela cacimba que cai em gotas microscópicas. Não consigo mexer-me.
Então já não tenho dúvidas de que estou perante as mandímbulas do lagarto mais frio do planeta, que se ri como as hienas, porém eu vou viajar. Em liberdade. Cantando as músicas copiadas do Salmos.
Eu sei que vocês andam ocupados em gravar músicas para os vossos candidatos. Sei que fazem isso em nome dessa coisa estranha que se chama cidadania. Eu sei. Também sei que cada um escolhe o seu caminho. Eu sei de tudo isso.
Meus queridos músicos, eu não sei se isso de cantar “vivas, vivas” de boca aberta, à espera de um naco de pão, é mesmo essa coisa estranha chamada cidadania. Eu não sei se vale a pena fazer do estúdio um pequeno santuário para recolher míseros dízimos políticos e nem sei se a vossa língua, depois de tanto ser usada, ainda reconhecerá o sabor delicioso de uma fatia de um bolo que se chama honra.
A lista é longa de músicos que caíram num lodaçal de nada mesmo depois de terem usado a língua como tapete para diversos candidatos. Quantos músicos morreram de malária nos corredores do hospital central sem uma moeda para comprar uma rede que lhes pescasse a vida, quantos músicos morrem em silêncio e depois transformam os seus fãs em pais para custear uns metros de uma cova no cemitério? Os queridos candidatos, nessa altura, enviam comunicados de pesar e nada mais.
Vocês são os responsáveis pela vossa pobreza, vocês perpetuam a fome, a miséria e a desgraça... Não é por acaso que, hoje, a associação dos músicos virou um bar, não é por acaso que hoje vocês dependem de feriados para ter espectáculos e concertos. Não é por acaso que transformam a música, em períodos eleitorais, em um pequeno corredor que dá acesso à copa na qual ficam toalhas de mesa cheias de restos…
E amanhã, quando a campanha terminar, correrão atrás de banhos-marias dos nossos casamentos e aniversários, trocarão as ordens dos coordenadores da campanha pelas ordens feitas pelo dedo indicador dos padrinhos nos noivados e cantarão “vivas” de amor a casais que não conhecem: isso só para terem algumas moedinhas. E assim vão vivendo, meus queridos músicos.
E, amanhã, quando um manto de febre cobrir-vos o corpo, correrão para o povo mendigar moedinhas para comprar uma cápsula de paracetamol. Eu sei que amanhã aparecerão nas telas a dizer que esse país não considera os músicos e vão chamar nomes a empresários sem, no mínimo, mencionar os vossos queridos candidatos.
Em outros países, tão pobres como o nosso, quando chega o período eleitoral, os músicos vigiam as ideias dos candidatos sobre as suas ideias culturais, os músicos não ficam em estudos gravando louvores políticos, eles apertam os candidatos em debates e correm, à estalada, os candidatos que se esquecem que os músicos também são profissionais como os médicos, engenheiros e advogados.
Queridos músicos, desejo-vos uma boa campanha eleitoral. E espero, que amanhã, usem as vossas músicas para, também, cantarem as promessas que não serão cumpridas pelos vossos candidatos.
M´saho é essa grande festa dos chopes, organizada anualmente para esconjurar os espíritos que têm trazido ventos infaustos por aqui. Mas há quem por outro lado, investe na destruição do mwenje, árvore de onde se extrai a madeira usada na produção da timbila. Subjaz ainda a sensação, neste cenário constrangedor, de que todo o remoinho provocado pelo toque e dança e canto desta tribo do sul de Moçambique, está a desvanecer. E o testemunho disso são os últimos festivais a que tivemos a oportunidade de assistir.
Warethwa! (Cuidado!)! Este é o grito deles de guerra desde os tempos. Na verdade quando a xipalapala ecoa, é preciso ter-se cuidado com o que vem das mãos e de todo o corpo e da alma dos chopes. Ou seja, depois do grito, Quissico ressurge. Engrandece-se. Embevece. E é projectada para o mundo inteiro. Todos querem estar aqui para se embebedarem com a loucura da timbila.
Mas hoje em dia o M´saho já não é o mesmo. É muito provável que esteja a ser diluído pelo tempo. Não se sente a vertigem, e ainda por cima estamos em presença de um Património Cultural da humanidade. Então, há coisas que os chopes não podem fazer sozinhos, mesmo sabendo-se que eles nunca se resignaram em nenhum momento.
Não que não haja esse respeito, mas a sensação que tenho é de que está-se a fazer pouco, começando pelo palco que acolhe as orquestras. Ou seja, para quem chega antes de começar o M´saho, e antes de chegarem as pessoas da assistência, regra geral o que se vê são pequenos sinais como dísticos apelativos com pouca chama em termos de imagem. E pior do que isso, olhando-se para o palco, a pergunta que vai surgir imediatamente será: é aqui onde vamos assistir às loucuras dos chopes? Na verdade o palco instalado não é de forma alguma digno de receber uma manifestação de tão elevado porte cultural.
É aqui provavelmente onde começa, ou se agudiza a contrariedade. Talvez a decepção. Os executantes são acolhidos naquilo que tende mais para um alpendre carrancudo, do que propriamente para um palco. Quem construiu aquilo provavelmente não tem sensibilidade sobre o que é um festival desta dimensão, sobre a grandeza da timbila no mundo. Não só temos na obra os irritantes pilares múltiplosÉ urgente repensar-se no local da realização dos festivais de Timbila. Zavala tem um tesouro invejável que são as Lagoas de Quissico, esplendorosas, algo que não pode passar despercebido durante o evento. As Lagoas de Quissico devem fazer parte do Festival, e, fazer com que aquela paisagem seja pertença do M´saho, passa necessariamente por repensar o palco.
É imperioso e urgente levar as coisas mais a sério, porque aqueles que vão à Quissico pelas alturas do M´saho, querem ver a beleza em si estampada em todo o lado. Os estrangeiros em particular, vão para ali porque já ouviram falar desta manifestação cultural e sabem que é Património Cultural da Humanidade. Sabem que a festa da timbila é elevada, então os organizadores precisam de corresponder à todas as expectativas, tornando o festival num importante eixo que deve passar também pela capacidade de fazer a comunicação e imagem. O Marketing. E espreitar aquilo que se faz noutros eventos pelo mundo fora, porque o M´saho tem dimesão mundial. E em tendo uma dimensão universal, é preciso fazer algo que justifique isso.
Pelos 49 anos de independência e a propósito das eleições de Outubro, um convite à reflexão e ao debate
(“A tragédia maior não são os males causados pelos maus, mas sim o silêncio dos bons” -Martin Luther King)
Se nós fossemos atrevidos...
Havíamos de querer ser mais do que meros expectadores e comentadores do que se passa no nosso país. Havíamos de saber exercer uma cidadania ativa, pacífica e responsável, para passarmos a ser os agentes da mudança que queremos ver acontecer na nossa terra.
Havíamos de nos inspirar no exemplo dos poucos ativistas, intelectuais e outros cidadãos, que corajosamente têm estado a reclamar espaços de intervenção na esfera pública, exercendo uma cidadania responsável; havíamos de ampliar plataformas de reflexão e debate; havíamos de discutir à luz do dia, pacífica e candidamente as nossas muitas perplexidades e inquietações; havíamos de comparar as nossas distintas visões para começar a construir a nossa visão comum do presente e do futuro do nosso pais; havíamos de juntos vislumbrar soluções de consenso, para os múltiplos desafios que confrontam Moçambique.
Havíamos de juntos tratar de obter do Poder a garantia que essas plataformas e esses debates serão defendidos e protegidos pelas nossas forças da Lei e da Ordem contra as criminosas agressões punitivas daquelas forças que são intolerantes de análises independentes e descomprometidas, e de vozes que expressam opiniões contrárias ou apenas distintas da opinião oficial.
Havíamos de ser capazes de conceber e praticar uma governação eficaz, transparente e atenta às necessidades e aspirações dos cidadãos. Havíamos de tratar de envolver o conjunto da sociedade moçambicana no esforço de construir hoje e nos anos que vêm, uma nação unida, harmoniosa e próspera.
Havíamos de fazer dessas reflexões, discussões e ações momentos altos de diálogo produtivo e inclusivo envolvendo, na medida do possível, as várias identidades e pertenças que definem Moçambique: mulheres e homens; jovens e velhos; as distintas etnias e raças; as diferentes classes sociais, sensibilidades politicas e persuasões religiosas. Nesse exercício, havíamos de prestar particular atenção às vozes das crianças e dos jovens, a quem o futuro pertence.
Havíamos de juntos reexaminar o projeto de nação e sociedade esboçados durante a luta de libertação; havíamos de formular ideias, planos e programas para reavivar e adaptar esse projeto à nossa realidade contemporânea.
Havíamos de juntos explorar caminhos para consolidar e aprofundar a unidade nacional, na base do reconhecimento, respeito mútuo, harmonização e união das nossas distintas identidades acima descritas. Por outras palavras, havíamos de reinventar e reconstruir a nossa “moçambicanidade” com base na nossa diversidade e num projeto comum de nação.
Havíamos de reconhecer que de entre os muitos males que nos afligem, a democracia “de faz de conta” e o seu irmão gémeo, o capitalismo brutal que praticamos, não funcionam e não nos estão a servir. Pelo contrário, devido à sua natureza corrosiva, a nossa democracia e o nosso capitalismo de hoje levam à corrupção dos valores fundadores do nosso país, à traição dos princípios em que se fundamenta a nossa nação, à perda de valores éticos e ao apodrecimento das instituições do Estado.
Havíamos de reconhecer que esta democracia e este capitalismo dão cobertura à acumulação de fortunas de proveniência muitas vezes duvidosa nas mãos de oligarcas e vendedores de influência politicas.
Havíamos de inequivocamente rejeitar essa democracia e esse capitalismo doentios porque eles ameaçam apagar a nossa tradicional convicção que “eu sou porque nós somos”; pelo contrário, eles levam-nos a insistir que eu, eu, eu, antes de tudo e em última analise, eu. Em vez de nos ajudarem a afirmar o Ubuntu e a Ujamaa das nossas tradições filosóficas, eles promovem a ideia que eu sou o centro, o principio e o fim de tudo.
Havíamos de dizer que esta “nossa” democracia e este “nosso” capitalismo em definitivo mataram o mítico homem novo das nossas ambições e inviabilizaram a nova sociedade dos nossos sonhos.
Havíamos de reconhecer que a democracia e o capitalismo que praticamos apenas servem a uma minúscula elite que, apesar de todo um discurso em contrário, despreza uma governação eficaz, justa e equitativa, nem se preocupa com a construção e consolidação da paz, e só se ocupa em acumular, a qualquer custo, poder e dinheiro.
Havíamos de denunciar essa democracia e esse capitalismo doentios como sendo cada vez mais das “elites”, para as “elites” e pelas “elites”, em que o povo só serve para regularmente depositar o voto em dirigentes mais ou menos incompetentes, em partidos políticos mais ou menos corruptos que só existem para perpetuar o poder das “elites”.
A democracia e o capitalismo que praticamos promovem uma cultura de sujeição a um egoísmo sem limites, de veneração desmedida ao dinheiro, bem como a uma obsessão doentia com a ostentação de bens materiais.
Cada vez mais, esta democracia e este capitalismo doentios lembram um sapato apertado e torto, que estamos a tentar calçar de trás para a frente.
Havíamos de resistir a essa democracia e a esse capitalismo como promotores da acelerada divisão entre os que têm e os que não tem; como fenómenos que exacerbam as linhas de fratura entre as entre velhos e novos; entre a maioria e as minorias raciais; e no interior da maioria, entre os diversos grupos étnicos; entre confissões religiosas e as classes sociais que compõem a rica tapeçaria da nossa sociedade; entre o campo e a cidade; e nas cidades entre os bairros “finos” e as cidades de caniço.
Se nós fossemos atrevidos e corajosos...
Havíamos de denunciar a feroz diferenciação entre nós como portadora dos ingredientes que envenenam a nossa unidade e matam a fraternidade, a solidariedade, a liberdade e a justiça para todos.
Havíamos de compreender que a nossa maior riqueza é a unidade.
Havíamos de voltar a afirmar a convicção que nos inspirou durante a luta anticolonial: que os do Norte e do Sul, do Oriente e do Ocidente, que os pretos, mulatos, brancos e indianos, novos e velhos, mulheres e homens, somos todos igualmente filhos e donos desta terra moçambicana!
Havíamos de decidir que nos cabe a todos abraçar e celebrar a nossa diversidade e preservar a nossa unidade para podermos construir e partilhar um destino comum; que somos obrigados pelos mesmos deveres e que temos todos igual direito à liberdade, à justiça, e à prosperidade.
Por essas razões, havíamos de retomar a construção da unidade nacional, do Rovuma ao Maputo e do Indico ao Zumbo como a mais importante e mais urgente prioridade para todos nós. E tal como fazemos a uma planta que queremos ver crescer forte e saudável, havíamos de constantemente alimentar e acarinhar a nossa unidade nacional.
Se nós fossemos atrevidos, corajosos e lúcidos...
Havíamos de insistir em pensar criticamente com as nossas próprias cabeças, em vez de passivamente aceitar conceitos e cegamente imitar modelos que nos são impostos ou sugeridos pelas forças do Norte Global. Assim, havíamos de controlar melhor o nosso presente e vislumbrar e desenhar melhor o nosso futuro.
Em política, na cultura e na economia havíamos de identificar os melhores dos chamados “valores universais”, adapta-los às nossas circunstâncias, misturando-os criativamente com os valores e praticas construtivas das nossas tradições; e havíamos de aprender a desenvolver mecanismos, comportamentos e praticas enraizadas na nossa historia, na nossa filosofia e na nossa cultura.
Enfim, se nós fossemos teimosamente atrevidos, corajosos e lúcidos...
Havíamos de transformar radicalmente o relacionamento entre o Estado e os cidadãos, estabelecendo uma governação verdadeiramente ‘do povo, para o povo e pelo povo’; havíamos de erguer instituições fortes e representativas da vontade de todos, desde a localidade, ao distrito, ao município, à província e à nação.
Havíamos de juntos construir a nossa Pátria e decidir o destino para onde queremos ir, traçar os caminhos que queremos seguir, calçando o nosso próprio sapato, à nossa medida.
Havíamos de juntos descobrir e desbravar os rumos que nos vão conduzir a uma nação mais unida, mais justa, mais solidária, mais próspera e mais feliz.
Aqui e agora, sejamos então teimosamente atrevidos, corajosos e lúcidos!
João Bernardo Honwana
Maputo, julho/agosto de 2024
[1] A intenção desta carta, dirigida por igual aos líderes das forças políticas no país e aos cidadãos, é a de apelar à reflexão e ao debate construtivo, pacífico e inclusivo sobre temas que me parecem relevantes na situação social, politica, cultural e económica prevalecente no nosso país.
Trata-se, acima de tudo, de encorajar uma cidadania descomprometida, independente, ativa, pacífica e responsável. Trata-se do propósito ambicioso de nos transformarmos nos agentes da mudança que queremos ver acontecer na nossa terra.
Há cinco anos, o meu primo perdia o braço na campanha eleitoral. Primo Silva estava pendurado numa camioneta com uma bandeira do seu partido. Ele que era desempregado, mas prometia emprego a outros desempregados, falava em programas de habitação e quando prometia estradas melhoradas e alcatroadas, o primo Silva escorregou e caiu da camioneta. E uma das rodas traseiras da camioneta passou por cima do seu braço direito. Era o começo de uma nova campanha.
Primo Silva foi carregado pelos seus companheiros e o seu braço, virado para o além, seguia de trás como uma pata partida de um cão. No hospital José Macamo, o primo Silva levou anos e anos contemplando o seu abraço rebelde que não obedecia aos seus movimentos. Ele levou anos para ser atendido, porque chegou com o abraço embrulhado na bandeira do seu partido e os médicos eram de um outro partido. Agradeço ao Dr. Ivan, que morreu ano passado, grande amigo, que em nome da nossa amizade passou por cima de todos os partidos e engessou o braço partido do meu primo em nome do partido.
Depois, o coordenador da campanha evacuou o primo Silva para a casa. Primo Silva, com uma pedra de gesso, chegou a casa com um braço, não conseguiu rodar a maçaneta da porta do quintal, ele que tinha dito que o seu partido ia abrir todas as portas do país. Arrastou-se com o defunto do seu braço, pingando milhares de dedos também mortos, para o interior de casa. A manga da camisa era um pequeno caixão e os botões serviam de parafusos que trancam os mortos na terra.
Depois teve de deixar de lutar pela democracia para lutar pelos gessos nos corredores de diversos hospitais; teve de trocar os panfletos do seu candidato por enormes papéis com fotografias do seu abraço. Era uma outra campanha que ele fazia. E até fazia promessas aos deuses, porque queria de volta o seu braço.
Hoje, o primo Silva, ali no bairro da Liberdade, tem um braço desprendido do seu corpo apesar de permanecer ali com ele, passa as tardes enxotando com insultos os putos do bairro que troçam dele “mano Silva braço de compasso”. Os putos riem-se dele. Primo Silva está neste momento na Liberdade à espera de um candidato que diga "vota em mim, vou trazer de volta o seu braço".