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segunda-feira, 11 março 2019 06:14

Teatro de operações

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Os preconceitos de extremos assentam como luva costurada e curtida pela distância entre Cabo Delgado e Maputo, ainda que separados por míseros 2400 km. "Lá onde Judas perdeu as botas" é também lá onde foram inscritas as primeiras pegadas das botas, chinelos e pés descalços que desbravaram o caminho da independência.  

 

Na história política de Moçambique, Cabo Delgado é mui sui generis e ocupa lugar privilegiado em quase todas as páginas, por razões diversas.  Ao mesmo tempo em que estamos ligados à Cabo Delgado por inúmeros e viscerais vínculos de história comum, repleta de glórias e vergonhas, desterros e regressos, partilhas e negações, alianças e traições, por vezes, parecemos esquecer que Cabo Delgado somos nós!  Mais do que assumir que "Cabo Delgado é Moçambique", como bem dizem os que publicamente expressam suas angústias e solidariedade,  importa frisar que este Moçambique de hoje foi possível também por via de Cabo Delgado.

 

A epopeia de libertação dificilmente  se pode narrar sem os marcos e destaques que Cabo Delgado empresta. Se não quisermos recuar demais no tempo e falar dos (in)memoráveis períodos pré-colonial e colonial, podemos ater-nos a alguns eventos que assumiram caracter de marcos da história contemporânea de Moçambique, como o  "Massacre de Mueda" (1960) também retratado como último rasgo de resistência pacífica ao colonialismo português. Na sequência,  o ataque ao Posto Administrativo de Chai, em Macomia (1964), celebrado pela reputação  de ter sido o local onde foi disparado o tiro que teria, oficialmente, aberto o caminho da contestação violenta ao colonialismo que culmina com a independência (1975). Por hora, não importa polemizar e nem disputar a coexistência de versões e representações discursivas sobre estes marcos da "historia heroica'' de Moçambique. Mais ou menos detalhes não tiram a centralidade de Cabo Delgado como um dos principais palcos de actuação e progressão dos guerrilheiros da Frente de Libertação de Moçambique,  que ousaram abraçar a onda libertária dos anos 60 e embarcar na "Luta por Moçambique", independentemente das visões e lugares de enunciação da "razão da luta". Cabo Delgado esteve no olho do furacão da "revolução moçambicana" e destacou pela legião de valentes (e nem tanto) jovens que integraram o movimento de libertação de Moçambique (incluindo os que foram expulsos e os que tombaram na jornada).

 

Apesar de "Teatro de operações" ser parte do jargão corrente na linguagem de corporações militares, cada vez que os porta-vozes da PRM ou FDS  ocupam espaços de antena para falarem das ocorrências no "teatro de operações" que Cabo Delgado representa, o mais angustiante é a desinformação sobre os eventos que, novamente, tornam Cabo Delgado, num espaço de violência e simbolismo que, desta vez,  rema em direção oposta à nova onda de pacificação e tripudia as promessas de redenção económica do país, pela via dos recursos naturais. Nestas circunstâncias,  pela janela que Cabo Delgado representa, Moçambique rende-se ao fatalismo discursivo em que se vaticina a "maldição dos recursos" onde, em tese, se preconiza que a ocorrência de recursos naturais em qualidades e quantidades abundantes e comercializáveis a escala global, e com estruturas políticas relativamente frágeis,  é potencial motivo para atrair toda a sorte de abutres, ávidos por injetar o germe da discórdia, semear o caos e tirar máximo proveito, além de despertar o insaciável apetite de cobras e lagartos que habitam em nós e entre nós mesmos!

 

Após longas batalhas e perfilar de  décadas de "vitórias contra o subdesenvolvimento", que não se materializaram; inúmeros planos de conversão da agricultura em "base do desenvolvimento", sem grandes êxitos; décadas de "reestruturação económica", repletas de fórmulas de sucateamento; década de "exaltação do empreendedorismo", com resultados pouco abonatórios; todas elas permeadas por guerras, tensões militares ou seja lá o que quisermos chamar,  quando Cabo Delgado redefine-se como polo de exploração de recursos naturais, com potencial de impulsionar o errático projecto de industrialização e desenvolvimento económico de Moçambique - que nunca se recuperou dos excessos e euforias da êxtase da "liberdade", celebrada com gozo no "escangalhamento do aparelho colonial" e promoção do centralismo económico de Estado, através do "socialismo científico" e, mais tarde, quase que abruptamente, abocanhado pelos impiedosos tentáculos da economia de mercado neoliberal - parece que a "sina" de desperdício de oportunidades ataca de novo.

 

A aceleração do processo de (de)lapidação dos recursos naturais abundantes em Cabo Delgado,  menos do que reger-se pela frágil estratégia nacional gás natural liquefeito ou qualquer outro plano de exploração de recursos naturais, desnudou um teatro de disputas entre gigantes e anões de quase todas as tribos económicas globais e locais que jogam as suas cartas, de forma limpa e suja, reacendendo rastos de destruição de que o país precisa desenvencilhar-se.

 

No arrefecer de Santunjira e na prossecução dos ensaios de reconciliação pós Dhlakama, o escandaloso reavivar de armas, tendo Cabo Delgado como epicentro de inomináveis atrocidades, obscuras nas ideais e ideais que eventualmente pretendem apregoar e, totalmente prenhes das mais vis manifestações do egoísmo humano e do descaso pela vida.

 

A densa cortina de fumo envolta e atiçada em torno dos acontecimentos de Cabo Delegado, dificultam o descortinar das eventuais razões do terrorismo e do ciclo de extermínio e banimento de comunidades no cinturão dos recursos naturais. O encarceramento e silenciamento de jornalistas, o desestimulo e descrédito à iniciativas de investigação que visam compreender os múltiplos ângulos da quizila, a restrição de acesso e o cancelamento do trabalho de organizações activas no terreno, além de medidas cautelares que incluem a restrição de movimentos, expressam o investimento na supressão de conhecimento das circunstâncias de ocorrência de tão trágicos eventos que só contribuem para a redução da nossa dignidade colectiva como sociedade.  

 

A desinformação oficial (intencional ou não) desde a ocorrência dos episódios que selaram a progressão da saga de destruição, onde as autoridades de tutela se revezam na reprodução de "discos riscados", "está tudo controlado"; "são grupelhos enfraquecidos e quase extintos";  imediatamente seguidos pela multiplicação de ocorrência de relatos de ataques e destruição anarquicamente dispersos por diferentes pontos da província de Cabo Delgado,  reforçam a ideia de intencionalidade manipulativa de sonegação de informação, ampliação da cegueira e desligamento da opinião pública sobre a progressão  da tragédia.  A ignorância que se vende  sobre o perfil e eventuais motivos dos insurgentes, instigam-nos a repensar sobre as capacidades instaladas de gerar inteligência de Estado, os métodos e opções de articulação da comunicação Estado sobre problemas e ameaças com potencial de alterar a ordem e segurança pública. 

 

Assim como dificilmente se retém água nas mãos, porosamente, o sangue de mais de duas centenas de cidadãos mortos, entre decapitados, calcinados e esquartejados, escorre dentre o véu da minimização, sulcando novos roteiros, novos distritos, novas localidades e aldeias, feitas presas fáceis que vão alimentado e encorpando o tamanho desse instrumento de destruição  que nos faz observar, como quem contempla, impotentemente,  num gigante placar eletrónico a progressão do número de vítimas sem que esteja claro um posicionamento de Estado, senão por vagas indicações de que já foram despachados para o "Teatro de Operações" novos contingentes de militares, mais ou menos especializados para conter a progressão do que, por enquanto chamamos "insurgência". Não se demanda que o Estado seja omnisciente, mas que seja capaz de, com alguma celeridade, demostrar capacidade de recompor-se de eventuais surpresas e articular estratégias de entendimento, explicação, actuação e comunicação relativamente consistente e sustentável e não apenas exibir bravatas que se desfazem em menos de uma semana.   

 

Desde Outubro de 2017, mais de duzentas pessoas foram mortas com a mesma crueldade e consistência no modus operandi.   Às dezenas, por semanas, atingiu-se a escandalosa cifra de mais de 200 mortos contabilizados, se não forem muitos mais, especialmente se tomarmos em consideração que a subnotificação do número de mortos, independentemente das razões, não é rara em cenários como estes. A Comissão Nacional de Direitos Humanos guarda relatos das atrocidades e registos de violações de códigos de conduta na forma de actuação das Forças de Defesa e Segurança.  A Human Rigths Watch regista actos de intimidação de jornalistas pelas FDS. A detenção dos jornalistas  Amade Abubacar e Germano Adriano, por alegada "violação de segredo de Estado", evidencia o clima de deterioração dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

 

Inequidades sociais e históricas, exclusão económica estrutural,  extremismo religioso, expansionismo do terrorismo regional e global, brigas e ressentimentos "interétnicos", atavismos inter-tribais, disputas entre grandes interesses económicos e de controle territorial,   sublevações camponesas espontâneas, migrações económicas desusadas,   rebelião da juventude frustrada, conspirações dos senhores da guerra, armadilha lançadas por mercenários, prolongamento de disputas de interesses intrapartidário e muito mais, fazem parte do arcabouço de caracterização estereotipada não conclusiva do que se passa no "Teatro de Operações" em que Cado Delgado se tornou.   As ofertas e predisposições de "príncipes" para exterminar os insurgentes em três meses,  soam a achas à fogueira e pedidos de credenciais para a legitimação da actuação de grupelhos económicos e militares em cenários fartos, quais abutres circundando agonizantes presas.

 

O obscurantismo que cerca o entendimento da tragédia que se desenrola em Cabo Delgado, na era da informação, é tão despropositado que sequer se presta a função de abrir mentes e "ganhar corações".   Quando o PR diz que é tempo de os nossos serviços de inteligência virem dizer-nos o que se passa e, ainda assim, não ter reposta plausível (pelo menos publicamente) talvez seja tempo de rearticular os esforços, ampliar as plataformas de visibilização do tamanho da tragédia, abrir corredores de protecção e assistência às populações deslocadas, potenciar o aproveitamento dos trabalhos das pessoas que vem produzindo reflexões sobre Cabo Delgado e assuntos afins, e reiterar que CD não é terra de ninguém, propriedade privada, cujos dramas e dilemas possam ser tratados somente por debaixo de tapes.  

 

O cerceamento de liberdades de profissionais de comunicação, na era de abertura tecnológica, dificilmente vai prestar-se aos objectivos das táticas adoptadas no passado recente, quando a estratégia de descaracterização dos rebeldes resumia-se em tratá-los como simples "bandidos armados", sem bases sociais e até materiais de apoio e que poderiam ser desmantelados num abrir e fechar de olhos. Não preconizo nenhum repetir-se da história, mas a necessidade de capitalizar do conhecimento histórico sobre as nossas guerras e guerrinhas, ampliar o espectro para novos aprendizados, desviar-nos de chavões ufanistas e triunfalistas do tipo grupelhos já fragilizados e quase acabados e investir na busca e partilha de inteligência para assegurar maior efectividade das escolhas do Estado nas suas formas de actuação nesse trágico "teatro de operações" que se faz de Cabo Delgado. Em tal “teatro de operações”, salvo por melhor elucidação, a única coisa claramente não teatral é o rasto de destruição, de vidas ceifadas, famílias e comunidades destituídas. O resto, urge interrogar, compreender e engajar-nos como sociedade coesa e solidária na preservação da vida, nos esforços de normalização das rotinas das pessoas mais sacrificadas, qual capim em brigas de elefantes.

 

É tempo de inventarmos qualquer coisa como "década da vitória contra a barbárie"  que, a ser bem sucedida, possa abrir espaço para décadas de vitórias pelo que de melhor alguma vez, como país, aspiramos.

Sir Motors

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