É claro que, sobretudo como africano, havia muito que conhecia a palavra azagaia, essa lança de arremesso mais ou menos curta e afiada, usada na África Austral para caçar animais. A sua versão masculina – o Azagaia – é que só ouvi falar pela primeira vez em 2007, através de um amigo e colega que à época era fotógrafo da agência Lusa em Maputo. Ao final da tarde desse dia, o Pedro, à mesa do café, disse-me: “Hoje fomos entrevistar um jovem rapper cheio de power. Chama-se Azagaia. Tem uma música [As mentiras da Verdade] com uma letra muito poderosa. É filho de pai cabo-verdiano e mãe moçambicana.” Foi assim a minha estreia com o Azagaia.
Eu, que nunca me interessei especialmente pela cultura Hip Hop, dei por mim a ouvir Azagaia e as tais letras poderosas que as batidas tornavam-nas ainda mais poderosas. Aliás, o próprio me confessou, numa entrevista que lhe fiz em 2014 sobre a história do rap moçambicano, que as letras lhe fascinavam muito mais do que a batida. “Sempre gostei de poesia, o rap é uma forma de literatura”, disse-me.
O seu amor à poesia levou-o, com apenas nove anos, em 1994, a escrever a primeira letra, logo a seguir às primeiras eleições multipartidárias. Chamava-se “Já pariu o ventre democrático”. Falava das eleições, da democracia, da esperança mas também da dependência externa e dos problemas da pobreza endógena. Nestas primeiras letras, embora adaptadas ao momento, sentia-se ali Craveirinha, Noémia, Nogar.
Azagaia procurava, sofregamente, conhecer o seu país, na sua multidisciplinaridade. A história, a literatura, a poesia, a música, a dança, o povo e a sua essência. Só assim, achava ele, conseguia a plenitude das suas letras, tocando todos os pontos fraturantes da sociedade moçambicana. E o povo - de onde ele emergiu e do qual, apesar da fama, sempre fez parte - via-se ao espelho de uma forma como nunca tinha acontecido.
Azagaia escolheu, desde o início, o seu lado da barricada. Com a sua música, montou uma trincheira e disparou, sem cessar, contra os inimigos do povo, não aqueles inimigos do povo do imaginário soviético, mas sim contra os que atropelam diariamente a sua dignidade. Azagaia é produto do verdadeiro povo, aquele que todos os dias se ensardinha na lata de um my love; aquele que sofre na carne os desmandos e o autoritarismo da polícia; aquele que diante de uma chuvada tem de dormir em cima da mesa; aquele que quando o pão sobe volta a dividir o indivisível; aquele que não tem dinheiro para o refresco que apressa o atendimento no hospital; aquele que é frequentemente enxotado para a berma quando os importantes desfilam nos seus carros de luxo; aquele que veste capulana e camisete com o rosto dos “senhores” não por gosto mas por necessidade.
Azagaia foi, permanentemente, o porta-estandarte deste povo em sofrimento. E, por isso, o povo, reconhecido, ocorreu em massa para lhe prestar a derradeira homenagem na passada terça-feira, no coração do poder autárquico. Pelo menos nessa manhã, o Povo esteve no Poder. Os corruptos, os bandidos, os assassinos estiveram fora, cumprindo-se, por umas horas, o sonho de Azagaia.
*Opinião estritamente pessoal.
Os cidadãos, fãs e seguidores do Azagaia, considerado herói do povo, decidiram organizar uma marcha nacional agendada para o dia 18 de Março, que, em princípio, terá lugar em todas as capitais provinciais, em homenagem ao rapper, ícone do hip hop lusófono.
No entanto, há bastante tempo que, do ponto de vista prático, os cidadãos não são permitidos exercer o direito à liberdade de manifestação, sobretudo os do tipo marcha, na via pública. Aliás, para o efeito da denegação dessa liberdade aos cidadãos, o governo de Moçambique, recorrentemente, através da sua força policial, impede ilegalmente o exercício do direito à manifestação pacífica pelos cidadãos ou grupos sociais, seja por via de ameaças, intimidação, detenções arbitrárias, agressão física, baleamentos, tortura e outros maus tratos que consubstanciam violação dos direitos humanos, para além de argumentos infundados nos termos da lei, de que a manifestação não foi autorizada, quando a realização da manifestação não carece de qualquer autorização pelos órgãos da administração pública. Neste quesito, a Ordem dos Advogados de Moçambique elaborou e publicou um caderno sobre o exercício do direito à liberdade de manifestação que muito bem explica os cidadãos os passos legais para o seu exercício e limitação pelas autoridades.
Curiosa e estranhamente, são apenas permitidas as manifestações que visam exaltar ou bajular o governo do dia, especialmente o Presidente da República e o partido no poder.
Perante essa situação, preocupa a “vista grossa” que fazem as instituições de justiça relevantes nesta matéria, com destaque para o Ministério Público, entanto que garante da legalidade, sem, no entanto, ignorar o papel da Comissão Nacional de Direitos Humanos e o Provedor da Justiça que, pelas suas atribuições e competência em matéria de direitos humanos e realização da justiça, deveriam ser mais interventivos e incisivos com vista a garantir o respeito pelo exercício da liberdade de manifestação nos termos da lei.
A morte e o legado do Azagaia, conforme ficou notório pela enchente e manifestação de diversa natureza no seu funeral, abriu uma grande janela senão uma grande porta mesmo para o despertar do povo relativamente à salvaguarda dos seus direitos e liberdades fundamentais, bem como para o efectivo exercício dessas liberdades contra a má-governação, abuso de poder, opressão, corrupção, discriminação e violação dos direitos humanos em busca da almejada justiça e bem-estar social de todo o povo.
Assim, amanhã, dia 18 de Março, será o primeiro grande teste dos cidadãos face ao combinado com o Azagaia: Povo no Poder! Todavia, será que este povo há muito intimidado pelas autoridades terá a coragem de levar a cabo a marcha nacional em homenagem ao seu herói, independentemente de autorização da marcha pelas correspondentes autoridades, o que não é condição legal para o efeito? E se for impedida a marcha sem fundamento legal, será que esse povo está preparado para demandar sobre várias formas a administração pública em causa e exigir responsabilidades em tempo útil? Será que os cidadãos que pretendem marchar pacificamente amanhã em homenagem a este ícone do hip hop lusófono têm a necessária coragem deste para não se deixar intimidar em lutar pelos seus direitos e liberdades fundamentais?
Azagaia morre e deixa riquíssimos ensinamentos de revolução e combate contra a opressão num contexto de excessiva limitação do espaço cívico, de violação dos direitos humanos e de perseguição dos activistas sociais, dos críticos da má-gestão do bem público e da prática cada vez mais acentuada do discurso de ódio contra as organizações da sociedade civil e liberdade académica.
Portanto, pela euforia popular e vontade de colocar um basta nos abusos de direitos e liberdades, bem assim no cada vez mais empobrecimento dos mais pobres, Azagaia torna-se numa espécie de Jesus que morreu para nos salvar. Será que temos mente liberta bastante para perceber o sentido e o alcance do princípio constitucional de que a soberania reside no povo e assumir esse poder? Veremos no teste de amanhã…
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
“Nenhum Moçambicano, depois de Mondlane e Samora, viu seu ideário de combate político, de verticalidade e cidadania, ser reconhecido no estrangeiro, tornando-se fonte de inspiração de novas lutas contra a opressão e a marginalização dos povos. Só Azagaia. Ele tornou-se no terceiro grande símbolo da moçambicanidade. Quando a história deste País for reescrita, esta verdade será registada”
In página de Marcelo Mosse
“No (Debate da Nação) da STV, um jovem questionou sobre a forma como os músicos moçambicanos são tratados, referindo que alguns almoçam com o Presidente da República, fruto das suas intervenções musicais e outros são convocados para a PGR – Procuradoria-Geral da República. Salvo melhor entendimento, o convocado para a PGR eras tu Azagaia, fruto das tuas músicas de intervenção social, fruto da tua verticalidade e de nunca te vergares perante o poder político. Hoje, parece-me que esse poder político pretende, a título póstumo, reconhecer o valor das tuas intervenções. Nunca é tarde, o teu corpo será velado no Município de Maputo, na capital de Moçambique!”
AB
Quando em vida, não somos capazes de reconhecer as pessoas que muito fazem para que tenhamos uma sociedade melhor, não creio que qualquer homenagem valha a pena. Quando o sistema político te considera pessoa “inconveniente” e, porque faleceste, procura a todo o custo elevar o teu nome a um patamar de quem muito fez pelo País, simplesmente, porque se apercebe que tu eras importante para a maioria, essa acção pode roçar a ridículo!
O músico Azagaia, muitas vezes, foi mal interpretado, devido às suas músicas de intervenção na sociedade. Azagaia cantava o País real e, muitas vezes, incómodo para os políticos, sobretudo, políticos no sistema de governação. Mas para o músico Azagaia, todos os políticos eram “farinha do mesmo saco” procurando, sempre, tirar proveito da sua posição. Na verdade, quem não sabe que a oposição na Assembleia da República chumba quase tudo, mas quando se trata de debater sobre suas regalias, a aprovação é sempre por unanimidade. É a isso que se referia ou parte disso. De facto, os políticos são iguais, diferem somente na filiação partidária!
O músico Azagaia não cantava para receber elogios dos políticos ou do Governo. Nas suas músicas, Azagaia dava a voz aos pobres, aqueles que, sofrendo bastante no seu dia-a-dia, não sabiam como fazer chegar o choro desse sofrimento a quem de direito. Azagaia foi e será sempre porta-voz desse cidadão, cidadão pobre, analfabeto, subjugado pelo sistema político e sem beira e nem eira. Por isso, o povo chora a partida prematura do músico Azagaia, que nos deixa aos 38 anos de idade, uma fase em que ainda tinha muito para dar ao País.
Azagaia! Tu não morrerás jamais. Tu fazes parte do pequeno grupo de gente que pura e simplesmente não morre porque a semente que deixaste na terra é de tal sorte boa e alto grau de germinação que, não tardará, dará frutos e, no caso do Azagaia, os frutos esperados é o sentido de que a LUTA DEVE CONTINUAR até que haja justiça em Moçambique. A Luta deve continuar até que os recursos de que Moçambique é prenhe sirvam para todos os moçambicanos e não para meia dúzia de pessoas que se acham donos de Moçambique!
Moçambique é de todos nós, as suas riquezas, quer do solo ou do subsolo, pertencem a nós todos e por isso deve haver justa distribuição da mesma, através da criação de condições básicas para o desenvolvimento do País. Vista na perspectiva individual, a semente que deixaste irá germinar e dela colheremos bons frutos. Os jovens não irão aceitar a pobreza como destino “divino”, os jovens não irão aceitar a subjugação porque já sabem os seus direitos. Mais do que exigir emprego, irão exigir que a exploração de recursos naturais de Moçambique seja justa, transparente e distribuída de forma equitativa. A sua semente é prolífera Azagaia e de alto poder germinativo!
Hoje, terça-feira, 14 de Março de 2023, o povo irá despedir-se de ti, no Paços do Conselho Municipal da Cidade de Maputo, local onde, eventualmente, nunca foste bem recebido e bem tratado como cidadão. Entretanto, a cedência desse lugar para a última homenagem mostra que os seus detractores se vergam perante si, aqueles que um dia te prenderam, hoje, sentem-se, eles próprios, pequenos perante a sua imagem e suas palavras. Aceite um Adeus Azagaia, Moçambique chora-te, mas o melhor choro será imortalizando as suas ideias, transformando-as em actos objectivos e concretos, a bem da sociedade e por uma sociedade onde o homem não explora o outro homem. Como dizia Samora Machel, “abaixo exploração do homem pelo homem” independentemente da sua origem, raça, classe social, religião etc. Adeus Azagaia.
Adelino Buque
Uma excepcional escola de democracia e activismo de urgente implementação
Das letras das músicas do Azagaia e das suas posições públicas nas entrevistas que concedeu sempre ficou claro que este ícone do hip hop da lusofonia tinha claro conhecimento e domínio dos objectivos fundamentais do Estado consagrados no artigo 11 da Constituição da República, quais sejam:
Dúvidas não restam de que os objectivos fundamentais do Estado supra mencionados foram muito bem interpretados e divulgados por Azagaia através das suas letras musicais, com base em linguagem simples e directa pela crítica contra a má-governação e injustiça social.
Em boa verdade, Azagaia cantou no quadro do Estado de Direito Democrático e foi combatido pelo poder público por praticar a democracia e respeitar a Constituição da República. Foi concebido pelos “vampiros” como uma espécie de criminoso e antipatriota por alertar toda a colectividade para não ignorar o princípio fundamental de que a soberania reside no povo, conforme sua célebre proclamação musical “Povo no Poder” entanto que lema que visa democratizar e libertar a consciência do cidadão para não ser injustamente explorado e de qualquer forma oprimido.
As músicas de intervenção política e social de Azagaia constituem uma verdadeira e excepcional escola de democracia e de exercício da cidadania para a realização da justiça, respeito ao próximo, tolerância e boa gestão do bem público. Por isso, há necessidade de perpetuar a sua visão e activismo através de um processo bem estruturado e institucionalizado de ensino e aprendizagem para a actual e futura geração. Contudo, só os amigos do Azagaia e o povo que o venera e que o declarou seu herói podem e devem concretizar a instituição Azagaia. O poder público tem a oportunidade de humildemente render-se ao legado do Azagaia para a prossecução do interesse público, apanágio do Estado.
O trabalho do Azagaia problematiza o tradicional e convencional estabelecimento da heroicidade em Moçambique e sobre onde efectivamente devem jazer os heróis do povo. Pelo seu activismo corajoso, sobretudo, a bem da justiça social e, particularmente, por conseguir dar esperança ao povo de um Moçambique melhor e de inclusão face aos abusos dos três poderes do Estado – Judicial, Executivo e Legislativo, incluindo os abusos perpetrados pelos Municípios - Azagaia foi declarado herói do povo pelo próprio povo.
Nesse contexto, ressaltam actualmente questões como: Será que é imperioso ser declarado herói por decreto ou lei para ser considerado como tal, num contexto em que o povo pacificamente e por consenso assim considera? Será que é obrigatório que o herói jaze na cripta da Praça dos Heróis para que fique chancelada essa qualidade quando o povo que reconhece essa heroicidade não tem acesso à Praça dos Heróis?
Trata-se, pois, de um debate interessante que nos permite reflectir sobre o tratamento a dar a um herói escolhido pelo povo por consenso com evidências claras de actos de coragem e abnegação no activismo pela justiça dos moçambicanos de forma honesta, consistente, coerente e pública. No mesmo sentido, embora seja um debate antigo, permite reflectir sobre a utilidade da Praça dos Heróis, considerando que em termos práticos está fechada a uma elite partidária tanto para os que lá jazem como para os que visitam aquele local que devia ser histórico cultural normalmente aberto ao público.
Ora, desde que Azagaia pereceu fisicamente a sua estátua está a ser erguida em todas as praças públicas de Moçambique e em alguma praça pública internacional com destaque para os países da lusofonia, onde se tornou ícone do hip hop. Não há, pois, como negar a implementação da escola Azagaia no sistema de ensino nacional e nas artes e cultura em especial, uma vez que a sua grandeza transcende as cores partidárias e exalta a moçambicanidade nas várias dimensões: política, social e cultural.
Portanto, com o seu nacionalismo e exercício da cidadania suis generis, Azagaia conseguiu sobrevir a sua própria morte e com a sua alma continuar a conscientizar os moçambicanos sobre o que combinaram após a sua morte: Povo Poder!
PS: Texto baseado numa conversa de facebook com Emerson Chiloveque sobre a grandeza do Azagaia e a atribuição de título honorífico de herói da República de Moçambique.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
Chegou aqui ainda sem formação sólida no seu sangue de juventude, era imberbe. Confiava no tacto que no princípio criou-lhe receios numa cidade onde não conhecia ninguém, mas em pouco tempo pisou os pés com firmeza quando percebeu que poderia receber, nesta terra estrumada, mesmo que fosse a longo prazo, bons frutos, pois a semente que trazia não deixava dúvidas, era de um grande poder germanativo.
Mário dos Santos Pompeu - de seu nome completo - é um professor de educação física competente. Apesar de ser homem de amizades restritas, perto dele vamos sentir a afabilidade, a honestidade e a lealidade. Mora dentro dele a abertura de alguém educado, um profissional responsável com muita sede de ver os seus alunos voarem ao encontro da luz, como ele, que até hoje continua a planar sem qualquer desejo de aterrar. Ele quer se manter no cosmos.
Foi formado na década de oitenta, na catadupa de jovens que tinham uma missão sagrada de formar os outros para a luta continuar, e e ele – depois do curso - seria lançado à terra dos bitongas de onde nunca mais saíu, e nem quer ouvir falar dessa ladaínha de “sair ou não sair”. A sua vocação é o atletismo, é por isso que sorriu abertamente quando lhe apresentaram a pista “Sete de Setembro”, onde trabalhou com denodo ao longo de muitos anos, ao mesmo tempo que dava aulas na Escola Secundária, fazendo acompanhamento aos talentos que ia descobrindo, alguns deles levados aos “nacionais” em representação da província de Inhambane.
Nunca abandonou a pista desde o primeiro dia que a pisou, mesmo vendo que aquela “catedral” ia desmoronando aos poucos e poucos, mas a responsabilidade de restaurar este lugar desportivo não é do Mário dos Santos. Até porque já o dissemos muitas e não nos cansaremos de repetir isso até ao fim, “se um dia alguém pensar em homenagear este manhúngwè (natural de Tete), as cerimónias devem acontecer na pista “Sete de Setembro”, é aqui onde vai borbulhar grande parte do sangue do Santinho, como os amigos lhe tratam.
Hoje porém, passados cerca de quarenta anos após desembarcar um jovem vindo de uma distância de 1500 km sem nada nas mãos para além de uma sacola leve pendurada no ombro, este homem deixou para trás o testemunho dos quatrocentos metros, o dardo, a fasquia, as barreiras, o disco e o colchão de espuma sobre o qual ele mesmo caíu várias vezes na demonstração para os seus alunos. A pista inteira. É isso que fazia viver Mário dos Santos, um ser humano respeitado por todos no bairro onde mora e em toda a cidade, pela sua simplicidade e humildade. Ele é um exemplo de trabalho e de como se deve viver numa sociedade.
Hoje está aposentado, com poucas probabilidades de voltar à pista que lhe ajudou a moldar e fortalecer a sua personalidade, o seu carácter. Mas mantem os mesmos seus amigos de convívio restrito, com os quais vai renovando a tecelagem da vida, mostrando que podemos continuar a viver com jovialidade de espírito perante as pedras do caminho, trazendo para o presente todas as coisas boas que fizemos. É isso que catapulta este homem, este professor de educação física talhado para o atletismo, cujo perfume que ele aspergiu em toda a pista “ Sete de Setembro”, jamais deixará de vibrar na parede da memória.
Edson da Luz, ou simplesmente Azagaia e popularmente mano Azagaia – não há elogios à altura da sua obra.
Jovem moçambicano que se destacou com seus versos carregados de mensagem de caris sociopolítico forte. Viveu e fez viver; de certeza sua obra figura entre as mais importantes e icónicas do mundo do hip hop lusófono. Sua voz representa uma expressão sublime do grito de revolta do povo.
Lembro-me do nosso primeiro encontro na discoteca Coconuts no inverno de 2006/7 onde partilhamos vassouras, baldes, esfregonas e muito mais, para garantir que o chão da pista de dança estivesse sempre impecável – este era o nosso mandato na altura. Lembro-me também que nos momentos mortos da noite, em que falávamos sobre vários aspectos da nossa sociedade. Percebi naquele momento que estava perante alguém com um pensamento fora da caixa e de uma cultura social altamente progressista.
Sinto-me culpado por escrever estas linhas apenas agora que partiste. Sinto-me igualmente triste porque não consegui te dizer o quão te admiro, que sou teu fã e que me identificava com a sua maneira de estar em prol de uma maior justiça e igualdade social. Quando estavas entre nós fisicamente, adiamos uma sentada para falarmos livremente sobre a vida, e perdi uma grande oportunidade de dizer sem rodeios que tu representavas muito mais que um músico. Tu encarnaste a dor de todo um povo, a voz dos oprimidos. Cantavas aquilo que o povo sentia, mas não conseguia falar nem exprimir com tanta subtileza. Sua modéstia e simplicidade extravasava os limites da fama e dos holofotes.
Devo confessar que a notícia do desaparecimento físico do Azagaia deixou todo o povo em estado de consternação grande. Na verdade, estamos em choque e não sabemos como será o devir sem o nosso poeta social. A notícia colheu a todos nós de surpresa, e esta difícil acreditar que o representante do povo nos deixou, que não iremos voltar a tê-lo no palco e escutar sua voz vibrante e cheia de mensagens poderosas. É caso para dizer que vai-se o artista e fica a obra.
Azagaia!!! Mano Azagaia - representa muito mais do que um rapper, um músico de intervenção social. Azagaia é um ícone da critica social e figura incontornável do movimento activista que usou a música para expressar não suas convicções pessoais, seu estilo de vida, suas mágoas, seus sentimentos, mas o pensar de todo um povo sofrido e cioso por alguma mudança estrutural e estruturante.
Azagaia foi e será sempre parte de cada um de nós moçambicanos. Um filho que o país viu nascer e partir inesperada e prematuramente. Foi vítima de pressão e crítica pela forma frontal como se expressava e acima de tudo pela consciência que despertava e por nos fazer pensar reflexivamente; foi várias vezes apelidado de antipatriota e antirregime; foi vilipendiado, censurado e condicionado, mas nunca baixou a guarda; nunca se deixou intimidar porque sua missão era essa – cantar e elevar a consciência social dos moçambicanos.
Deu voz mesmo quando o risco era maior que sua própria segurança. Quanto mais se afunilou o espaço cívico e quanto mais se agudizava a vida do povo, mais se via a veia activista e nacionalista deste ser de luz. Seu amor por Moçambique sempre foi genuíno e, a causa do povo sempre foi cantada nos requintados versos e estrofes de linha fina que nos presenteou. E quando a repressão era alta, Azagaia disse “se o povo ousar se rebelar não haverá tantas balas para disparar contra milhares de pessoas descontentes”.
A sua célebre guisa – “Povo no Poder” - exprime o desejo inconfesso de uma grande franja social fatigada, revoltada mas inactiva, que sucumbiu ao medo de perder medo.
Edson da Luz, tinha luz própria e convicções muito próprias. De long, um ser muito a frente do seu tempo. Fez a ponte da geração 1980 da qual faz parte, e foi ligando às gerações 1990 e 2000; e ainda conseguiu ser parte de um lote restrito de músicos e activistas sociais cuja obra foi alvo de pesquisa académica, distinção e apreciação além-fronteiras.
Azagaia é clara e inequivocamente maior que o seu tempo e um ponto de exaltação da liberdade de expressão e da expressão intelectual da música. Deixa uma herança social, política, cultural e acadêmica e um legado tremendo para a escola do activismo social através da música.
A música, como já é sobejamente sabido, é um instrumento de exaltação da cultura e dos ideais de um povo. É também a expressão máxima da sua vivência, medos, ânsias e seus sentimentos. Com recurso ao microfone, Azagaia fez uso da voz e encantou milhões de moçambicanos, milhões de amantes da sua música pelo mundo fora. Emprestou sua voz ao mundo e deixou um cheiro revolucionário único.
Azagaia!!!
Educaste a sociedade com palavras e versos de reflexão e, chamaste a nossa atenção sobre a situação política e social do país. País este que é de todos os moçambicanos independentemente das suas cores e convicções político-partidárias, ideológicas, raciais, religiosas, etc. Até aqueles que te combatiam, no fundo sabiam que eras necessário para a construção do pluralismo dentro da sociedade.
Deixaste um rasto de saudade sem igual. A nós resta tentar preencher esse vazio de forma inteligente; não com lágrimas apenas, mas com acções que façam honrar e respeitar com todas as nossas forças tudo o que nos ensinaste.
A nossa consciência social e política jamais será a mesma e a sua obra deverá ser replicada para gerar apropriação e termos gerações de activistas comprometidos com a justiça e paz social.
Temas como: as mentiras da verdade, Povo no Poder, Cão de raça, A marcha, Maçonaria, Vampiros, e ABC do preconceito, a título de exemplo são alguns dos temas que exalam um perfume que perdurará para todo sempre.
Até sempre mano Azagaia!!!
Por: Hélio Guiliche