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quinta-feira, 13 agosto 2020 06:13

O outro lado do centenário de Mondlane - Por Jorge Ferrão

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Hoje, em meio à pandemia,  continuamos  ligados à leitura. Lemos de tudo um pouco. Da ficção à falsidade, da política ao desporto e do humor à genialidade. Lemos em diferentes formatos, desde o livro físico ao digital, do audiolivro às mensagens. Ainda assim, os entendidos ajuízam ausência de leituras.  Lemos cada vez menos, argumentam.

 

Redes sociais parecem ter libertado vozes que não encontravam canal de expressão, em outras circunstâncias. São os clamores contra as limitações impostas por editoras, periódicos e jornais. Esses canais sociais vão construindo estes espaços democráticos e menos excludentes.

 

Mãe Janet Rae Johnson Mondlane, no topo das suas 86 primaveras, continua leitora assídua, tradicional e cibernética. Ao longo do dia, devora centenas de páginas e outras tantas mensagens. Por vezes,  ainda encontra espaço para redigir breves comentários. Exorciza seu passado, suas leituras e, amiúde,  continua activa, seguindo a essência do planeta e da nossa terra. No centenário de Mondlane, ela poderia e deveria ter sido mais referenciada e mais ouvida. Afinal, a maior companheira de Mondlane, sua confidente e amor eterno, continua com a sua mente lúcida e imaculada.

 

No passado, pela sua caneta e punhos, publicou O eco da tua voz, que retracta as longas conversas que manteve com Eduardo Mondlane. Quem os conheceu, e com o casal conviveu, sabe das milhares de cartas trocadas, no período de aproximação sentimental e, igualmente, depois de casados e, ainda, durante a luta armada. Eram, particularmente, obstinados por ler e escrever. Passamos, ainda, a conhecer a sua biografia, da autoria de Nadja Manghezi, O meu coração está nas mãos de um negro, aliás, referência obrigatória para os jovens que se interessam pelos contornos da luta de libertação de Moçambique. 

 

No grupo WhatsApp em que ela participa, talvez num conjunto de outros grupos, os membros decidiram iniciar um processo de identificação.  Uma forma de ajudar a mãe Janet a reconhecer, de entre familiares e amigos, gente próxima ou distante, aqueles cujos nomes ela ainda poderia associar. Neste exercício, os nomes viraram complementos, na descrição e narrativa, pois, as fotografias,  se transformam em sujeitos e predicados. Esta foi uma oportunidade para rever o passado que, para ela, será indefinidamente presente. Um exercício que permite a matriarca do grupo saber com quem fala e responder a todos, simultaneamente.

 

Entrincheirados nesta quarentena coronária, tem sido um enorme prazer desfrutar dessa mulher missionária, conhecedora de tantas facetas e episódios da luta de libertação nacional, e alguém que teve a responsabilidade de fazer de Eduardo Mondlane, essa figura que a todo mundo impressiona e instiga a pesquisá-lo.

 

A mãe Janet Mondlane, na modernidade dos algoritmos, nos pregou uma boa rasteira. Estes grupos não costumam ser flor que se cheire. Por lá, circulam centenas de fake news. Até dou razão ao Yuval Noah Harari, pois a conectividade não escolhe idades e, muito menos, gerações, nem selecciona ou distingue o essencial. Mas, a presença da mãe Janet, ajuda a manter algum decoro.

 

Mas, este exercício foi para lá de sui generis. Tento, numa única foto, expressar minha identidade. Falar da matrilinearidade e dos montes Namúli. Expressar o quanto as nossas escolas carecem dos apoios do Instituto de Moçambique; que as bibliotecas andam despidas do essencial, livros. Nesta foto, também, queria poder falar das jovens mulheres que sentem na pele os desmandos e abusos de quem as deveria proteger. A fotografia precisaria minimizar tudo o que o Covid-19 destapou e revelou, a dureza da carência e da pobreza.

 

Igualmente, dizer que conheço o quilómetro zero e, que realizamos uma intensa jornada de comícios e visitas históricas a Nwadjahane. Nessa circunstância, ainda me recordo, foram sacrificados bois, para se manterem as tradições. Nesta foto, que também enviei, queria tanto dizer que num dos comícios, quando foi necessário fazer apresentação pública da comitiva, a Nyeleti Mondlane, sua caçula, estava ocupadíssima preparando as iguarias e cozinhados. Chamada para o palco e, sem que tivéssemos dado conta da sua ausência, alguém, bem-humorado, a meio do público, gritou: - “a Cda Vice-ministra está na cozinha”. Uma gargalhada sem limites. Assim será, sempre, esse pequeno lugar, que foi a escola de vida de Eduardo Mondlane.  

 

Neste centenário de Eduardo Mondlane, que não deveria terminar, cada uma das fotos deveria expressar sua gratidão para com o arquitecto, mas, acima de tudo, entender a sua grandiosidade e re-significar a sua morte prematura. Quem sabe, teria sido oportuna a revelação dos contornos do seu assassinato e da perícia policial que determinaria o fatídico 3 de Fevereiro de 1969. Só se passaram 51 anos e parece que a nossa memória colectiva esquece, com facilidade, que a história precisa de ser reescrita.

Sir Motors

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