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segunda-feira, 26 agosto 2019 09:07

Conflitualidade humana em Cabo Delgado: quem chama as balas?

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A violência militar que tem causado a morte de camponeses inocentes, por vezes através de decapitações, acompanhada de incêndios a aldeias inteiras, é uma manifestação extrema de conflitualidade humana na Província de Cabo Delgado. Contudo, ela não é a única, havendo outras, múltiplas e mais antigas. E são múltiplas as causas da violência nesta província, que, sendo riquíssima em recursos naturais, é das mais pobres do país!

 

Desde o dia 4 de Outubro de 2017 (ironicamente, o Dia da Paz, evocando a data em que, em 1992, foi assinado, em Roma, o Acordo Geral de Paz, pondo termo a 16 anos de uma guerra atroz, opondo o governo à Renamo!) que Cabo Delgado tem sido palco de ataques perpetrados por “desconhecidos”, tem havido debates aqui e acolá, incluindo em sede de estudos ou instituições académicas, dentro e fora do país.

 

 

Contudo, persiste uma percepção geral de que, do lado do governo, tem sido dada preferência a uma estratégia de silêncio, em contraste com a natureza particularmente cruel dos perpetradores destas operações, nunca vista nem ao longo dos 16 anos da guerra (temporariamente) terminada em 1992.

 

Se pode ser atendível um argumento oficial fundado na necessidade de evitar criar pânico aos grandes investidores que demandam a província – do gás ao rubi, passando pelo grafite até ao mármore - não será menos atendível o clamor dos cidadãos por um maior esclarecimento sobre o que se passa, suas causas e, quiçá, alguma luz sobre que soluções as autoridades estão a considerar – para além da via militar!

 

Mas a conflitualidade em Cabo Delgado, podendo ser mais mediática na vertente das incursões dos chamados “malfeitores” – pela sua não comprovada associação ao extremismo islâmico e pelo seu potencial de perturbar grandes investimentos estrangeiros – ela alarga-se a outros focos, como em torno da extracção de outros recursos naturais, minerais, florestais ou de outra natureza.

 

Imbuído desta preocupação, um grupo de organizações da sociedade civil moçambicanas, incluindo algumas baseadas na fé, estiveram reunidas nos dias 23 e 24 de Agosto na cidade de Pemba. O seminário teve como título: “Conflitualidade Humana na Exploração de Recursos Naturais na Província de Cabo Delgado: Reflexões e Perspectivas. A Comissão Episcopal de Paz e Justiça, entidade da Igreja Católica, coordenou e acolheu evento, nas instalações da Universidade Católica de Pemba.

 

O principal foco do seminário era: afinal o que tem estado a atrair tanto conflito em Cabo Delgado? A resposta, demasiado tentadora, de que é a abundância de recursos naturais, pode ser muito simplista e, por isso, inidónea para justificar a prolongada instabilidade. Importa, por isso, conferir aos ângulos de análise aberta ainda maior, fora de janelas políticas amarradas a interesses de controlo político. E, na medida das circunstâncias, foi essa a perspectiva analítica adoptada para este seminário.

 

Quem chama as balas?

 

Em 1983, o autor britânico Joseph Hanlon, um dos mais reconhecidos estudiosos de processos políticos em Moçambique, publicou um livro com o título: “Mozambique – Who calls the shots?” Numa tradução livre, este título significaria: “Moçambique – quem comanda os tiros?”. Mas o sentido de “de onde vem a guerra?”. Poder-se-á resumir nesta breve pergunta o foco do seminário de Pemba.

 

 

E então quais foram as respostas sugeridas? As propostas de resposta vieram de diferentes perspectivas de análise e pontos de partida: perspectiva histórico-política; antropossociológica; socioeconómica e – aceite-se! – ecléctica!

 

Entre as figuras e instituições que se colocaram à frente, com suas reflexões e perspectivas, poderia, a título exemplificativo, mencionar: Yussuf Adam (Universidade Eduardo Mondlane); Dom Luiz Fernando Lisboa, Bispo da Diocese de Cabo Delgado; Paolo Israel (Universidade de Western Cape); João Mosca (Observatório do Meio Rural); Zenaida Machado (Human Rights Watch; Inocência Maposse (CIP).

 

Estes e outros actores estimularam debates livres e descomplexados, a partir de temas como: bases históricas da emergência do extremismo violento no Norte de Moçambique; soberania espiritual, etnicidade e violência política: as raízes históricas da presente crise em Cabo Delgado; pobreza, desigualdade e conflitos no Norte de Cabo Delgado; e Direitos Humanos nas operações de contra-terrorismo em Cabo Delgado, e Indústria Extractiva – como ela afecta a cultura e os camponeses, entre outros temas de igual ou superior relevância.

 

As fontes da conflitualidade

 

Quase todos os primeiros oradores – que determinaram o mote dos debates subsequentes - foram unânimes num ponto de início: não há um único factor que possa explicar o clima de conflitualidade em Cabo Delgado: existe uma combinação de múltiplos factores que se foram formando, durante longos períodos históricos, como: florescimento de cadeias de crime organizado milionário, nos corredores de droga; de corte e tráfico de madeira; de extracção e contrabando de recursos minerais de grande procura internacional, tudo ocorrendo aos “olhos” de comunidades extremamente pobres e violentadas!

 

Ou seja: no terreno de Cabo Delgado foi acumulado capim seco, disponibilizado petróleo e inúmeras caixas de fósforo, e tudo deixado ao ar livre, à disponibilidade de diferentes interesses ciosos de poder!

 

Yussuf Adam, historiador moçambicano que tem Cabo Delgado como seu campo de estudo há mais de 35 anos, fala de um povo cansado de ser movimentado de um lado para o outro, desde o tempo do colonialismo português até aos dias de hoje.

 

“No regime colonial, as comunidades de Cabo Delgado foram retiradas das suas terras e aglomeradas em aldeamentos, para ficarem longe do alcance da guerrilha da FRELIMO. Entretanto, quando esta tomou o poder e estabeleceu o sistema de socialização do campo, as mesmas comunidades foram levadas para Aldeias Comunais. Agora, no regime capitalista, estão a ser, de novo, retiradas das suas terras e aglomeradas em Aldeias de Reassentamento. Num período de 30 anos, as populações de Cabo Delgado foram à força colocadas em aldeamentos, destas para aldeias comunais e, agora, para aldeias de reassentamento! E sem consideração à sua dignidade – é muita violência!

 

Mas as reflexões académicas mais conhecidas não têm descurado outras prováveis fontes de conflitualidade, também históricas, em que se incluem velhas hostilidades entre Macondes e Muanes; entre o interior e o litoral; ou entre muçulmanos e cristãos.

 

Por seu lado, Paolo Israel, professor de antropologia na Universidade de Pretória, referiu-se a episódios mais ou menos recentes, indiciadores de um relacionamento de conflito e hostilidade entre cidadãos e o Estado, em diferentes distritos da província. Lembrou estórias como a dos leões mágicos de Muidumbe, que terão devorado 46 pessoas e ferido outras três.

 

A comunidade local, que considerou tratar-se de feiticeiros que se transformavam em animais, ficou furiosa e linchou 18 compatriotas. O fundamental a reter aqui é que os principais acusados de comandar os leões à distância eram figuras do Estado ou a ele associadas ou com “bem-estar” acima da média local (o comerciante). Ou seja, em situação de crise sem saída à vista, os pobres lançaram aos ricos e ao Estado a culpa do seu mal-estar e das suas privações.

 

E os distúrbios que, em Novembro de 2000, culminaram com a morte de mais de uma centena de indivíduos, asfixiados no interior das celas da cadeia distrital de Montepuez, considerados como membros ou simpatizantes da Renamo? Como tais episódios se insinuam no imaginário de quem os viveu de perto, quando pensa no Estado?

 

Mais recentemente ainda, o desmantelamento de fortes redes internacionais associadas à exploração e tráfico internacional das célebres pedras rubis de Namanhumbir, no distrito de Montepuez, e de corte e tráfico de madeira, “perturbado” por acções soberanas, como a chamada operação tronco…

 

Caos no extractivismo

 

Em paralelo, os constantes anúncios de investimentos de larga escala em projectos extractivos, quantas vezes feitos de forma exuberante e descontextualizada, têm levantado expectativas sociais exacerbadas, em contextos de pobreza extrema. A não materialização destas expectativas, ao ritmo imposto pela pobreza, torna as comunidades vulneráveis a discursos anti Estado, nomeadamente entre jovens desnorteados e sem expectativa de futuro.

 

Com efeito, é em torno dos empreendimentos da indústria extractiva que, na percepção dos participantes do seminário, devem ser encontradas as principais causas da conflitualidade humana em Cabo Delgado:

 

 

“Os processos de reassentamento têm sido caóticos, onde o Estado aparece em aliança com o grande capital, agravando situações de pobreza das populações”, afirma a dado passo, o documento final do evento, denominado “Declaração de Pemba”.

 

Na abordagem da complexa relação entre a opção de resposta militar à insurgência, versus respeito pelos compromissos constitucionais e internacionais assumidos pelo Estado moçambicano, a jornalista moçambicana Zenaida Machado, falando na qualidade de pesquisadora da Human Rights Watch, uma organização de defesa de direitos humanos, diria:

 

“Ao procurar responder à insurgência por via militar, as Forças de Defesa e Segurança têm levado à cadeia centenas de jovens inocentes que, uma vez enclausurados, acabam expostos a verdadeiros extremistas. E uma vez mandados em liberdade, porque absolvidos pelo tribunal, muitos deles desaparecem sem deixar rasto: para onde vão? “

 

Na sua declaração final, as OSC participantes apelam ao governo no sentido de:

 

Eliminar os obstáculos de acesso à informação a jornalistas, investigadores e cidadãos em geral aos locais de conflitos;

 

Fazer uma revisão da estratégia de actuação militar, capacitando os militares em matérias de direitos humanos, apostando em amnistias e em incentivos de reclusão social”.

 

Este terá sido o primeiro evento em que organizações da sociedade civil moçambicana, incluindo de áreas de pesquisa, abordam de uma forma colectiva e aberta o clima de violência em Cabo Delgado e produzem recomendações ao governo, apelando para maior acesso do público sobre a crise de segurança que assola a região desde Outubro de 2017.

 

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