Certamente que o título lembra-lhe a Primavera Árabe que somada aos “Dias de Azagaia” que correm, podem o levar a pesquisar na internet sobre a Primavera Árabe. Assim procedi. Eis alguns extractos:
“Qual foi o ponto de partida da Primavera Árabe?
A onda começou em 17 de dezembro de 2010, quando Mohamed Bouazizi ateou fogo em si mesmo na cidade de Sidi Bouzid (centro da Tunísia) quando policiais impediram que ele vendesse vegetais em uma banca de rua sem permissão”
“Como foi motivada a Primavera Árabe?
Primavera Árabe foi um conjunto de manifestações populares que aconteceram nos países de língua árabe do Norte da África e do Oriente Médio a partir de 2010. Governos autoritários, truculência policial, desemprego e outras consequências da crise econômica de 2008 estão entre as principais causas da Primavera Árabe”
“Quais eram as principais reivindicações defendidas pela Primavera Árabe?
… de modo geral, as reivindicações populares são voltadas para a melhora da qualidade de vida e pela liberdade de expressão. As revoltas foram motivadas principalmente pela corrupção dos governos autoritários da região, pelas altas taxas de desemprego e pela falta de democracia”
“O que foi a Primavera Árabe e quais foram os seus desdobramentos?
Primavera Árabe caracterizou uma série de protestos e revoltas ocorrida nos países de língua árabe a partir do final de 2010, em que a população de diferentes lugares foi às ruas com diferentes objetivos, que giraram em torno da derrubada de ditadores, da realização de eleições e da melhoria das condições de vida”
Concluindo: tal como a Primavera Árabe, os acontecimentos dos últimos dias em Moçambique, decorrentes das homenagens ao artista Azagaia, mais os que nos chegam de outras partes da África Subsaariana podem estar a sinalizar a chegada de uma outra e nova estação política: a Primavera Bantu.
Num cenário de protestos, a reacção das autoridades políticas, os seus determinantes e efeitos na actividade dos manifestantes a curto, médio ou longo prazo, estão no centro das preocupações no sub-campo da Sociologia das Mobilizações. Por exemplo, nos anos 70, Ted Gurr tinha chamado à atenção para a importância da variável repressão e a dificuldade de se pensar sobre ela em termos de análise política. Por sua vez, Charles Tilly, em From Mobilization to Revolution, salientou, também, que a repressão ou tolerância a que o grupo mobilizado está sujeito e as oportunidades ou ameaças a que está condicionado, actuam sobre a ‘estrutura dos custos e benefícios da mobilização’.
Desse ponto de vista, Tilly sublinha que, às vezes, a repressão, além de instigar a mobilização, pode impossibilitar a acção; porém, em qualquer caso, esta desempenha um papel determinante na estruturação dinâmica e relacional dos repertórios da acção colectiva. No caso de Moçambique, por exemplo, ainda se está por estudar, diante dos recentes actos, que efeitos sucederão: mobilização ou falta dela?
Aqui e agora, podemos avançar uma hipótese: não se está ainda em face de um verdadeiro movimento social clássico, cuja carteira de reivindicação é clara ou os efeitos de sua capacidade de colher adesão é, igualmente, expressa. Contudo, a construção de um repertório de acção colectiva não segue, necessariamente, os ditames do que se pode encontrar na vasta literatura relativa a este assunto.
A introdução acima surge em decorrência de, no passado dia 18 de Março [2023], termos estado no aglomerado que rodeava a Estátua Eduardo Mondlane, para participar na marcha alusiva à celebração da vida e dos ideais de Edson da Luz, Azagaia. Em poucos instantes, sem a nossa antecipada intenção para nos desviar daquele acto infortúnio, o gás lacrimogéneo havia tomado conta do local, não apenas daquele perímetro, mas de todos os cantos, inclusive por onde qualquer transeunte, manifestante ou não, ousasse percorrer.
Ora, a frase que dá título ao nosso comentário foi proferida por um agente de ordem pública, que vestia a sua farda da Polícia da República de Moçambique (PRM). Ele disse que ‘estava connosco’ – o povo –, mas, ao mesmo tempo, pediu que um dos manifestantes ao meu lado tirasse a camisete que ostentava a imagem e os dizeres sobre Azagaia. Irónico ou não, não temos dúvidas que isto pode revelar o nível de gravidade e sentido de repúdio que se vive na sociedade, não importando, necessariamente, a qualidade laboral ou social dos seus sujeitos.
Aliás, engane-se quem pense que os actos de barbaridade da acção das autoridades de defesa e segurança seja um mero acaso; é, pois, parte do ‘silêncio barulhento’ que, de uns anos à esta parte, tem assolado o quotidiano dos moçambicanos. Para nós, há, na fala daquele membro da PRM, um significado que deve preocupar quem governa o país, sobretudo porque quem reprime é parte da mesma sociedade que se encontra sob o jugo de um colectivo de políticos censurados pela sociedade.
Na verdade, não são apenas as palavras do membro da PRM que nos interessam, mas, sim, a voz não levantada de milhares de moçambicanos que sentem o mesmo que aquele agente da Lei e Ordem, mesmo diante do estado de repreensão em que vivemos. É extremamente perigoso, quando o medo se torna silêncio e as vozes ecoam em pequenos grupos. Para uma governação acertada, o benéfico é que se conheçam as possíveis razões da insatisfação, do que a produção do medo que se pode tornar pólvora contra quem teima em bloquear a acção popular não violenta.
Pretende-se, com esta breve análise, trazer à luz, a outra faceta do “Rapper-mor”, Azagaia. Pois, a reação da opinião pública, no geral, em torno da partida do autor dos famigerados álbuns Babalaze e Kubaliwa, para a sua última morada é, primariamente, associada ao seu arrojo em abordar temáticas sociais, as mazelas experimentadas pelos moçambicanos no seu dia-a-dia, ou seja, o caracter socialmente interventivo da sua música. No entanto, há uma outra dimensão em sua lírica – a estilística.
Entenda-se, por estilística, como o uso da linguagem com fins estéticos, conferindo carga emotiva aos seus versos, ou seja, o processo de manipulação da linguagem para que esta não se resuma apenas a função de transmitir uma mensagem, mas também de criar um efeito emotivo e afetivo da parte de quem a recebe. A estilística na lírica do Azagaia é fundamentalmente caracterizada por esse recurso. É precisamente aí que reside e se manifesta uma das grandes qualidades artísticas em sua lírica. É, exemplo disso, a sua obra “As Mentiras da Verdade” rica nesse recurso linguístico, que impressiona pelo uso de linguagem figurada e jogo semântico meticulosamente calculados.
Muito a propósito do acima, as Faculdades que se dedicam aos estudos das Letras (nomeadamente estudos linguísticos e literários), precisam de estudar a obra do Azagaia nesta perspectiva. Foi, com muito agrado, que tomei conhecimento de uma monografia para a obtenção do grau de licenciatura em Literatura Moçambicana, por um estudante da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane, intitulada “A Crítica Social em Azagaia”. Penso que este é um passo na direção certa, para compreensão plena, preservação e valorização do inestimável legado do músico. Que o Rapper-mor viva eternamente através de muitos e mais estudos sobre a sua obra!
Azagaia pode ter estado no engendramento e repercussão de um novo subgénero, dentro do grande género musical do RAP, pela forma inovadora e diferenciada de fazer e representar este género musical, escapando do traço vigente e dos seus vícios, facilmente diagnosticáveis por sintomatologias de letras exaltando valores de alienação cultural, apologia à ostentação, indecência e muita baboseira à mistura, etc. O autor do tão aclamado “Povo no Poder”, soube, com mestria, ser imune a este flagelo, tendo enveredado por outras avenidas, abordando em suas músicas, temáticas consentâneas com a realidade social vigente, num perfeito casamento com as suas qualidades de exímio “songwriter” – onde ficou proeminente a doce estilística em sua lírica! Vale muito a pena estudar a sua música também nesta perspectiva.
O manancial da obra do Azagaia permite que esta possa ser estudada de várias perspectivas, nomeadamente sociopolítica, filosófica, literária e linguística, entre outras.
Azagaia veio do Povo e ao Povo pertencerá! Azagaia é o Povo no Poder!
Publiquei no passado sábado um texto nas redes sociais encorajando os jovens a perpetuar a memória do cantor Azagaia. Alertei sobre a necessidade de se protegerem contra o aproveitamento oportunista de partidos políticos. Enviei esse texto para a Carta de Moçambique quando as forças polícias começavam a reprimir violentamente a manifestação de jovens em Maputo.
Ainda esperei por alguma explicação, algum pedido de desculpa, alguma razão que explicasse esse acto de violência contra uma marcha que estava devidamente autorizada. Esperei em vão. Durante todo o dia os noticiários dos principais canais televisivos reagiram como se nada tivesse acontecido. Nem uma linha por parte dos jornalistas. Nem uma palavra por parte de qualquer dirigente. Este silêncio constitui uma espécie de reedição do gás lacrimogénio que abundantemente foi lançado nas ruas de Maputo. Esse silêncio é demasiado ruidoso, essa ausência é demasiado indiscreta.
Considero inclassificável o comportamento das forças policiais reprimindo o que devia ser protegido, criando desordem onde havia ordem, atropelando a lei perante um evento legal.
Os jovens que queriam desfilar nas ruas da capital estavam desarmados, não representavam nenhuma ameaça à ordem ou tranquilidade pública. O funeral de Azagaia mostrou o tamanho da frustração e descontentamento de muitos jovens nas cidades de Moçambique. A polícia que cumpriu “ordens superiores” agigantou esse descontentamento. Há ordens “superiores” que criam desordem e inferiorizam os seus autores.
A nossa maior conquista, depois da Independência, foi o calar das armas após dezasseis anos de guerra fratricida. Essa conquista aconteceu porque houve diálogo, houve vontade de escutar aqueles que pensam de modo diferente. Se fomos capazes de abraçar os chefes de um exército armado por que razão espancamos jovens que se apresentam desarmados, respeitando as normas democráticas do direito à palavra e à manifestação pública?
Não imagino o que motivou a “ordem superior” que deu luz verde à violência policial. Mas estou certo de que a única ordem superior correta apontaria exatamente na direção oposta. Uma ordem que encorajasse a escutar estes jovens que amam o seu país, uma ordem que protegesse o espaço onde se pudessem expressar livre e pacificamente.
Mia Couto
Muitos jovens choraram a morte do Azagaia. Esses jovens querem perpetuar o legado do seu herói. Esse legado é feito de uma matéria preciosa: a força da moral e da coerência. Azagaia teve o raro mérito de enfrentar adversários sem esperar que, em troca, lhe fossem concedidos poderes nem privilégios. Não queria carreira política. Não usou os outros para seu próprio benefício. Não quis ser famoso nem empresário ou político de “sucesso”. Não foi um moço de recados de nenhuma força política. O segredo da sua popularidade foi simples: ser verdadeiro, generoso e genuíno.
Agora que ele morreu, surgem entidades políticas que pretendem tirar proveito do seu legado. Algumas dessas forças políticas foram alvo da crítica do Azagaia. O nosso rapper criticava os que usufruem do poder e os outros que, se apresentam como da “oposição”, mas que pretendem apenas um lugar no banquete. São estas as palavras do mano Azagaia:
“...E se eu te dissesse
que a oposição e o governo não diferem
e comem todos no mesmo prato...”
Esses políticos e deputados que agora se penduram no prestígio do Azagaia deviam fazer o seu próprio trabalho de casa. Tiveram oportunidades excelentes para granjear respeito. Por exemplo, das vezes em que que se votou na Assembleia da República o aumento dos salários e das regalias dos deputados onde estavam esses que agora se reclamam combatentes da moral e defensores dos pobres? Algum deles votou contra essas repetidas propostas? Nunca. Braços de todos os partidos representados na Assembleia ergueram-se em plena unanimidade. E fizeram-no num momento em que se pediam sacrifícios aos demais cidadãos do país.
Por respeito ao Azagaia e por respeito à verdade é preciso que estas vozes da juventude se demarquem destas tentativas de aproveitamento (sejam elas do governo ou da oposição) e se apresentem como uma voz genuína, inovadora e construtiva.
Mia Couto
A solidariedade para com as gentes de Zambézia afectadas pela virulência do ciclone FREDDY acontece a dois níveis. Como sempre os movimentos de solidariedade nascem das raízes humanas, das pequenas elites tomando iniciativa na ausência do Estado, comum em Moçambique.
Na Beira do IDAI foram pequenos grupos de convivas de café no Chamuari que puseram mãos à obra. A solidariedade no IDAI foi um marco indelével: o país mexeu-se e da capital zarpou um navio cheio de mantimentos, chegando a tempo de serem distribuídos enquanto era necessário.
O que está a acontecer com a Zambézia neste campo da solidariedade civil!?
Eis o que apurei:
Há dois grupos no terreno, cujos membros e coordenação confluem na rede social Whatsapp. O "Zambézia no Coração" é malta de origem espalhada pelo país, seus amigos conectados nessa rede, através da qual fundos são angariados e ajuda em espécie, de não perecíveis, idem.
A conta bancária para a recepção de dinheiro é de Edna Namitete, escolhida a dedo por causa de sua alegada idoneidade. O conceituado jurista Abdul Carimo Issa, o Buda, é uma das faces mais visíveis deste grupo, que já tem estado a transferir dinheiro para Quelimane. O movimento está a coletar bens em Maputo mas o dilema será mesmo como transportar para a Zambézia.
Para além da "Zambézia no Coração" existe o grupo "Todos pela Zambézia", baseado em Quelimane. Este grupo está a distribuir comida a quem não tem o que comer. São milhares não só em Quelimane e arredores mas também em Mocuba e na isolada Maganja da Costa. O que as pessoas precisam é de comida.
Reporta-se que o IGND está a distribuir bens alimentares não confeccionados mas o que as pessoas precisam é de comida, frise-se. De acordo com o INGD na Zambézia, 211.784 encontram-se deslocadas. Cerca de 50 mil pessoas foram recolhidas para em 49 centros de acomodação, onde estão a receber ajuda.
O paradoxo é esse mesmo: o grupo "Todos pela Zambézia" serve comida quente e o INGD oferece produtos não confeccionados a pessoas que não têm utensílios para transformar esses bens em comida.
O transporte de eventuais ajudas colectadas em Maputo vai ser um problema. Mas a grande dúvida é se a solidariedade maputense vai ser espontânea e robusta como foi com o IDAI. Na altura, março de 2019, o Porto do Maputo abriu dois armazéns que receberam víveres e roupas, que foram enviadas para a Beira através do “Border”, um “combo vessel”, que também tem capacidade para 400 contentores.
Os efeitos do Freddy na Zambézia ainda não despoletaram semelhante onda. Dúvida-se que isso venha acontecer, a nao ser que a mobilização reforce sua comunicação.. Há poucas semanas, as cheias no sul de Maputo mobilizaram a solidariedade local, com suas pontes de afectos.
Mas os afectos pela Zambézia ainda nao surgiram como uma onda rasgando a indiferença. O facto é que as pessoas estão cansadas. Sobretudo quando não vêm da parte do Estado uma resposta firme.
O Porto do Maputo está de plantão à espera...Mas para além dos grupos zambezianos, pouco se vê. Em Maputo, parece que as pessoas estão concentradas no pós-morte do artista com suas azagaias empunhadas.
O dilema de transportar o grupo Zambézia no Coração é real. Uma companhia de telefonia terá oferecido 10 toneladas de produtos diversos. Como se trata de emergência, essa oferta devia já estar a caminho da Zambézia, e o ideal seria por via aérea. Há quem sugeriu que a LAM pudesse fazê-lo de noite, com seus aviões comerciais. Mas para isso é preciso que a decisão política saia dos gabinetes. (Marcelo Mosse)