No passado dia 5 de Março, Celia Cumbe, a ex-vereadadora de Administração e Finanças da autarquia de Maputo, foi encontrada morta, metade do corpo carbonizado, num dos quartos da dependência onde vivia, na Matola "C", onde na parte frontal estava a construir um “casarão", tal como apurámos de boas fontes. Ninguém se deu conta do macabro acto. Um dos filhos terá quebrado a janela do quarto da finada e encontrado a mãe sem vida. Alegadamente, seus cartões bancários desapareceram. A polícia na Matola ainda não disse nada de substancial sobre se já tem pistas para desvendar o crime, seu móbil e suspeitos.
Nos dias subsquentes circulou uma narrativa apontando para suicídio mas a mesma foi desmentida através de insinuações segundo as quais sua morte encerrava traços indeléveis de “queima de arquivo”. Ou seja, ela estava a par de “ilegalidades cometidas” na gestão municipal anterior. Aventou-se a perspectiva de que ela ia entregar na vésperas as pastas ao novo vereador de Finanças de Eneas Comiche, o Dr. Eduardo Nguenha, um académico há muito envolvido na pesquisa sobre finanças municipais em Moçambique. Mas isso não era verdade. Cumbe já tinha entregue as pastas e inclusive manifestado sua disponibilidade para colaborar, onde o novo vereador deparasse-se com informações duvidosas ou omissões.
Três dias antes, ela foi-se despedir dos colegas do Paços do Concelho, na Praça da Independência, uma joia de coroa de arquitectura cuja imponência esconde uma lastimosa conservação. Célia Estava abalada para o Ministério da Agricultura e Segurança Alimentar (MASA), onde trabalhara no sector de Finanças e donde tinha sido retirada por David Simango, depois de um acordo com um dos seus melhores amigos, o Ministro José Pacheco (que dirigia o MASA e passou para os Negócios Estrangeiros). No dia em que se foi despedir, ela não aparentava estar a viver sob tensão, disse uma fonte.
Aparentava, isso sim, um ar sereno, mesmo depois de ter sido iniciada uma pré-auditoria pelo Tribunal Administravo, visando determinar que sectores devem ser passados a pente fino. “Sempre se manteve predisposta a colaborar”, garante outra fonte. À auditoria do TA, como entidade fiscalizadora externa da execução orçamental dos municípios, seguir-se-á a da Inspecção Geral de Finanças (IGF), e as duas prometem destapar o lado mais sinistro de uma das mais caóticas e corruptas gestão municipal de que há memória desde a implantação das autarquias locais em Moçambique.
É esperado que a investigação policial corra de forma rápida e que o caso não seja enterrado tão rapidamente, como acontece frequentemente quando a manipulação política ou corruptiva garantem a impunidade de criminosos e corruptos à solta em Moçambique. A auditoria e a investigação criminal deverão fluir agora como vasos comunicantes e o receio da colaboração de Célia Cumbe com a auditoria, onde ela poderia revelar detalhes escabrosos da gestão financeira do município, deve ser tido em consideração na lista dos possíveis móbeis do crime.
O descalabro da gestão de David Simango
Célia Cumbe é descrita como tendo mostrado serenidade nos últimos dias da sua vida mas esse era apenas o estado de espírito de quem já tinha entregue as pastas, deixando para trás um cargo onde vivia sob uma pressão vinda de todos os lados. Em Dezembro, ela se queixara a uma colega de que estava a viver uma fase negra e que pretendia ir de férias. Seus colegas vereadores estavam a pressionar-lhe para fazer pagamentos indevidos por fornecimentos e serviços não devidamente contratados e muitos deles sobrefacturados. A revelação mostra que a autarquia estava
à saque e, nas últimas semanas do mandato de David Simango, o saque era intenso.
Não conseguimos apurar se Célia Cumbe efectuou tais pagamentos indevidos mas as marcas de improbidade da governação de David Simango são terríveis. O antigo edil de Maputo está a ser investigado no Gabinete Central de Combate à Corrupção num processo ligado às obras de reparação da avenida Julius Nyerere pela construtora portuguesa Gabriel Couto, entre 2014/15. Detalhes suspeitos sobre a viciação dos materiais de construção por parte da empreitreira foram investigados e arquivados, tendo emergido desse processo um volume de evidências ligando David Simango a um prédio por ele adquirido no quadro da adjudicação daquela obra. O processo está numa fase acelerada de investigação. “Carta” sabe que, no ano passado, através de canais diplomáticos, chegou às autoridades mocambiçanas a informação de que David Simango (e Manuel Chang) movimentavam contas chorudas em bancos portugueses.
Com a auditoria em curso, parece prematuro enxergar a profundidade do buraco que Eneas Comiche encontrou na edilidade. Os sectores de Infra-Estruturas e Transportes (onde os vereadores eram respectivamente Víctor Fonseca e João Matlombe) são os mais problemáticas, com um rol de evidências de adjudicações suspeitas, sobrefacturação em massa e colusão como modo de vida.
Comiche encontrou um cenário dantesco de empresas fantasmas servindo a edilidade, e para as quais nunca faltaram pagamentos, mesmo nos momentos em que era difícil pagar salários. A empresa que presentemente está a reabilitar passeios é suspeita de pertencer a um antigo vereador. Nos últimos anos, David Simango criou uma empresa municipal para gestão de parques, na perspectiva de ir buscar dinheiro através das famigeradas parcerias público-privadas. Mas o facto, apurado por “Carta”, é que, ao invés de ir buscar dinheiro, essa empresa virou um sugadouro das finanças da autarquia. Ao invés de trabalhar ela própria, terceirizou a manunteção de duas casas de banho em dois parques da cidade a uma outra empresa que cobra para isso 8 milhões de Meticais por mês. E o pagamento dessa factura é uma das prioridades mensais.
Na semana antepassada, o edifício do Paços ficou sem corrente eléctrica. A instalação, antiquada, rebentou e o quadro foi-se pelos ares. O apagão foi imediato. A solução era activar o gerador mas...a fornecedora de combustíveis fechou a torneira por dívidas acumuladas. Quem trabalha naquela casa diz que o cenário interior é caótico. Condutas de água avariadas e aparelhos de ar-condicionado escangalhados por falta de manuntenção. Eneas Comiche e a equipa têm uma batata quente nas mãos. Vão precisar de muita ginástica para colocar a edilidade nos carris. E David Simango? Perante tamanho descalabro seu futuro parece ainda uma incógnita. (Marcelo Mosse)