As manifestações populares contra os resultados das eleições gerais convocadas pelo candidato presidencial Venâncio Mondlane começaram no mês de Outubro, pouco depois do anúncio dos resultados gerais pela Comissão Nacional de Eleições (CNE), considerados fraudulentos. Desde então, já são contabilizados mais de 100 feridos a tiros pela Polícia da República de Moçambique (PRM), só em Maputo.
No último domingo, "Carta" visitou vários jovens que se encontram internados na maior unidade sanitária do país, o Hospital Central de Maputo (HCM), e que foram vítimas das atrocidades cometidas pela Polícia, no âmbito das manifestações que ocorrem por todo o país, para entender as razões de suas lutas.
Num primeiro momento, as voltas que a nossa reportagem deu na ortopedia do HCM fizeram soar vozes de jovens que, de longe, pareciam estar numa roda de conversa, de tanto que gritavam entre eles. Quando entramos no quarto escolhido para agrupar os jovens "vítimas das manifestações", encontramos logo na entrada Vasco Daniel, de 36 anos de idade, pai de dois filhos, trabalhador por conta própria (biscateiro) e sonhador.
Daniel foi alvejado com um tiro na perna durante as manifestações do dia 7 de Novembro, quando se encontrava marchando pacificamente com outros jovens. No lugar de dialogar com os manifestantes, a Unidade de Intervenção Rápida (UIR) lançou gás e começou a disparar balas verdadeiras para matar indiscriminadamente, em nome do Estado.
“Este país precisa de melhorar, ninguém me vai parar. Vivemos na miséria há mais de 40 anos. Neste país não há emprego, somos obrigados a viver de ‘biscate’ para sustentar as nossas famílias. Eu estou mal agora, mas quando sair daqui, vou continuar com a minha luta. O que eu comecei tenho de concluir. Mesmo no estado em que me encontro, não vou parar de lutar. Mesmo com muletas, eu vou sair para me manifestar até que a verdade eleitoral seja restabelecida e que o meu presidente Venâncio Mondlane tome o seu lugar para a melhoria da situação do país”, clamou o nosso interlocutor.
“Não vou desistir da minha luta, não posso desistir. Não posso construir uma casa e deixá-la pela metade. Tenho de concluir e entrar para dormir em paz com a saída da Frelimo do poder. Portanto, a luta que iniciei vai até ao fim”, disse.
Neste momento em que seus “biscates” estão parados, por estar internado no Hospital Central de Maputo, consegue comprar comida para seus filhos graças ao apoio que tem recebido de pessoas de boa-fé, que quase todos os dias depositam um valor na sua conta M-pesa.
Conversamos também com Raimundo Alexandre, de pouco mais de 35 anos, pai de um filho e que trabalha por conta própria, pois, até ao momento não consegue emprego. Frustrado com a situação em que vive há muito tempo, saiu às ruas para ver se as coisas mudam.
“Fui baleado nas manifestações do dia 24 de Outubro, em Maxaquene, a lutar pelo bem-estar dos meus irmãos, dos meus filhos e da minha família. Eu estava no meio das manifestações a defender os meus direitos e não estava a vandalizar nenhum bem, quando a Unidade de Intervenção Rápida, a dita Polícia da Frelimo, chegou e começou a balear-nos com intenção de matar”.
“Quando eu sair desta cama do hospital, volto às ruas para defender aquilo que são os meus direitos. Eu e muitos de nós votamos em Venâncio Mondlane, mas o governo de Nyusi quer roubar o nosso direito de voto. Há muito tempo que a minha vida foi alienada. Toda a riqueza deste país tem donos. Eu quero defender a honra deste país, não tive a chance de estudar porque, muito cedo, me tornei pai e tive de procurar sustento para o meu filho. Nunca tive acesso ao emprego, por isso tive de me reinventar”, frisou Alexandre.
Sem se identificar, outro jovem internado no hospital disse que a luta que os jovens estão a travar é devido à frustração que carregam por conta de várias injustiças perpetradas pelo governo. “Grande parte de nós, os jovens que saímos para marchar na Vladimir Lenine, não trabalhamos. Não tivemos oportunidades de estudar. Por vezes, dormimos duas a três noites sem comer, mas lutamos para pôr um pouco no prato dos nossos filhos. Nós engolimos muito e hoje dizemos ‘basta’. Não queremos que essa desgraça, que hoje vivemos, se perpetue por outras gerações”, frisou.
“Eu saí à rua em busca de um futuro melhor para os meus filhos e para os moçambicanos. Não luto por mim, mas sim pelo povo que vive injustiçado dia após dia. Sei que, neste momento, meus filhos podem estar sem o que comer. Mas tenho orgulho de ter dado o meu corpo às balas para libertar este país das mãos destes ladrões. Sairei às ruas quantas vezes forem necessárias para não permitir que a FRELIMO continue a governar este país e as nossas vidas e a nos fazer viver debaixo de tanta miséria. Tenho meus sonhos e meus anseios e quero um país melhor e digno para os meus filhos”, concluiu.
Denilson Alves, outro sobrevivente das manifestações, que levou um tiro no braço no dia 7 de Novembro, diz que a sua luta vai continuar até que a verdade eleitoral seja reposta pelo Conselho Constitucional.
“Não é à toa que milhares de jovens saem às ruas para contestar. São milhares de jovens que gritam nas ruas pelo bem desta nação. São vários anos a sermos escravizados por este governo. Para mim, valeu a pena toda esta luta. Quando eu sair da cama deste hospital, vou continuar a lutar porque nós PODEMOS viver uma vida melhor neste país. Para que haja mudanças, é necessário que alguns de nós enfrentem o perigo por uma causa justa. Neste país, vivemos situações muito injustas e hoje eu só quero um Moçambique digno e justo para os meus filhos e netos. Quando tudo passar, vou dizer em viva voz: valeu a pena”.
Em conversa com Afonso Muchanga, de 18 anos de idade, estudante da 11ª classe, e um dos sobreviventes do fatídico acidente da “Texlon”, ocorrido na noite do último sábado, que ceifou a vida de outros sete jovens, ele contou que o seu sonho é viver num país melhor, onde todos os seus irmãos tenham uma educação de qualidade e melhores condições de vida.
“Eu saí à rua com os meus amigos para fazermos a greve do ‘panelaço’. Estávamos na zona quando decidimos nos aproximar da estrada para nos juntarmos a outro grupo da área, mas ficamos parados no passeio, tocando as nossas panelas. Quando dei por mim, já estava estatelado no chão e sangrando muito”, afirmou.
“Não vi sequer como aquele carro veio, porque foi tudo tão rápido. Ele deixou a estrada e veio para cima de nós, que estávamos no passeio. Se eu pudesse voltar atrás, teria dado ouvidos à minha mãe, que sempre disse para eu não sair de casa durante essas manifestações. Hoje estou aqui, nesta cama, e não sei o que vai ser da minha perna quando eu sair daqui. Hoje sou chamado de vândalo, mas eu estava apenas fazendo uma manifestação pacífica. Mas estou muito arrependido”, lamentou Muchanga, com um olhar sereno e olhos quase a lacrimejar.
À "Carta” também falou Fábio Cipriano Alberto, de 22 anos de idade, residente no bairro Luís Cabral. Conta que deu entrada no HCM no último sábado (16), vítima de cinco tiros nas duas pernas, quando tentava fugir da polícia que decidiu fazer “uma caça às bruxas” dentro do bairro.
“Eu estava na zona com outros vizinhos a fazermos a manifestação das panelas quando, de repente, nos apercebemos que homens da UIR decidiram entrar no bairro à procura de jovens que estavam a participar das manifestações. Meus vizinhos correram para uma direcção que eu julguei ser a errada, mas afinal de contas caí na minha própria emboscada”, conta.
“Deparei-me com um agente que me deu cinco tiros nas duas pernas e mesmo em meio a tanta dor, tive de simular a minha própria morte. E, para o agente ter a certeza de que eu morri, pisou-me a cara, do lado do olho e disse ‘este já nos deixou’ e foi embora. Eles só te deixam quando têm a certeza de que tu já morreste. Por isso, a UIR sempre atira para matar civis. Mas estou orgulhoso de mim, apesar de estar hoje aqui deitado nesta cama do hospital em meio a muita dor”, continuou.
Já Aldo Moisés, um jovem militar que também conversou com a nossa reportagem, contou que foi vítima de uma bala perdida no bairro Luís Cabral quando acompanhava os seus amigos que o foram visitar.
“Não entendo essa forma de actuação da UIR. Muitos jovens que estão na rua estão cansados das injustiças deste país. Um país rico em recursos minerais, mas que tem donos; um país que tem tudo para proporcionar as melhores escolas para os nossos filhos, mas não se importam. O sector da saúde do nosso país é deplorável. É disto que os jovens estão cansados. Por isso, saem à rua para lançar um grito de socorro. (Marta Afonso)