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segunda-feira, 14 outubro 2019 07:12

Colcha de retalhos

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Facilmente se pode arguir que, como país, estamos uma colcha de retalhos. Não de todo um traste, ou quase lixo a que (im)piedosamente nos empurram as agências internacionais de monitoria da evolução de indicadores macroeconómicos, mas uma colcha de retalhos e, como se não bastasse, curta e incapaz de cobrir a maioria dos moçambicanos que ficam inescapavelmente com os pés, tronco ou cabeça de fora, geralmente, em associação a equidistância dos círculos dos poderes para cada um.

 

Por mais que insistamos em regabofes de "visibilidade" nos maiores hotéis da capital, em celebrações de acordos de compromissos de exploração de recursos naturais nas bacias do Rovuma e de outros lugares mais, o essencial não está nas exibições tacanhas do que vamos entregar a predadores económicos que mal se compadecem com a nossa autoinfligida miserabilidade.

 

Apostar no avacalhamento dos recursos naturais, como estratégia de encaixe financeiro para conferir alguma liquidez e alento de ocasião, que aparente aliviar o sufoco nos desertos que ainda teremos que atravessar, não passa de levianos actos de oportunismo, sem genuíno  compromisso com o todo e com as gerações vindouras, para não falar destas que inescrupulosamente se digladiam.  Mais grave ainda é retomar negociatas e roteiros obscuros de utilização de recursos naturais que, em princípio, são de todos os moçambicanos e que deveriam servir aos melhores interesses e propósitos do país, a meio de uma salada de inconfessáveis desvios, como são as maracutaias das fatídicas dívidas, outrora ditas ocultas.

 

É claro que o país não deve parar até que estejam criadas condições ideais para avançar-se  em qualquer direção. Na farta sabedoria popular, é lugar comum que o caminho se faz caminhando.  Mas não nessa direcção! Uma das mais importantes partes dessa caminhada estaria em criar condições para que tenhamos mais inclusivas e consistentes deliberações sobre as formas de capitalização dos recursos naturais (e porquê não socioeconómicos e culturais) de que dispomos, particularmente na actual conjuntura de evidente erosão da significância do Estado.

 

Quando o Estado e Governos precedentes e subsequentes se confundem com indivíduos, indiciados, suspeitos, bandidos e detidos, da cúpula ministerial à presidencial, é caso de dizer-se que estamos em estado de sítio. Encalhados e encurralados nas teias das arquiteturas políticas que nós mesmo armamos, muito antes da barbárie em que embarcamos com essa história de construir um quarto andar, com este perfil de timoneiros políticos que o partidão escolheu.

 

Confesso que já não consigo descortinar vestígios identitários com essa entidade que um dia foi, expressou-se e agiu como reservatório de talentos e idoneidade engajados na mais positiva competição pela apresentação da melhor prestação individual e colectiva nos diferentes sectores. Ainda que tenhamos estado em permanentes conflitos e confrontos, nem sempre fomos reduzidos, como coletividade, aos piores exemplos de cultura política e governamental, de e sobre nós mesmos. 

 

Se, em entrevistas, líderes políticos reconhecem que o fuzilamento era parte da praxe político partidária, as ressalvas conjunturais e escolhas ideológicas podem ser invocadas para dizer que nessa altura, era o prato que lhes era dado a servir, até como reflexo de vivências e experiências de onde, de empréstimo, tomavam tais preceitos ideológicos e práticas.

 

Hoje, tendo em conta os níveis de abertura, exposição e conhecimento sobre os conteúdos intrínsecos às diferentes opções ideológicas e de governação, não faz nenhum sentido que estejamos piores que nos períodos mais negros da nossa história recente. Tribunais populares, ainda que fossem só de nome, campos de reeducação, nas ignóbeis tragédias que representaram, começam a deixar de equipara-se com o terrorismo aleatório instaurado nesta conjuntura que se poderia considerar mais informada, consciente e exposta aos valores, termos e possibilidades de convivência em espaços assumidos democráticos.

 

Se antes vivíamos em tempos de incertezas controladas, em que "rusgas" e "denúncias" poderiam ditar sinistras jornadas e imprevisíveis destinos dos indivíduos,  hoje confrontamo-nos com situações de imprevisibilidade acrescida para os que duma ou doutra forma se engajam em causas de interesse colectivo à margem da bênção do partido que confunde o Estado consigo mesmo.

 

Assim foi com Gilles Cistac, pelo "crime" de argumentar em torno da possibilidade de introdução de autarquias de múltiplos níveis, agora materializadas com a instituição das autarquias provinciais, para as quais partidos estabelecidos e nem tanto, concorrem no presente pleito eleitoral.  Assim foi com uma dezena de militantes do mais expressivo  partido na oposição. Assim foi com indivíduos que simbolizam o livre pensar, como José Macuane e Ericínio de Salema. Assim também foi com Anastácio Matavel, pacato cidadão que se desdobrava, nos interstícios da "política desinteresseira", em promover noções de consciência cívica, direitos e deveres dos cidadãos.

 

Muito para além das nossas zonas de conforto de onde teorizamos e filosofamos cidadania, indivíduos como Matavel, estão na linha da frente na árdua tarefa de contribuir para a inscrição e materialização dessas tão caras noções e valores de democracia e cidadania no imaginário social, enquanto a educação não chega para todos e enquanto tais princípios e valores não se tornam tão elementares e suficientemente banais e generalizados  a ponto de serem classificados como "cultura política nacional".

 

Às vésperas de mais um pleito eleitoral, cá estamos nós,  "a abeira dum ataque de nervos"  incertos sobre os perfis dos candidatos presidenciais e/ou "cabeças de lista" que, a serem eleitos, irão representar-nos. Das estrelas e pulhas que compõem os elencos partidários propostos para as assembleias provinciais e nacional, mal falamos, com excepção de isoladas figuras por ousarem atravessar fronteiras que cativas lealdades partidárias mal as reconhecem fictícias e voláteis. Para a santa inquisição, é sacrilégio vestir bandeiras de cores outras, para além da vermelha, presumida guardiã da "generosidade" e, simultaneamente,  que se presta à penosa tarefa de vigiar os "eunucos" e  castrar qualquer, possibilidade de regeneração. Que delírio!

 

Na "recta final", cá estamos. Entre pobres manifestos e ostensivas manifestações, a campanha eleitoral traduziu-se em exaltações de fotogenia, fechamento e aberturas angulares de camearas, para além de um inenarrável número de mortos, potencialmente evitáveis, não fosse a obsessão megalómana em fazer vincar grandezas partidárias que, mesmo com intimações e transferências punitivas de funcionários públicos para lugares distantes das suas estruturas familiares, não passaram de formas de expressão lúdica e recreativa.  Aos estrategas de plantão recomendaria, vivamente, o abandono da obsessão pelo impressionismo ondulado, que nesta campanha, confundiu-se com onda de sangue.

 

Surpreendentemente, as fragilidades e fragmentações dos azuis, ainda que levantem celeumas sobre a sua viabilidade como partido-governo, os níveis de insatisfação com o actual partido governante, bem como o descrédito sobre a sua capacidade de "purificação das fileiras" terão contribuído para  uma expressiva mediatização de alguns dos seus porta bandeiras.  Notória foi a entrada dos filhos e sobrinhos dos chefes nas linhas de frente das campanhas, prestando-se ao necessário papel de subverter os estereótipos das lealdades partidárias. Na sua aparente banalidade, não poderia haver melhor recurso de humanização do outro, e do "relaxamento", usando a linguagem parlamentar, da tradição de desumanização da oposição, qualquer que seja. O artificio da mimetização fotogénica dos rebeldes e revolucionários, a la Che e /ou a la Malema, com direito a "sungura music" parece ter contribuído para apimentar alguns desses espetáculos que, permearam a prestação de quase todos os partidos concorrentes. As diferenças de proeminência e visibilidade, ficam ao cargo das diferenças organizacionais e da pujança do capital financeiro ou capacidade de usufruir, indevidamente, dos recurso do Estado.

 

Ainda que seu líder não aparente estar a baixar a crista,  um dos mais articulados e coerentes candidatos desta maratona, o aparente declínio do partido do galo parece ilustrar, não apenas a reconfiguração de forças no cenário político nacional e soa como uma última performance de um proeminente actor político cujas escolhas e fluxo dos acontecimentos terão desgastado parte do seu capital e limitado as probabilidades de triunfo, pelo menos aos patamares de escala nacional.  Como se tivesse que carregar o carma pela imperícia na lide com gigantesco finado edil de Nampula. Pelo que leio, talvez a memória do seu muito honroso mano a mano com o ciclone Idai poderá salvar-lhe a honra.

 

Enfim... vão-se os anéis, ficam os dedos, que se esperam mais prestativos aos tocar a tinta indelével, riscar em papéis e  inebriar-nos em vaga sensação de escolha. Em qualquer que recaiam as nossas, vossas escolhas, o processo eleitoral,  descredibilizado que é, ainda é o legítimo caminho para comunicar e, eventualmente, inscrever as nossas aspirações alto e bom tom. A meio de sistémicos desencontros, que não percamos de vista que, por enquanto, Moçambique é feito e se faz com estes mesmos trapos, uns mais desgastados que outros, uns menos briosos que outros, mas que, se levados à sério, podem ser capitalizados para continuarmos a costurar essa colcha de retalhos que, ainda que não nos baste, cobre-nos como dá.

 

Aos arruaceiros, vestidos a rigor ou não, aos ladrões de votos e urnas, tenho a dizer que têm mais uma preciosíssima oportunidade de se redimirem, no dia 15 e período subsequente, fazendo a coisa certa e deixando que as consciências, vontades e liberdades de todos os moçambicanos fluam e sigam o seu curso, como é de dever, como é de direito. 

Sir Motors

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