Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI

Carta do Fim do Mundo

Minhas irmãs, mães e amigas, Camaradas da luta dos violência dos homens contra as mulheres. A sentença proferida há uma semana pelo Tribunal Superior de Recurso, declarando inocente o meu agressor Rufino Licuco, é um golpe na luta da violência dos homens contra mulheres. É um golpe para milhões de moçambicanas, sul-africanas, africanas e mulheres pelo mundo. Parafraseando meu pai, Samora Machel, "perdi uma batalha, mas não perdemos a guerra". Eu e minha família confiamos no sistema de Justiça. Apresentei evidências irrefutáveis (incluindo uma confissão e outras). 
 
 
Especialistas reconhecidos deram seu testemunho profissional à origem da ferida que carrego na minha cara, à perda de um olho. Rofino Licuco conhece a verdade absoluta! Muitas pessoas também, mas acima de tudo, Deus sabe. Quando gritei pela primeira vez e contei aos agentes da saúde e da polícia o que havia acabado de me ocorrer, eu estava sozinha e fiz isso pela verdade e não tinha a noção de que estava gritando por milhões de outras mulheres. 
 
 
Na decisão mais recente, a disputa contínua entre mulheres que ousam buscar justiça e a resolução de casos demonstra os paradoxos da interpretação e aplicação da lei. É um exemplo revelador das deficiências flagrantes da implementação de estruturas legais e legislação projetadas para servir e proteger sobreviventes de violência doméstica. Na busca pela justiça, a bravura das mulheres em tornar público as suas experiências de violência baseada no gênero exige a quebra do sigilo, vergonha e estigma, e a confiança depositada no uso da proteção da lei e do sistema judiciário.
 
 
Supõe-se que a lei seja a primeira e última fonte de refúgio e proteção, mas, como demonstra o "Caso Josina Machel", o sistema de Justiça criminal muitas vezes prejudica e perpetua ainda mais as vitimas e sobreviventes da violência doméstica. O sistema de Justiça demonstrou agora que trai à confiança do povo e é uma fonte de encorajamento para perpetradores continuarem a bater, mutilar e matar-nos, cobertos de impunidade. Este Sistema de Poder já tem o sangue de meu Pai em suas mãos, e uma vez mais, escolhe permanecer com meu sangue em suas mãos. 
 
 
Quero agradecer à minha família pelo apoio incondicional, inabalável e inquestionável. Para mim, como ativista, A luta Continua! Quero garantir aos milhões de mulheres e, em particular, às vítimas e sobreviventes de violência, que minha determinação foi fortalecida. Esta luta me escolheu e continuarei usando minha voz e meu rosto para advogar e lutar pela erradicação da violência baseada em gênero até o meu último suspiro. Juntos, somente juntos e com a força dos números, desafiaremos e desmantelaremos esses sistemas de opressão. Com um olho, continuo como soldado.
 
 
A Luta Continua Josina Z. Machel
segunda-feira, 22 junho 2020 06:40

Como entender o fenómeno do racismo hoje?

Os povos outrora colonizados foram vítimas de um processo brutal e desumano arquitetado ao detalhe e implementado impiedosamente pelos colonizadores. Esse processo foi altamente destrutivo e corrosivo tanto física como psicologicamente; Os povos colonizados são até hoje vítimas das mais vis atrocidades perpetradas pelo opressor - as feridas aparentemente sararam mas as cicatrizes são visíveis e ainda doem. A ideia de alguns grupos admitirem ser superiores intelectual, cultural e humanamente e outros inferiores, deixou marcas indeléveis colocou a humanidade numa guerra silenciosa e que custa vidas e retrocessos a dita civilização; Os povos colonizados tem em mãos a decisão sobre o seu presente e seu futuro mas adiam-na sistematicamente por um pretenso medo de serem efetivamente livres e autônomos – há ainda vivos fortes traços da colonização mental na sua acção.

 

O racismo, com a sua prepotência ideológica faz com que alguns se tornem superiores em relação a outros, assentando principalmente na ideia de que as desigualdades entre os humanos estaria fundada na diferença biológica, na natureza e na constituição do ser humano. Esta postura é maioritariamente assumida por pessoas de raça branca que, de forma recorrente fazem uso da sua posição força e condição de suposta  vantagem para ultrajar e subjugar os chamados inferiores.

 

Hodiernamente, novos estudos e novas abordagens tendem a separar conceito de racismo à simples ideia de raça e racialismo. Tendem igualmente a oferecer explicações sobre esta problemática do racismo na sua relação histórica com a escravatura, colonização, descolonização e neo-colonização. Estes conceitos e temas mostram-se sensíveis no seu trato e cada vez mais actuais, e carecem de uma hermenêutica mais detalhada para  ajudar a perceber a real ameaça do racismo nos dias de hoje.

 

A história moderna testemunhou a várias colocações científico-literárias de afirmação e difusão de ideias de superioridade de um grupo auto-denominado superior em relação ao outro por analogia designado de inferior – das teorias do pré-logismo do homem primitivo, passando pelo bom selvagem, até às teorias positivistas de Augusto Comte é notório um esforço titânico e uma luta visceral para depreciar e anular a humanidade do homem negro e consequentemente a sua racionalidade, história e cultura. A bem da verdade é importante que se admita sem ressalvas e que se diga que a ocupação, partilha e exploração de África assentou-se nesses pressupostos de superioridade e numa ideia de necessidade tácita de salvação dos negros africanos, índios da América Latina, indígenas das Índias e aborígenes na Austrália.

 

A escravatura é de longe o mais abominável e hediondo acto praticado pelo Ocidente contra os negros. Os seus efeitos se fazem sentir até hoje e mais do que nunca geram cada vez mais repúdio e descontentamento. Ela foi abolida formalmente, mas são visíveis novas e diversas formas de manifestação da escravatura moderna em vários cantos do mundo.

 

Quando as grandes migrações e viagens históricas aconteceram com o móbil dos descobrimentos e evangelização, e enquanto as migrações em massa tinham o sentido “Norte-Sul”, ou Europa – África como queiramos afirmar, o nome atribuído foi salvação, civilização, filantropia e purificação - e pela bondade, pureza e inocência do africano, este processo foi o menos sangrento e violento possível – as armas e os chicotes funcionaram lado-a-lado com a bíblia e com a doutrina de salvação. O continente negro era uma espécie de El Dourado e um poço de riqueza abundante capaz de alimentar o fulgor da indústria europeia. Contemporaneamente as migrações tomaram outro sentido “Sul-Norte”, ou África – Europa - América, e milhares de imigrantes africanos em busca de melhores condições de vida se fazem viajar ao chamado velho continente. O drama da migração de africanos para a Europa (principalmente usando o norte de África como porta de saída) tem merecido todos os adjectivos pejorativos por parte dos países receptores – E estas adjectivações contém sempre uma grande dose de depreciação racial.

 

Com os avanços tecnológicos vividos nos dois últimos séculos, onde a produção e circulação de conteúdos tiveram um alcance maior,  foi muito mais visível a dura e crua luta do negro  e o drama  por ele enfrentado no mundo com a impetuosidade da escravatura. Este drama é um problema universal e que carece de uma reflexão e intervenção global. Os séc. XX e XXI são indubitavelmente os séculos de afirmação do negro em vários âmbitos e áreas mas esta luta é ameaçada pelo “bicho” do racismo que mina a realização plena do homem negro. São dois séculos em que as lutas dos negros de todo mundo se fizeram sentir de forma mais vibrante com recurso a música, a literatura, ao cinema, ao desporto, a arte, a cultura e à várias outras formas de manifestação artística, intelectual e cultural que alavancaram a marcha de reconhecimento da humanidade do negro – uma marcha diga-se em que tudo o que se pede era o reconhecimento do lugar no negro no mundo e o respeito básico dos direitos do homem.

 

Mas importa referir ainda que os avanços registados nesta secular luta de emancipação e reconhecimento, nem sempre foram reconhecidos pelos perpetradores da violência contra este ser chamado de inferior. O espírito de superioridade ainda não permite que se olhe para o negro como um ser que faz parte do enredo civilizacional. Os ideais proclamados na Revolução Francesa - Liberdade, igualdade e fraternidade – tem um conteúdo estético belo mas não passam de mais um slogan que se distancia da realidade social factual.

 

Quando se pensa que o mundo contemporâneo deu passos rumo a uma maior coexistência entre diferentes grupos de pessoas, religiões, cores, eis que regredimos, e tocamos o ponto mais próximo de uma das premissas kantianas que remetem a uma menor idade racional. 

 

Do brutal assassinato de George Floyd à consternação global

 

O mundo parou com a brutal a morte do afro-americano George Floyd por um policial branco norte-americano. Uma acção desproporcional de uso da força e de desprezo pela vida humana; E que só teve a repercussão que teve porque o registo se tornou viral. Na verdade, aquele é o modus operandi da polícia norte-americana, e aquela é a forma impiedosa como os negros e afrodescendentes  são tratados em vários quadrantes do mundo. O que tornou Floyd um mártir não foi apenas a forma como foi morto, mas sim a frieza de quem o matara e o poder da força de mobilização das redes sociais que em pouco tempo tomaram as dores do negro em escala mundial. George Floyd é apenas mais uma vítima daquilo a que anteriormente chamamos de drama do negro no mundo contemporâneo. É mais uma vítima de todo um sistema ideológico assente em pressuposto de supremacia de um grupo, que colapsou e não se consegue disfarçar de tão poluído e desumanizado que se encontra. Drama porque ao negro não é reconhecida a humanidade nem a dignidade; ao negro é imputada uma série de acusações de má conduta e desvio social,  e pesa sobre ele a herança de todo um jogo depreciativo que o associa ao lado obscuro da história.

 

(In) felizmente, esta e outras mortes serão mediatizadas ao extremo e usadas até de forma política com fins diversos, mas se não paramos para estudar a raiz do problema e atacar as suas causas para podermos desenhar estratégias de mitigação, uma vez mais o esforço será indigno e inglório. As manifestações em todo mundo irão durar o tempo que tiverem que durar; a consciência popular irá emitir vozes de revolta, cansaço e repúdio, e a história irá abrir-se para uma nova fase em que tudo pode ser diferente se e somente se reformas institucionais e curriculares tomarem lugar.

 

O slogan black lives matter (vidas negras importam), tornou-se popular e viral e afirmou-se como slogan de guerra entre os manifestantes de dentro e de fora dos EUA. Particularmente olho com desconfiança para este slogan e tenho as minhas reticências sobre o seu enquadramento. Considero uma mensagem poderosa e ao mesmo tempo frágil nesta luta que se pretende travar contra o racismo. Ao afirmar que vidas negras importam, queremos chamar atenção ao grupo que mais sofre com as atrocidades do racismo, mas caímos inconscientemente num polo exclusivista visto que usa-se precisamente a arma de superioridade do branco para enaltecer o valor da vida negra. É um slogan necessário pela gravidade do assunto mas atropela levemente a globalidade da dignidade da pessoa humana onde se considera que a vida humana na sua essência está acima de todo e qualquer diferencial racial, religioso, cultural e ideológico. Nesta perspectiva, as manifestações que assistimos pelo mundo fora pode ser entendida como a síntese da escravatura, da colonização e de uma descolonização que nunca devolveu a dignidade outrora retirada.

 

Por: Hélio Tiago Guiliche (Filósofo, docente universitário)

terça-feira, 16 junho 2020 07:54

O Substituto doméstico

Cofiou copiosamente toda a extensão do seu bigode que nas extremidades seguia em forma de espiral enquanto olhava taciturno para o céu luzidio de quinta-feira.

 

Meditabundo matava o tempo que lhe parecia inanimado principalmente agora longe do azafama do quotidiano de outrora, tudo por conta do inimigo invisível.

 

Sim, tinha saudades do tempo que laborava e no seu emprego dirigia uma turma de colegas que reconheciam a sua competência e autoridade.

 

Agora vivia a reclusão domiciliária por conta das autoridades governativas e carimbada pelo seu superior hierárquico que decidira que ele deveria ficar remetido no seu recanto para não ser atingido pela pandemia.

 

- Januário, Januário!  - chamava-o a mulher a partir da sala contígua.

 

Ele absorto na sua viagem não escutava, procurava se comunicar além galáxia, para não sucumbir ao convívio familiar forçado. Agora estava sob a direcção de sua esposa.

 

Leonor, quando percebeu que o marido não a escutava decidiu incumbir o filho mais novo de o chamar.

 

- Sim, sim! – atendeu Januário ao insistente chamamento do filho.

 

Apresentou-se perante a sua esposa que se deleitava confortavelmente na poltrona segurando o remoto controlo de televisão.

 

- Chamaste? – inquiriu olhando para Leonor que meio distraída trocava de canal optando agora por um de ginástica aeróbica.

 

- Tens que ir deitar o lixo – conferiu com autoridade passiva.

 

A empregada domestica, havia sido dispensada unilateralmente pela patroa pois representada um potencial risco de contrair o vírus por recorrer ao “chapa” nas suas deslocações.

 

Quando o conteúdo televisivo que assistia perdeu o interesse ela percebeu que o seu marido ainda não tinha saído para cumprir com a missão.

 

Voltou a gritar pelo seu nome, mas este continuou silencioso. Depois de uma demora prolongada Januário reapareceu.

 

- Já vou! - disse

 

Ela ainda com fitos no televisor não deu pela presença do marido, mas depois espreitou pelo canto do olho e encontrou-o prestes a partir.

 

- Chii vais aonde assim mesmo! – disse ela estupefacta com o visual do marido.

 

- Deitar lixo como mandaste! – conferiu convicto.

 

Januário trajava um terno azul  devidamente engomado e uma gravata vermelha, era a indumentária que mais confiava e o usava quando tinha as reuniões de alto gabarito.  Recuperou o seu traje favorito depois de mais de quarenta e cinco dias de internamente a propósito da nova ordem social, agora que o usava sentia-se outra vez dono de si.

 

Quando alcançou a principal rua que dava acesso ao destino uma brisa fina sacudiu seu rosto e ele despertou para lembranças de outrora, dos bons tempos. Atirou o saco e toda a sua depressão voou com os resíduos domésticos e aterrou no interior da lixeira.

 

Alisou as lapelas do seu paletó e reiniciou a marcha para parar logo de seguida, recuperou um charuto inacabado, tesourou a parte superior acendeu-o, deu uma longa chupada e quando a outra extremidade atingiu o rubro, largou e expeliu uma pequena fumaça aromática. 

 

Continuou sua caminhada sem muita pressa de voltar para casa, dava um e outro sorvo no seu charuto e a sensação de liberdade trazia-lhe felicidade. Adentrou para uma pastelaria e pediu um café, enquanto aguardava recuperou a sua liberdade de expressão e decidiu ligar.

 

- Querido como é bom ver-te e ouvir a tua voz depois destes dias todos! – gritou Elisa emocionada. – Estás lindo meu bem.

 

Evoluíram num paleio erótico protagonizado por Januário e a medida que a sua eloquência se adensava ela descobria as suas partes intimas seduzindo-o. 

 

Quando a vídeo reunião terminou sentiu-se um homem novo e cogitou:

 

“ A humanidade, com destaque para os cientistas e curandeiros deviam encontrar uma cura a curo prazo para o desconvidado vindo do ano 2019”

segunda-feira, 08 junho 2020 07:04

Os mortos de Muidumbe

Quem de nós não morre quando todos morremos em Muidumbe?

Quem sobrevive incólume diante dos impiedosos algozes

daqueles nossos infaustos concidadãos de Muidumbe?

O sacrifício dos que foram assassinados em Muidumbe

não é bastante para sangrar os jornais além das efémeras notícias

que não abalam a nossa moçambicaníssima complacência?

Quem fica de joelhos pelos mortos de Muidumbe?

A galhardia daqueles que foram metralhados

sem comiseração

em Muidumbe

não sufraga a honra das nossas ruas?

Por que nada exigimos?

Por que razão nenhum clamor fazemos?

Os nossos punhos não se compadecem

por todos os que morreram por nós em Muidumbe?

Os mortos de Muidumbe não concitam a nossa dor?

Os mortos de Muidumbe desmerecem a nossa compaixão?

Os mortos de Muidumbe não tributam o nosso sofrimento?

Somos misericordiosos com os outros mortos

e postergarmos os nossos mortos de Muidumbe.

O sangue vertido em Muidumbe não é nosso sangue?

Onde estão as vigílias

as velas

as praças exaltadas?

As missas

liturgias

eucaristias.

Nenhuma cidade se levanta perante os mortos de Muidumbe.

Porquê?

Os mortos de Muidumbe resistem sem rosto.

Os mortos de Muidumbe são apenas um número

para a estatística

para o cadastro

para o catálogo da nossa humilhação colectiva

para a recensão da desonra

para o arquivo e para o esquecimento.

Os mortos de Muidumbe não cantam.

Os mortos de Muidumbe não falam.

Os mortos de Muidumbe não reclamam.

Os mortos de Muidumbe não sonham.

Os mortos de Muidumbe não gabam a quimera dos seus epitáfios.

Nem esperam o requiem dos outros defuntos.

Os seus gritos não conclamam os deuses

porque os deuses estão ensimesmados com outros mortos.

Os mortos de Muidumbe foram enterrados

mas permanecem insepultos.

Nenhuma necrologia inscreve os seus nomes.

Os jornais não têm letras de sangue

para os que morreram em Muidumbe.

Não há obituários para os mortos de Muidumbe.

Os jornais são omissos quanto ao massacre de Muidumbe

o genocídio de Muidumbe

os fuzilamentos de Muidumbe

o extermínio de Muidumbe

a carnificina de Muidumbe.

Os mortos de Muidumbe perseveram no anonimato

como os decapitados de Mocímboa da Praia

Quissanga 

Mueda

Palma

Metuge

Macomia

a Norte onde se aniquila o futuro do nosso passado.

Os mortos de Muidumbe não desconsolam o mundo

o mundo está assoberbado com outros mortos

o mundo urge para os outros mortos

o mundo não tem empatia com os mortos de Muidumbe.

Há um pérfido alheamento pelos mortos de Muidumbe.

Os mortos de Muidumbe não fazem parangonas

não abrem telejornais.

Quem morremos com os mortos de Muidumbe?

Será que não morremos todos com os mortos de Muidumbe?

Ninguém de nós se condói pelos mortos de Muidumbe?

Que país é este que não se enternece com os mortos de Muidumbe?

Os nossos pêsames

a nossa consternação

a nossa comiseração

a nossa humanidade

não são dignos dos mortos de Muidumbe?

Que luto é este que escolhe não velar os mortos de Muidumbe?

Que mortos sufragamos nós para carpir as nossas lágrimas?

Que angústia é essa tão insolente quanto aos mortos de Muidumbe?

Que silêncio é este perante o silêncio dos que foram silenciados em Muidumbe?

Quem de nós não morre quando todos morremos em Muidumbe?

 

Nelson Saúte

 

Junho de 2020

quarta-feira, 03 junho 2020 05:35

Audiência com o Rei

Quando os tamancos se comunicaram com o chão da terminal rodoviária da “junta” na periferia da cidade de Maputo, produziram um estrépito chamativo. O jovem que os calçava não se importou com os olhares folgazes de que era alvo.

 

Foi um dos últimos a desembarcar do autocarro interprovincial proveniente de Chókwè na província de Gaza.

 

Os seus admiradores miravam-no curiosos e deixavam escapar uma risada, o recém-chegado percebeu que criava impacto no seio das pessoas próximas.

 

- Onde apanho um chapa para a baixa? – questionou para um dos utentes da terminal rodoviária

 

Caminhou sereno segurando uma mala velha e pesada, usava um chapéu de palha com abas pequenas, a jaqueta de couro castanho desgastada e ligeiramente pesada descaía no ombro direito, exactamente do lado da mão que segurava a mala. A camisa de capulana com as cores amarelo e vermelho era suplantado pelo casaco, as calças eram de caqui verde-escuro.

 

Não demorou para embarcar no chapa, os passageiros abriram alas para deixa-lo passar admirando suas vestes, uma moça vagou o lugar e o ofereceu.

 

- Obrigado! - proferiu com um sorriso alegre no rosto.

 

O chapa marchava velozmente ultrapassando os outros carros, este malabarismo perigoso agradava a Carlos Wena que vinha pela primeira vez a cidade de Maputo com a mente repleta de sonhos que pretendia realizar. Vinha animado depois de receber o convite do seu primo que triunfara na grande metrópole.

 

O desembarque na baixa da cidade deixou-o atónito, olhava para cada canto da cidade intimidado pelos monstros de cimento que se erguiam por todo lado, os carros que circulavam velozmente dum lado para outro deixavam-no desorientado. Ficou parado por um tempo, estudando o ambiente que morava ao seu redor, temia dar um passo em falso que podia comprometer a sua chegada a grande cidade.

 

Posicionou a sua mala no chão, sentou sobre ela e procurou organizar as ideias, já passavam das 15h00.

 

Uma turba de petizes em gozo de férias escolares deu com o alegórico personagem de Carlos, pararam e olharam-no maravilhados, riam e trocavam conversa.

 

Já descansado pegou na sua maleta e iniciou a caminhada seguida de perto pelos meninos que multiplicaram as suas risadas agora que o viam em movimento.

 

A sua derradeira jornada seria até a casa do primo no bairro suburbano da polana caniço nos arredores da cidade.

 

Os meninos depois de consumirem momentos de alegria gratuita partiram para outras brincadeiras.

 

A vitrina com letras garrafais do nome do estabelecimento avivaram sua mente e recuperou uma imagem que guardava num canto especial da sua mente.

 

O jovem forasteiro entrou para o estabelecimento comercial, abeirou-se do balcão, descansou a sua mala no chão.

 

- Sim, se faz favor? Investiu o balconista.

 

Ainda distraído, o recém-chegado apreciou o ambiente que por ali morava durante um tempo e cabisbaixo falou para o balconista.

 

- Quero falar com o rei – disse convicto.

 

O balconista vigiou demoradamente o estranho cliente, e ainda perplexo perguntou:

 

- Como disse?

 

- Quero falar com o rei -  repetiu o forasteiro seguro do que buscava.

 

Pela indumentária e o gesto meio aparvalhado, o atendedor ajuizou que o homenzinho devia estar desprovido de sanidade mental. Então decidiu embarcar na brincadeira.

 

- Meu senhor, somos um estado semipresidencialista, isto para dizer que temos um presidente que por coincidência foi reeleito a bem pouco tempo. – gabou-se o balconista dos seus dotes políticos.

 

- Mas eu quero falar com o rei! – insistiu sereno, o estranho cliente.

 

- Meu jovem, nós, a República de Moçambique não é uma monarquia. – frisou o balconista cada vez mais convicto dos seus saberes.

 

- Meu senhor, saiu na televisão a dizer que o rei chegou, até falam em inglês “the king is here” – assegurou Carlos sereno de que a sua explicação poderia elucidar o balconista.

 

Já meio irritado com a insistência parva do cliente, o atendedor procurou ignorar a investida do recém-chegado e deu atenção a um outro cliente.

 

Um curioso que destrinçava o diálogo entre o balconista e o pomposo cliente, processou a pretensão de Carlos, levantou-se e o abordou.

 

Depois de uma breve intersecção verbal, o curioso pousou teatralmente uma garrafa no balcão, Carlos abriu os olhos e largou um sorriso rasgado, segurou a garrafa que o ofereciam e agradeceu imensamente aquele anjo que soubera interpretar as suas aspirações.

 

- Eu sabia que o rei estava aqui! Afirmou felicíssimo – Muito obrigado mano.

 

E então bebeu, bebeu prazerosamente a cerveja.

África, a história consagrou-te como sendo o “Berço da Humanidade” e, paradoxalmente hoje te consideram “o novo continente”. Mas não é sobre este paradoxo que aqui pretendo dissertar. É a história que testemunhou desde muito cedo a apetência das potências imperialistas ávidas em explorar os seus recursos, o seu povo e toda uma riqueza que humana, cultural e intelectual.

 

É sem sombra de dúvidas um continente bafejado pela existência de enormes quantidades de recursos naturais que foram inicialmente vistos como uma bênção mas que muito cedo se tornaram numa maldição que adia o desenvolvimento pleno do continente. Esta maldição traduzida em guerras, genocídios, corrupção, má governação que perpetua a fome, a miséria, as desigualdades entre o povo e adia o grito de liberdade total e completa que tanto almejamos.

 

Foram mais de 500 anos de uma colonização que quase tudo tirou do chamado “novo continente”. 500 anos de uma epopeia imperialista desenhada e implementada pelo Ocidente e que iniciou com a procura de matéria prima para a incipiente indústria europeia e procura de novos mercados. Com a narrativa das supostas viagens dos descobrimentos a geografia mundial ganhou outra dimensão económica, religiosa, cultural e humana – a hegemonia do norte para o sul foi cimentada e o mundo passou a ser dominado pela palavra civilização que era apanágio do Ocidente imperialista. Seguiu-se ocupação efectiva e partilha de África decidida na célebre Conferência de Berlin onde o continente negro foi dividido em fatias e suas fronteiras redesenhadas ao sabor das potências capitalistas.

 

A ocupação e exploração de África não respeitou a dignidade da pessoa humana – na verdade ela violou os direitos fundamentais do homem e mostrou uma face arrogante e prepotente do homem branco que escravizou e desumanizou o homem negro; Não se preocupou com a cultura, com a religião nem com a ontologia do africano. Diga-se em viva voz que a escravatura foi um dos actos mais vis, desumanos e vergonhosos que o Ocidente carrega consigo até os dias de hoje. Milhões de homens foram levados em navios cargueiros, do seu habitat original e retirados das suas terras com destino incerto dentro do próprio continente negro, para América do Norte, do Sul (concretamente no Brasil), e espalhados pelas Antilhas Francesas e protectorados Ingleses para os campos de cultivo de cacau, cana-de-açucar, borracha, e outras matérias primas para alimentar a indústria e a economia ocidental. 

 

Em nome da civilização, povos foram separados e culturas foram destruídas; novos hábitos, costumes e maneiras foram instituídas – desafiando o africano a negar sua origem, a envergonhar-se da sua cultura e a declinar seus traços identitários; O novo africano deveria ser instruído para poder fazer parte do mundo dito civilizado.

 

A civilização permitiu a instrução, a escolaridade e o acesso a um pensar mais elaborado, mais crítico e reflexivo. Um pensar interventivo, mais comprometido com a causa africana e com o direito a autodeterminação. Surge a primeira nata intelectual de afrodescendentes e africanos da diáspora com ideias claras sobre a libertação e independências de África.

 

Eis que na década 50 dos anos 1900, como corolário da segunda Grande Guerra, assistimos ao retorno dos filhos da terra que ensaiaram os primeiros modelos de independências do continente africano. Ainda que de forma incipiente e tímida, a pesada herança da negritude e do pan-africanismo de primeira geração empurrava a nata pensante à tão sonhada e desejada acção outrora sugerida no célebre Congresso Pan Africano realizado em Manchester em que George Padmore com a famosa afirmação – “É altura de passarmos da teoria à prática”. A partir de 1960 assistimos a uma saga independentista que culminou com a libertação de vários países africanos no jugo colonial, incluindo Moçambique e Angola (duas ex colónias Portuguesas alvo de cobiça durante a Conferência de Berlin e resultado do audacioso Mapa cor rosa).

 

Uma intelectualidade genuinamente africana e altamente comprometida com os ideais do pan-africanismo, da negritude, do renascimento negro e do empoderamento negro, representada por Kwame Nkrummah, Leopold Senghor, Jomo Kenyata, Ahmed Sekou Touré  e mais tarde por Julius Nyerere, Agostinho Neto, Amilcar Cabral, Samora Machel e outros proeminentes lideres,  fez eco ao sonho de Marcus Garvey, Malcom X, Luther King, William Du Bois, Aimé Cesaire e outros notáveis teóricos, e fez-nos acreditar que o sonho da autodeterminação podia ser real. A conquista das independências significou muito para os africanos, e gerou uma euforia e expectativa enorme em torno presente e do futuro.

 

Severino Ngoenha (in Das Independências às Liberdades), num rasgo filosófico-político em que se discorre o processo de legitimação e apropriação da Filosofia pelos africanos tendo como base a racionalidade do africano, passando pelo processo de conquista das independências em África e culminando com uma crítica mais elaborada pela corrente hermenêutica, analisa os ganhos, as perdas e os desafios destas independências. As independências africanas, a meu ver criaram menos liberdade e mais asfixia aos povos. Mudaram-se os actores coloniais e passaram a ser perpetradas atrocidades entre africanos. Vivemos um pouco de tudo, mas não conhecemos o sabor da liberdade.

 

É de todo inegável a dimensão psicológica que a saga independentista da década 60 causou no povo africano; Houve uma exacerbada expectativa em torno dos países recém independentes e ensaios embrionários de autogoverno, autodeterminação e muitas dúvidas sobre a real capacidade dos estados africanos vingarem na ausência do colono. Os perigos do neocolonialismo muito cedo se fizeram visíveis e em poucos anos muitos países africanos estavam sob graves conflitos internos e guerras civis que devastaram sobremaneira a ainda débil estrutura estatal. Os anos que se seguiram as tão almejadas independências, foram anos de solidificação das ideias nacionalistas, mas também foram anos em que assistiram-se a de conflitos internos nos estados, guerras devastadoras, genocídios e destruição sem precedentes.

 

Conquistamos as independências mas não conseguimos construir estados capazes de se auto-governarem. E quando conseguimos ensaiar a ideia de um estado fomos muito cedo abafados e aniquilados.

 

A velha fórmula romana – divide et impera – (dividir para reinar) foi usada para fragmentar ainda mais os estados e abrir as portas ao neocolonialismo na sua versão de ajuda externa e construção da democracia em África. Uma democracia diga-se desajustada ao modelo africano e de certa forma forçada e imposta pelos senhores de Bretton Woods para estados em claras dificuldades económicas. A pressão externa, a situação económica frágil e algumas sanções e interferências externas, abriram uma nova página na relação África e o mundo.

 

Entre o servilismo a Bretton Wood e a nova Rota da Seda

 

Gorada a tentativa de ter independências totais e completas, onde nem politica nem economicamente conseguimos ter uma solidez e robustez que permitisse o crescimento e desenvolvimento alicerçados no sonho integrado do pan-africanismo, pouco ou nada restava a África a não ser aderir às Instituições de Bretton Woods e beneficiar-se de empréstimos financeiros, políticas de restruturação económica, e toda gama de ajuda externa provida pelo Ocidente.

 

Volvido mais de meio século após a conquista das independências, a nova relação entre África e o mundo é basicamente assente na concessão de recursos abundantes em África à multinacionais do ramo extractivo – e África voltara a ser pilhada novamente, mas de forma mais assaz e agora com consentimento dos seus líderes que a pela sua ambição individual e a troco de muito pouco, perpetuam os corredores da corrupção, do nepotismo e da má governação que por cadeia estão atrelados a pobreza extrema, fome generalizada, doenças, péssima qualidade de educação e saúde.

 

África continua a despertar a apetência das multinacionais ocidentais que lucram com a exploração do recursos, fragilizam a nossa economia com falsos incentivos e adiam o “take off” do nosso continente.

 

Com a emergência e afirmação no panorama mundial do gigante asiático – a China – com o seu ambicioso projecto denominado “A Nova Rota da Seda”, África entra uma vez mais na equação. A China está presente nos cinco continentes e investiu cerca de US$ 1,9 trilhão. Isso equivale, por exemplo, a 13 vezes o valor do Plano Marshall, utilizado pelos Estados Unidos na reconstrução da Europa durante a guerra fria.

 

Governos altamente endividados, economias super dependentes da ajuda externa, e estados quase capturados tanto pelo FMI e Banco Mundial, ponderam piscar os olhos a China e entrar na chamada rota, hipotecando uma vez mais os sonhos de milhões de africanos.  O capitalismo selvagem ocidental e o comunismo mascarado de Pequim fazem a partilha dos recursos de África e nós africanos uma vez mais apenas lamentaremos e nos socorreremos na famosa teoria da maldição de recursos.

 

Os recursos em si não são uma maldição mas também não são uma bênção quando mal explorados; Quando explorados de forma não integrada e não planificada eles podem ser a causa de guerras e instabilidade de vária ordem.
No geral os modelos de governação que adoptamos, as políticas económicas e sociais que desenhamos tem se mostrado pouco ajustadas às realidades dos nossos países. 

 

Celebramos mais um aniversário de um continente africano. Mais um aniversário debaixo de lamentações. Mais um aniversário em que os traumas do ontem geraram o medo do hoje se sobrepõem a esperança do amanhã. Em África o amanhã mete medo porque nunca sabemos se ele chegará, e se chegar não sabemos como encará-lo porque não o planificamos. E os anos vão passar, as gerações vão se renovar, mas se a nossa mentalidade continuar a mesma, o nosso continente continuará a ser o que sempre foi – um palco onde todos dançam menos os donos da casa.

 

E chega de procurar culpados lá fora para a nossa fraca prestação. Os culpados somos nós e nós sabemos o que deve ser feito para que África seja aquele lugar em que reine a paz, a prosperidade, a harmonia, onde a autodeterminação é respeitada, onde os valores, as línguas, as tradições, as religiões e todo mosaico étnico e cultural façam parte do rendez-vous das nações.

 

Por Hélio Guiliche (Filósofo _ Docente Universitário)

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