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quarta-feira, 29 dezembro 2021 08:02

Carta da viúva de um guerrilheiro!*

Sei que em vida meu esposo matou! Destruiu bens alheios. Criou inimigos e não são poucos, razão pela qual morreu como um gambá, perdido na mata e com um calção roto e todo fininho, como quem vivia desesperado. Em vida tivemos filhos e constituímos uma família. Em casa, ele tinha um espírito de pai, cuidava dos filhos e dos seus próximos, mas era alguém com sangue quente e com sonhos de grandeza!
 
Sonhava tão grande que na tenra idade decidiu abraçar o lado oposto da guerrilha que viria a durar por 16 anos. Durante este período formou-se e cresceu militarmente. Viu tanto sangue e cabeças decepadas que a situação se tornou normal. O campo da guerra transformou o homem num animal. Numa máquina assassina. Num puro sicário ao modo mexicano! Não foi em vão que a sua morte foi anunciada em antena nacional e fez manchete de vários jornais!
 
A morte do meu esposo não me surpreendeu, porque desde que nos unimos, sempre soube da vida dele e aquele triste fim já estava anunciado. Era como se fosse um filme que havia se repetido por mais de 10 vezes num dia. Mas era a vida do meu esposo! E ninguém deve pagar por ela, muito menos os filhos, eles não podem pagar pelo crime do pai – a vida belicista que ele levou em vida não pode ser motivo de perseguição dos seus próximos e semelhantes!
 
Desde o período em que estava em vida, sete filhos do guerrilheiro foram raptados e até aqui não se sabe do paradeiro dos mesmos. Nunca apareceu alguém a exigir resgate e mesmo com tantas ameaças que o pai em vida fazia, os pobres garotos nunca foram soltos – as más línguas dizem que foram officials soldiers que levaram os miúdos do Nhongo e hoje a viúva chora com lágrimas de sangue e ninguém lhe responde – na vila onde vivem, os populares já não acreditam que estes estejam vivos – embora a viúva tenha a esperança de que estejam num determinado cativeiro! 
 
Se uma das regras basilares da guerra é não matar civis ou inocentes, então, porque os filhos de um guerrilheiro irão pagar pelos crimes do pai já morto? Será que eram integrantes do grupo de guerrilha liderado pelo pai? Porque sacrificar a raiz fresca de uma árvore seca? Casos similares deviam servir de exemplo, como a família Bin Laden na Arábia Saudita, a família Escobar na Colômbia, até mesmo por aqui, alguns filhos dos chamados por reacionários seus filhos e parentes continuam vivos.
 
Há que rever esta versão hamurabiana que se está a tentar instalar na Pérola do Índico. É tempo das organizações que dizem defender os direitos humanos entrarem no assunto e trazerem a sua versão dos factos. É importante que as autoridades judiciais se pronunciem sobre o assunto, porque juridicamente falando cada um é responsável pelos seus actos!
  
*Artigo de imaginação e inspirado na entrevista da viúva de Mariano Nhongo que exige a libertação dos seus sete filhos.

Para este natal, irremediavelmente, não desfrutaremos do comovente e eloquente sermão do Padre Giuseppe Frizzi. Ele fez outras opções. Será o orador de honra  para uma outra plateia distinta, onde se encontra o Beato José Allamano, Beata Irene Stefani e outros de privilégios santificados,  calmarias abençoadas e eternas redenções e dos seus colegas combatentes crónicos Namúlicos: Franco Gioda e Francisco Lerma Martínez.

 

Nesta ausência anunciada de Padre Giuseppe Frizzi, sobram as lembranças, as memórias de um  irreverente pensamento filosófico, de um crítico linguístico e abnegado defensor da cultura Macua-xirima. A tríade Frizzi, Gioda e Lerma engajou-se para a personalidade cultural do povo Macua. Nas nossas preces, recordaremos das missões de Mitucué, Cuamba, e Maúa. Faremos uma noite de consoada, no seu centro de investigação Macua-Xirima, relendo o seu dicionário Xirima-português, a gramática de alfabetização, a antologia bilíngue da biosofia e biosfera xirima, e louvaremos o Senhor com os livros de Canto feitos por ele como Mavekelo ni Itxipo (Oração e Cantos). E contemplaremos a beleza da arte Macuana que nos conduz ao mistério da encarnação que ele, traduzindo o Evangelho de João “E o Verbo se fez carne” (João 1, 14), na língua Macua todos repetirão: “Muluku ahipaka Muthu”- num acto de memória e memorial que toda a criatura possa louvar a Deus em todo tempo e lugar.

 

Louvar a Deus sim, diz o Padre Frizzi, mas na sua própria identidade cultural. Onde o africano-Macua é Cristão sem deixar de ser africano Macua. Porque o espirito de Deus já se manifestou antes do missionário chegar naquela cultura africana-Macua. É nesta lógica dialógica que o padre Giuseppe Frizzi coloca-se na esteira de Justino, filósofo e mártir (Logos seminal), Karl Rahner (Os cristão anónimos), José Filipe Couto (a Salvação dos não Cristão) e Raimon Panikkar (O Cristo desconhecido do Induísmo). Por isso, para Frizzi, a missão é recolha e não é semear. Ser missionário é viver com o povo através do instrumento linguístico performativo é um autêntico agir comunicativo com a cultura. A cultura aprende-se, vive-se e precisa fazer-se parte integrante da cultura. É isto que o padre Frizzi foi. Tornou-se macua entre os macuas. Viveu macuano entre os macuas e valorizou a personalidade da cultura macua entre os macuas e para os macuas e de consequência para a humanidade inteira.

 

Frizzi foi Missionário da Consolata, muito ousado, engajado e sobretudo, soberbo amante da língua macua-xirima. Escreveu um dia que, em África, se perpetra a extinção de uma das espécies de fauna e flora, mas do ponto de vista antropológico seria, ainda, mais trágico constatar que se esta marginalizando e condenando à morte todo o capital das inúmeras línguas maternas, porque consideradas atraso de vida e inúteis, elas parecem significar um impedimento ou condicionante para uma entrada da localidade e oralidade na modernidade, como se essa globalização enfatizada, implicasse, necessariamente, a exclusão da localidade, da oralidade e de sua história.

 

O Doutor e investigador Giuseppe Frizzi pode não ter sido dos mais aclamados e famosos padres que chegou, viveu, trabalhou e seguiu para o encontro com o Senhor, em Moçambique. Porém, convenhamos, foi um dos que mais pesquisou, bebeu dos capitais antropológicos guardados na oralidade e converteu-se num militante e combatente consequente e apaixonado pela riqueza linguística e cultural dos macuas-xirimas. Nessa oralidade redescobriu expressões axiomáticas de quase todas as flexões macuanas existentes, Niassa, Nampula, Zambézia e Cabo Delgado. Pode-se afirmar, sem reticências, que G. Frizzi fez uma revolução copernicana à filosofia Africana com os seus conceitos de “Biosofia e biosfera Macua-xirima” para buscar os segmentos e fragmentos da mesma cultura africana-Macua Xirima, sem os próprios filósofos africanos aperceberem-se, pois introduziu um modo de filosofar no silêncio onde a dialéctica é dialógica e não a hodierna forma de filosofar que é uma autêntica dialéctica conflitual. E nesta forma, Frizzi coloca-se na linha traçada por Fabien Eboussi Boulaga, segundo a qual a filosofia africana deve ir além dos conflitos, e buscar a cultura africana como base para o próprio filosofar.

 

Giuseppe Frizzi, à semelhança de tantos outros missionários da Consolata, pregou e evangelizou esse distante e esquecido Niassa. De origem italiana, nascido a 14 de Maio de 1943, mas que nunca quis, sequer fazer alarido, era e identificava-se como moçambicano e falava, regra geral,  em macua com quem lhe cruzava o caminho e tornou-se Moçambicano, portanto, é Moçambicano. Entrou para o Instituto das Missões da Consolata em 1954, tendo sido ordenado sacerdote em Dezembro de 1969. Foram mais de 52 anos de serviço bíblico e, principalmente, de pesquisa da sua língua favorita o macua-xirima.

 

Dizia, com frequência, que os estrangeiros se enamoravam da língua macua, portanto, seria incompreensível que isto não acontecesse com os donos desta cultura e desta língua, que em sentido contrário assumiam, em muitos casos, uma atitude passiva e até de indiferença. Vivia preocupado e assombrado com o facto de quase todas as traduções, pesquisas etnográficas e etnológicas publicadas serem feitas, grosso modo, por missionários e missionárias, agentes pastorais da igreja. Isto, dizia, tinha um valor cultural imensurável, porém, sem sinais evidentes de continuidade destas pesquisas e estudos pelos donos da língua.

 

Em 1998, o Presidente Joaquim Chissano visitou o distrito de  Mauá, Niassa, e travou contacto com o Padre Giuseppe Frizzi, no coração do seu centro cultural e bibliotecário designado CIMX. Uma espécie de santuário de repositório de pesquisas que nunca publicou. Este centro realizava palestras, cursos, traduções e publicações em xirima. Não tardou para que o Presidente  constatasse que o Padre vivia em condições difíceis. Pareceria alheio ao essencial e ao conforto. Uma espécie de ser aculturado, que dormia numa esteira e tinha o mínimo de conforto. O padre explicou que ele adoptara aquele modelo de vida, desde que havia chegado a Moçambique, em 1972 depois de ter obtido o doutorado em Exegese Bíblica em Múnster - Westfália, Alemanha, mesma universidade onde doutorou-se o Padre José Filipe Couto em Teologia.

 

A sua preocupação, explicou ao Presidente Chissano, era que as igrejas mostravam uma sensibilidade linguística e pastoral bem superior que todos os empreendimentos do Estado juntos. Deveria ser o Estado que se deveria preocupar com a política linguística, com o ensino bilíngue e com a valorização do património linguístico de que o país era possuidor, porque para o Frizzi a língua é o veiculo cultural de identidade de uma cultura e de um povo. Em outras palavras, podemos dizer que Frizzi concorda com o filósofo Martin Heidegger quando diz que a língua é o pastor do ser, e com o antropólogo maliano Amadou Hampâté Bâ que afirma que a língua em África é criadora e a palavra recria a cultura dentro do processo histórico cultural.

 

Durante o período da guerra civil, e até a actualidade, afirmava que as publicações litúrgicas, catequéticas, bíblicas e científicas, além da sua específica tarefa, haviam sido responsáveis pelo trabalho de alfabetização de adultos, novamente, bem superiores aos empreendimentos das instituições públicas. Milhares de homens e mulheres haviam aprendido a ler e a escrever, a sua própria língua, e até em português, frequentando a catequese na língua local. Parecia uma utopia metodológica funcional.

 

Foi durante esta visita que ousou provar ao Presidente que não se deveria olhar para Moçambique artístico como limitado às esculturas Macondes, e um pouco mais. Existiam outras expressões artísticas e culturais como as esculturas e pinturas Macua-xirima, que embelezam igrejas, museus e habitações em Moçambique  e no estrangeiro. A sensibilidade artística xirima quer sob a perspectiva sintética, como simbólica e monumental, recordava o romântico medieval que conquistava os interessados pela arte. Mas, o valor mais importante residia nos provérbios que ele considerava como possuindo um valor de literatura oral, sapiencial e poética. Era, então, essa dignidade estética e consistente  da oralidade macua.

 

Com outros missionários no distrito de Mauá e, em particular, com o Padre Francisco Lerma, seu melhor amigo,  dedicou-se ao estudo da língua e da  cultura Macua-Xirima e criou o Centro de Investigação Macua-Xirima. Em 3 de Dezembro de 2009, a Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma conferiu-lhe o doutoramento honoris causa em Missionologia. Nesta ocasião falou sobre as ínguas ocidentais, comparando ao macua-xirima. Era o princípio de um teorema namúlico , em tonalidade feminina, matriarcal e nocturna lunar. Uma espécie de antropologia do domínio do masculino sobre o feminino. Para ele, era uma simbiose sinergética dos dois hemisférios antropológicos.

 

Por ser de uma cultura não sexista, esta língua tinha a possibilidade de apresentar uma proposta complementar a comum concepção do religioso e do teológico. Padre Frizzi participou no processo para a beatificação da Irmã Irene Stefani na apresentação do milagre: da multiplicação da água (1989), e que foi o motivo pelo qual a irmã foi beatificada. Padre Giuseppe Frizzi não foi jamais referenciado como milagreiro, porém, seus feitos, sem dúvidas, fizeram dele um dos maiores responsáveis pelos novos percursos e itinerários teológicos e linguísticos, não só possíveis, mas, também, imensamente desejáveis. Também nunca foi mencionado como filósofo, mas as suas obras contribuíram para a mudança do paradigma filosófico africano.

 

Para os Macuas o dogma é: Ninkhuma Onamúli! Onamúli Innotthikelawo! -Do Namúli viemos! Ao Namúli regressaremos! Portanto, o padre Giuseppe Frizzi encontra-se no Namúli onde sempre foi crónico e sempre desejava regressar ao Namúli sendo um Macua fiel.  E cada macua onde quer que ele se encontre deve saber que do Namúli viemos e ao Namúli regressaremos! Por isso, como ele, só podemos dizer : Pwiya relihani Africa! Amém Aleluia

segunda-feira, 27 dezembro 2021 08:48

2021, como esquecer o acidente de Maluana?

Parece que é inútil tomar um autocarro e dizer o nosso destino, parece que são as ultrapassagens, a vontade dos travões e as fintas dos motoristas que determinam o nosso destino. Trinta e quatro pessoas viram o seu destino desviado em Maluana, se ao menos tivessem tido uns segundos para levar um quilo das suas bagagens, um terço do seu corpo e seus documentos para, pelo menos, chegarem ao céu dignos e bem identificados.

 

De que adianta dizer o destino nos nossos autocarros? Em Maluana uns queriam ver suas famílias, abraçar seus filhos e talvez tomar uma cerveja, mas foram todos desviados: uns empacotados nas gavetas das morgues somente com toalhas de sangue ao corpo, outros divertem-se ao som da dor enquanto bebem um soro bem gelado nos berços do hospital e há outros que chegaram às suas casas com uma parte do corpo abandonada em Maluana. De que adianta dizer o destino nos nossos autocarros?

 

Façam a estatística certa, contem as vidas que já foram desviadas nas nossas estradas, contem os mármores nos cemitérios com o verso “vítima de acidente de viação”, contem os acidentes que a cada dia obrigam-nos a abrir o álbum de fotografias e a colocar uma cruz na testa dos nossos, contem as famílias que brotam debaixo dos lençóis e acabam sempre debaixo do alcatrão.

 

E depois surgem as indemnizações para que os mortos tenham um troféu de mármore com o “vítima de acidente de viação”, surgem as condolências, os resultados da perícia, surgem apelos e depois, como bons atletas, voltamos à pista e os motoristas decidem o nosso destino.

 

Trinta e quatro pessoas viram o seu destino desviado em Maluana. E como estarão hoje as suas mulheres que se dilatam como lulas para preencher a cama vazia, os seus filhos que hoje engolem as palavras mãe-pai, porque não mais farão sentido no seu vocabulário?

 

Talvez no futuro, se isso não mudar, teremos autocarros sinceros que adoptarão vias e destinos sinceros: “Maputo – Cemitério, via Hospital Central de Maputo”.

segunda-feira, 27 dezembro 2021 07:58

Da Rússia, com

quinta-feira, 23 dezembro 2021 09:07

Levanta-te!

Levanta-te e erga a bandeira da moçambicanidade

Parta para a acção!

É tempo de reversão

De transformação

Do abandono ao ego e viver no filantropismo

 

Levanta-te!

E corra para a sua lavoura

Para a escola

Para a machamba

Levanta-te, homem!

Moçambique e África chamam por ti!

Quando na madrugada escutas:

O canto do galo!

O som alto da buzina do comboio!

A voz do cobrador do chapa!

Os passos da mulher com o cabo de enxada nas costas!

Levanta-te, porque chamam por ti!

 

Levanta-te e erga-te!

É tempo de produção!

Tempo de reversão

Da mudança ou da negação!

 

Levanta-te, soldado bravo!

Pega nesta bazuca

e expulsa estes terroristas

da nossa pátria amada!

devolva a paz a esta terra de heróis

que o seu chão tanto sangue inocente

absorveu!

 

Levanta-te, mulher!

O ser genial que a divindade criou!

Olha que hoje já não és a mesma

que outrora eras simples instrumento

do homem e da sua família!

Hoje, tu és a mentora da transformação

O símbolo da emancipação

A comandante da revolução!

 

Levanta-te e enxuga estas lágrimas meu jovem!

O tempo hoje é outro!

Não precisas dos holofotes para mostrar o seu talento!

Usa o poder da caneta,

da ciência

e da sua inteligência!

Para expulsar este mal que atormenta

Que te subjuga!

Que te humilha

Levanta-te e vença…

a pobreza

o desemprego

a mendicidade

a exclusão social e o temporismo profissional

 

Levanta-te, homem!

E grita bem alto!

Eu sou capaz!

Levanta-te, meu país!

 

Por Omardine Omar, Maputo, Dezembro de 2021

Contextualização

 

De acordo com o artigo 35 da Constituição da República de Moçambique (CRM), que estabelece o Princípio da Universalidade e Igualdade: “Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política.” Nesta disposição constitucional, para além do princípio da igualdade, está plasmado o princípio da não-discriminação, o que é corroborado pelas normas do direito internacional sobre os direitos humanos de que o Estado moçambicano é parte, cujos princípios orientadores inspiraram a elaboração da CRM, como se pode aferir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Carta Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos, do Pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos, da Carta Africana sobre os Valores e Princípios da Função, Administração Pública, etc.

 

Aliás, determina o artigo 43 da CRM que: “Os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais são interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Carta Africana sobre os Direitos Humanos. Em bom rigor, esta Carta Africana é muito mais ousada e inequívoca ao proibir, no seu artigo 2, a discriminação baseada nos critérios definidos pela CRM, conforme acima descrito, como também baseada em qualquer outra situação.

 

Ora, na comunicação do Presidente da República dirigida à nação no dia 20 de Dezembro corrente, na sequência da declaração da situação de Calamidade Pública em virtude da pandemia da COVID-19, S.Exa. disse, em jeito de ameaça para a massificação das vacinações, que poderá, nos próximos tempos, pôr em prática medidas restritivas no acesso a serviços essenciais básicos contra aqueles que não tenham vacinado contra a COVID-19. O que significa que o exercício e gozo de determinados direitos e liberdades fundamentais e com destaque para a dignidade humana podem ser limitados em função da efectivação ou não da vacinação em questão, mediante apresentação do correspondente comprovativo, cartão ou certificado de vacinação, uma espécie de Green Card para acesso a direitos e/ou serviços públicos básicos.

 

O Problema

 

À semelhança de vários países afectadados pela pandemia da COVID-19, corre também em Moçambique o processo de vacinação da população contra a COVID-19 de modo que o maior número da população esteja imunizado quanto à mesma.

 

No entanto, ainda não existem vacinas em número suficiente para todos os elegíveis para o efeito. Relativamente às vacinas adquiridas, Moçambique não realizou os devidos testes de qualidade; não há qualquer garantia ou certeza de que as pessoas já vacinadas estão de facto imunizadas no sentido de que não contraem a COVID-19 e nem transmitem para os outros; também, não há qualquer estudo que certifique que aqueles cidadãos que não vacinaram são os que representam o risco de contaminação ou infecção por COVID-19, bem como de transmissão para os demais, colocando em perigo toda uma sociedade. Outrossim, até ao presente momento, não se sabe quantas dozes de vacina são necessárias tomar para fazer face a todas as variantes e/ou vagas da COVID-19 até agora existentes, tendo em conta os tipos e marcas de vacina que Moçambique adquiriu, incluindo a eficácia dos mesmos.

 

Com efeito, a possibilidade de pôr em prática medidas restritivas no acesso a serviços essenciais básicos contra os cidadãos que vacinaram quais sejam: acesso à escola, aos hospitais, ao trabalho, aos transportes públicos, aos serviços de segurança social, aos diferentes serviços públicos para tratar e levantar documentos como bilhete de identidade e carta de condução; consubstancia um acto de discriminação contra os cidadãos não vacinados para a prevenção e controlo da COVID-19, o que viola o artigo 35 da CRM e os instrumentos internacionais de direitos humanos supra referidos no que à proibição da discriminação diz respeito.

 

Em bom rigor, caso se materialize a referida ameaça, tratar-se-á de uma atitude que se vai traduzir na limitação arbitrária dos direitos e liberdades fundamentais, atendendo que, da interpretação do n.º 2 do artigo 56 da CRM, o exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição, o que não é o caso em apreço, pois, discriminar os cidadãos não vacinados contra a COVID-19 não garante a salvaguarda da saúde pública e da vida. A limitação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais só pode ter lugar nos casos expressamente previstos na CRM. (Vide n.º 3 do artigo 56 da CRM).

 

Mais do que isso, é que a ameaça feita por S.Exa. Presidente da República aqui em análise representa uma ditadura da vacinação, o estabelecimento de um processo de vacinação compulsivo em violação da liberdade de escolha de tratamento contra a COVID-19, quando os mesmos cidadãos sequer têm certeza de que o Presidente da República vacinou e se vacinou, que tipo de vacina tomou, se é a mesma que pretende obrigar o povo a tomar e qual medida de certeza existente de que S.Exa. está completamente imune e não constitui risco para os outros!

 

Concluindo

 

A não-discriminação e a igualdade são princípios fundamentais aplicáveis ao direito à saúde. Considerando que o Presidente da República é o garante da CRM, entanto que Chefe de Estado, resulta não só perigoso e grave o pronunciamento que fez sobre a possibilidade de imposição de restrições no acesso aos serviços sociais básicos para aqueles que não vacinaram contra a COVID-19, como também resulta algo preocupante e assustador relativamente à garantia da salvaguarda do respeito pelos princípios da igualdade e da não discriminação, da liberdade de escolha e dos direitos humanos que se mostram ameaçados com essa pretensão um tanto quanto inconsequente e arbitrária, sobretudo quando há vários elementos de incerteza quanto ao tipo de prevenção (vacina) contra a COVID-19 que se pretende aplicar aos cidadãos de forma coerciva e abusiva.

 

O que dizer das outras doenças contagiosas ou perigosas para a saúde pública cujas vacinas o Estado moçambicano não garante? Com que fundamento legal e ético o Presidente da República poderá mandar vacinar coercivamente os cidadãos e sancionar quem não vacinar? O Presidente da República deve melhor comunicar com os cidadãos e nas suas decisões respeitar sempre os direitos humanos ou a dignidade humana.

 

Portanto, nada demonstra qualquer eficácia para salvaguarda da saúde pública e da vida com a ideia de vacinação compulsiva e restrições a quem não aderir.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos