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Actualizado de Segunda a Sexta

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Carta do Fim do Mundo

O título não é originalmente meu. É do economista e psicólogo americano, Herbert A. Simon, um dos primeiros académicos a descrever com precisão a relação entre informação e atenção.

Todos os dias – e já não é novidade dizer isso, somos inundados com informações. Do controle remoto à pesquisa do Google; do Twitter ao Facebook; dos jornais eletrónicos ao aplicativos variados; do WhatsApp ao Instagram, é tudo uma miríade de informação que circula à velocidade estonteante, potenciadas pela internet.

 

Na economia de informação em que nos encontramos, somos ou compradores ou vendedores de informação, ou mesmo as duas coisas, ou, na pior das hipóteses, recetores ou difusores da mesma. Fazemos isso de graça, à custo próprio.

 

Num artigo publicado em 1997, Simon já notava naquela altura de que “... a informação consome a atenção dos seus destinatários. Assim, quanto maior for a informação recebida, menor é a atenção prestada”. O que o autor queria dizer era que para que a informação fosse decifrável e compreensível, é preciso que os indivíduos dediquem tempo e atenção para decifrá-la e compreendê-la.

 

Simon, prossegue, “atenção é a ferramenta psicológica que usamos para descartar informações irrelevantes, de modo a que possamos nos concentrar no que é importante para nós. À medida que os nossos recetores não param de receber informação diversa e de forma intrusiva, a nossa atenção se torna cada vez mais tensa e desafiada” [cf: Simon, H. A. (1971) "Designing Organizations for an Information-Rich World" in: Martin Greenberger, Computers, Communication, and the Public Interest, Baltimore. MD: The Johns Hopkins Press. pp. 40–41].

 

A atenção é um poderoso ativo em todos os relacionamentos que deve ser gerida com atenção acrescida.  Devemos aplicar alguma disciplina a forma como gerimos a informação ou enfrentar o risco de ter nossa atenção e nossos relacionamentos, sequestrados pela força de maus hábitos.

Li no jornal a Carta um longo texto da autoria de um tal Edgar Barroso, tentando desmontar um texto meu intitulado Reflexão em torno do atual Pânico moral no qual, a partir do conceito cunhado pelo sociólogo sul-africano Stanley Cohen, tento transpor à situação e ao atual humor social. Não irei repetir a descrição, dado pode ser acedido a partir do seguinte endereço: http://bit.ly/2Xi3fVB

sexta-feira, 12 abril 2019 09:00

Reflexão em torno do atual PÂNICO MORAL

"Pânico moral" é um conceito de sociologia cunhado por Stanley Cohen, em 1972 – [cf: Cohen, S. (2011). Folk devils and moral panics. Routledge.], para definir a reação de um grupo de pessoas baseada na falsa ou empolada perceção de que o comportamento de um determinado grupo, normalmente uma minoria ou uma subcultura, é perigoso e representa uma ameaça para a sociedade no seu todo. O termo tem sido amplamente adotado tanto pelos meios de comunicação de massa quanto no uso cotidiano para se referir à reação social exagerada causada pelas atividades destes determinados grupos e/ou indivíduos, invariavelmente vistos como grandes preocupações sociais e a reação da mídia amplia esse "pânico" que os cerca.

 

Existem, de acordo com o Cohen, quatro fases para a construção do pânico moral, nomeadamente:

 

  1. Alguém, alguma coisa ou um grupo são definidos como uma ameaça às normas sociais ou interesses da comunidade;
  2. A ameaça é então representada de forma simples e reconhecível pela mídia;
  3. O retrato deste símbolo desperta preocupação pública;
  4. Há uma resposta das autoridades e formuladores de políticas;
  5. O pânico moral sobre a questão resulta em mudanças sociais dentro da comunidade.

Mais ainda, Stanley Cohen mostrou que os órgãos de comunicação de massa eram a principal fonte de conhecimento do público sobre comportamentos desviantes e problemas sociais. Ele argumentou ainda que o pânico moral dá origem ao diabo público, através da etiquetagem das ações e dos indivíduos.

 

De acordo com Cohen, a comunicação social (e agora as redes socais também) desempenham uma ou todas três principais funções para a consolidação do pânico moral.

 

  1. Definição da agenda - selecionando eventos desviantes ou socialmente problemáticos considerados dignos de notícia, e depois, usando filtros mais refinados para selecionar quais eventos dignos de serem considerados como “pânico moral”.
  2. Transmissão das imagens – construindo o argumento, com recurso a retórica dos pânicos morais.
  3. Quebrar o silêncio e liderando a “indignação coletiva”, digo, seletiva.

Para terminar, importa falar das características do pânico moral. São cinco, nomeadamente:

 

  1. Preocupação - Deve haver a crença de que o comportamento do grupo ou atividade considerada desviante é suscetível de ter um efeito negativo sobre a sociedade.
  2. Hostilidade - A hostilidade em relação ao grupo em questão aumenta e eles se tornam "diabos públicos". E forma-se uma clara divisão entre “nós” e “eles”.
  3. Consenso – Independentemente de ser nacional ou não, deve haver o consenso de que o grupo em questão representa uma ameaça real à sociedade. É importante nesta fase que os "empreendedores morais" sejam vocais e os "diabos públicos" pareçam fracos e desorganizados.
  4. Desproporcionalidade - a ação tomada é desproporcional à ameaça real representada pelo grupo acusado.
  5. Volatilidade - Os pânicos morais são altamente voláteis e tendem a desaparecer tão rapidamente quanto aparecem porque o interesse público diminui ou as notícias mudam para outra narrativa. E é neste ponto que nos leva ao segundo conceito: EPIFENÓMENO.

EPIFENÓMENO: fenômeno secundário que ocorre ao lado ou paralelamente a um fenômeno primário, ou simplesmente, subproduto de um fenómeno.

 

Às vezes, e para o nosso caso (moçambicano), os pânicos morais manifestam-se em forma de epifenómenos, caracterizados por “ondas de indignação” coletiva ou mesmo seletiva, que de forma sucessiva se substituem, à medida que elas vão caindo no esquecimento.

 

Enquanto grande parte do debate público e de movimentos de advocacia ancorar-se à volta de “pânicos morais” e epifenómenos, dificilmente estes chegarão a lado algum, senão a letargia e resignação. O pânico moral anda de mãos dadas com a etiquetagem e o medo.

 

O advento das redes sociais propicia a difusão do pânico, do medo, de rumores e de notícias falsas, levando a que as pessoas tomem atitudes congruentes a essas mesmas notícias em tempo real, mesmo que posteriormente tais notícias ou pânicos se revelem falsas.

 

A característica mais perigosa com a qual o mundo cibernético deve agora lidar chama-se decadência da verdade, caracterizada pela supremacia da opinião sobre os factos: o cinismo, o anti-intelectualismo bem como a emergência de subculturas e contraculturas; crescente divergência sobre factos e interpretações analíticas sobre os mesmos, indefinição da linha entre opinião e facto, abundância em termos de quantidade e disponibilidade e consequente maior influência da opinião e experiência pessoal sobre facto e o declínio da confiança em fontes e factos anteriormente respeitados.

 

Isto tudo contribui para que os cidadãos não sejam capazes de pensar fora do âmbito de emergência em que se encontram, contribuindo para uma esfera pública em permanente ebulição.

 

Referências

Arbesman, S. (2012). Truth decay: the half-life of facts. New Scientist215(2883), 36-39.

Cohen, S. (2011). Folk devils and moral panics. Routledge

Rich, M. D. (2018). Truth decay: An initial exploration of the diminishing role of facts and analysis in American public life. Rand Corporation.

sexta-feira, 05 abril 2019 06:03

Das teorias de conspiração

Compreender os moçambicanos é uma tarefa que ainda não iniciou

 

É minha forte intuição que a academia moçambicana, principalmente dos ramos da psicologia, comunicação e ciência política ainda não dedicaram a necessária atenção para compreender a cosmovisão dos moçambicanos. Este pode, provavelmente, ser a causa que justifique o desencontro entre a academia e sua produção com a política e suas respostas.

quinta-feira, 21 março 2019 14:44

Carta ao Presidente da República

Ericino de Salema

- A propósito do drama humano causado pela infeliz combinação do ciclone IDAI e cheias

 

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

 

Em primeiro lugar, felicito-o por ter chegado, em tempo oportuno, à conclusão de que o não cancelamento da Visita de Estado ao Reino de Eswatini, e que iniciou poucas horas depois de o ciclone IDAI fazer estragos na cidade da Beira e noutros pontos do centro do país e do extremo norte da província de Inhambane, não fora uma decisão feliz. É próprio de pessoas responsáveis se reconciliarem consigo mesmas quando se apercebem de que “meteram água”.

 

O facto de ter saído do Eswatini directamente para o sobrevoo das regiões afectadas sugere, por um lado, que se o Senhor Presidente da República tivesse tido noção, em tempo oportuno, da real dimensão da tragédia que estava iminente, muito provavelmente não teria abandonado o país e, por outro lado, que se não coibiu de agir como Chefe do Estado e, por essa via, cuidar da superintendência das operações.

 

A realização da última sessão do Conselho de Ministros na cidade da Beira foi, quanto a mim, uma decisão feliz do Senhor Presidente da República. Sobre a não participação do representante eleito dos beirenses nesse encontro, Daviz Simango, naturalmente como convidado, ainda não tenho opinião formada, havendo “informações contraditórias” quanto ao que terá concorrido para isso. Mas se o Senhor Presidente tiver tomado a decisão de o marginalizar, não o convidando, saiba que terá perdido uma extraordinária oportunidade de se posicionar como Presidente da República de todos, sem “cor partidária” no que aos assuntos de Estado diz respeito.

 

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

 

Como bem sabe, a gestão de eventos extremos no país tem sido plataforma para os malandros colocarem em prática os seus apetites criminais e animalescos. E esses malandros acham-se presentes em várias esferas, desde a esfera pública à privada, passando pelas igrejas e associações de vária índole, sem pôr de lado as acções desenvolvidas por grupos informais de titulares de direitos (cidadãos aqui inclusos!), sejam eles moçambicanos ou não.

 

Quando foi das cheias de 2000, por exemplo, uma avaliação especializada à resposta dada às mesmas, como o Senhor Presidente há-de estar recordado, chegou à conclusão de que houvera muitos malabarismos, incluindo o “misterioso desaparecimento”, do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC), de pouco mais de 100 barcos que tinham sido doados ao país. No mesmo contexto, negligência ou imperícia gerencial ou outra coisa fizera com que toneladas de mantimentos apodrecessem nos armazéns sob a égide do INGC, havendo gente extremamente necessitada. Alguns gestores de topo do INGC foram até julgados por um tribunal de Maputo.

 

Sobre o INGC, não será exagerado recordar as palavras de Leonardo Simão, na altura ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação (que tutelava na altura o INGC), sobre a mudança de nome de DPCCN (Departamento de Prevenção e Combate às Calamidades Naturais) para INGC, proferidas numa conferência no Hotel Rovuma, em Maputo: “Concluímos que a imagem do DPCCN estava muito gasta, devido a problemas de gestão e até fraudes, daí a mudança de nome”. Entretanto, o chefe máximo foi mantido, não tendo havido evidências de mudanças substanciais nos sistemas de gestão.

 

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

 

A observância de uma gestão transparente, inclusiva e profissional da resposta ao desastre humanitário, que constitui o leit motiv desta missiva, pode nos ajudar, como país, a maximizar os esforços tendentes à mitigação dos impactos negativos do mesmo (desastre humanitário). Nisso, a centralidade do Governo de que o Senhor Presidente da República é chefe constitucional é mais do que óbvia.

 

Como bem sabe, o Senhor Presidente da República disse, quando proferia o seu ´Discurso Oficial de Investidura´, ali na Praça da Independência, em Maputo, a 15 de Janeiro de 2015, a dado passo do mesmo, que “...promoverei uma governação participativa fundada numa cada vez mais confiança e num efectivo espírito de inclusão”, pouco depois de ter referido, na mesma ocasião, que “O meu compromisso é o de respeitar e fazer respeitar a Constituição e as leis de Moçambique”.

 

Por falar em leis, no quadro da promoção de uma gestão transparente, inclusiva e profissional da resposta ao desastre humanitário essencialmente pelo centro do país, temos, há já sete anos, um diploma legal que nos ajudaria a promover uma situação tal, nomeadamente a Lei número 7/2012, de 8 de Fevereiro, que estabelece as bases gerais da Organização e Funcionamento da Administração Pública, também conhecida por LEBOFA.

 

A referida lei, que se aplica aos órgãos e instituições da Administração Pública, bem assim às autarquias locais e demais pessoas colectivas públicas, como o INGC, possui um artigo interessante sobre a participação do cidadão na gestão da coisa pública (artigo 14), que a seguir o transcrevemos na íntegra:

 

“Artigo 14

 

(Participação do cidadão na gestão da Administração Pública)

 

1.            Os órgãos colegiais da Administração Pública promovem a integração da sociedade civil interessada na sua composição.

2.            Para os efeitos do disposto no número anterior, são considerados membros da sociedade civil os representantes de associações, sindicatos, organizações não-governamentais ou quaisquer outras formas de organização colectiva legítima, cujo objecto esteja relacionado com as atribuições de determinado órgão ou instituição da Administração Pública.

3.            O disposto nos números anteriores não é extensivo aos partidos políticos.”

 

A democratização de órgãos colectivos da Administração Pública e de outras pessoas colectivas públicas, a partir dos seus órgãos colegiais, seria, Senhor Presidente, uma boa notícia para a nossa jovem democracia. E, atentos ao causado pelo ciclone IDAI e cheias, bem assim às lições de um passado (relativamente) recente, aplicar a fórmula de inclusão sugerida pela LEBOFA ao INGC afigura-se mais do que urgente. E, a partir dali, expandir a outras entidades públicas, como os Conselhos de Administração da Rádio Moçambique (RM) e da Televisão de Moçambique (TVM), que, em mais um ano eleitoral, precisam de ser factor de estabilidade e não o contrário.

 

Obrigado por qualquer atenção dispensada, Senhor Presidente da República.

Ericino de Salema, aos 21 de Março de 2019

segunda-feira, 11 março 2019 06:14

Teatro de operações

Os preconceitos de extremos assentam como luva costurada e curtida pela distância entre Cabo Delgado e Maputo, ainda que separados por míseros 2400 km. "Lá onde Judas perdeu as botas" é também lá onde foram inscritas as primeiras pegadas das botas, chinelos e pés descalços que desbravaram o caminho da independência.  

 

Na história política de Moçambique, Cabo Delgado é mui sui generis e ocupa lugar privilegiado em quase todas as páginas, por razões diversas.  Ao mesmo tempo em que estamos ligados à Cabo Delgado por inúmeros e viscerais vínculos de história comum, repleta de glórias e vergonhas, desterros e regressos, partilhas e negações, alianças e traições, por vezes, parecemos esquecer que Cabo Delgado somos nós!  Mais do que assumir que "Cabo Delgado é Moçambique", como bem dizem os que publicamente expressam suas angústias e solidariedade,  importa frisar que este Moçambique de hoje foi possível também por via de Cabo Delgado.

 

A epopeia de libertação dificilmente  se pode narrar sem os marcos e destaques que Cabo Delgado empresta. Se não quisermos recuar demais no tempo e falar dos (in)memoráveis períodos pré-colonial e colonial, podemos ater-nos a alguns eventos que assumiram caracter de marcos da história contemporânea de Moçambique, como o  "Massacre de Mueda" (1960) também retratado como último rasgo de resistência pacífica ao colonialismo português. Na sequência,  o ataque ao Posto Administrativo de Chai, em Macomia (1964), celebrado pela reputação  de ter sido o local onde foi disparado o tiro que teria, oficialmente, aberto o caminho da contestação violenta ao colonialismo que culmina com a independência (1975). Por hora, não importa polemizar e nem disputar a coexistência de versões e representações discursivas sobre estes marcos da "historia heroica'' de Moçambique. Mais ou menos detalhes não tiram a centralidade de Cabo Delgado como um dos principais palcos de actuação e progressão dos guerrilheiros da Frente de Libertação de Moçambique,  que ousaram abraçar a onda libertária dos anos 60 e embarcar na "Luta por Moçambique", independentemente das visões e lugares de enunciação da "razão da luta". Cabo Delgado esteve no olho do furacão da "revolução moçambicana" e destacou pela legião de valentes (e nem tanto) jovens que integraram o movimento de libertação de Moçambique (incluindo os que foram expulsos e os que tombaram na jornada).

 

Apesar de "Teatro de operações" ser parte do jargão corrente na linguagem de corporações militares, cada vez que os porta-vozes da PRM ou FDS  ocupam espaços de antena para falarem das ocorrências no "teatro de operações" que Cabo Delgado representa, o mais angustiante é a desinformação sobre os eventos que, novamente, tornam Cabo Delgado, num espaço de violência e simbolismo que, desta vez,  rema em direção oposta à nova onda de pacificação e tripudia as promessas de redenção económica do país, pela via dos recursos naturais. Nestas circunstâncias,  pela janela que Cabo Delgado representa, Moçambique rende-se ao fatalismo discursivo em que se vaticina a "maldição dos recursos" onde, em tese, se preconiza que a ocorrência de recursos naturais em qualidades e quantidades abundantes e comercializáveis a escala global, e com estruturas políticas relativamente frágeis,  é potencial motivo para atrair toda a sorte de abutres, ávidos por injetar o germe da discórdia, semear o caos e tirar máximo proveito, além de despertar o insaciável apetite de cobras e lagartos que habitam em nós e entre nós mesmos!

 

Após longas batalhas e perfilar de  décadas de "vitórias contra o subdesenvolvimento", que não se materializaram; inúmeros planos de conversão da agricultura em "base do desenvolvimento", sem grandes êxitos; décadas de "reestruturação económica", repletas de fórmulas de sucateamento; década de "exaltação do empreendedorismo", com resultados pouco abonatórios; todas elas permeadas por guerras, tensões militares ou seja lá o que quisermos chamar,  quando Cabo Delgado redefine-se como polo de exploração de recursos naturais, com potencial de impulsionar o errático projecto de industrialização e desenvolvimento económico de Moçambique - que nunca se recuperou dos excessos e euforias da êxtase da "liberdade", celebrada com gozo no "escangalhamento do aparelho colonial" e promoção do centralismo económico de Estado, através do "socialismo científico" e, mais tarde, quase que abruptamente, abocanhado pelos impiedosos tentáculos da economia de mercado neoliberal - parece que a "sina" de desperdício de oportunidades ataca de novo.

 

A aceleração do processo de (de)lapidação dos recursos naturais abundantes em Cabo Delgado,  menos do que reger-se pela frágil estratégia nacional gás natural liquefeito ou qualquer outro plano de exploração de recursos naturais, desnudou um teatro de disputas entre gigantes e anões de quase todas as tribos económicas globais e locais que jogam as suas cartas, de forma limpa e suja, reacendendo rastos de destruição de que o país precisa desenvencilhar-se.

 

No arrefecer de Santunjira e na prossecução dos ensaios de reconciliação pós Dhlakama, o escandaloso reavivar de armas, tendo Cabo Delgado como epicentro de inomináveis atrocidades, obscuras nas ideais e ideais que eventualmente pretendem apregoar e, totalmente prenhes das mais vis manifestações do egoísmo humano e do descaso pela vida.

 

A densa cortina de fumo envolta e atiçada em torno dos acontecimentos de Cabo Delegado, dificultam o descortinar das eventuais razões do terrorismo e do ciclo de extermínio e banimento de comunidades no cinturão dos recursos naturais. O encarceramento e silenciamento de jornalistas, o desestimulo e descrédito à iniciativas de investigação que visam compreender os múltiplos ângulos da quizila, a restrição de acesso e o cancelamento do trabalho de organizações activas no terreno, além de medidas cautelares que incluem a restrição de movimentos, expressam o investimento na supressão de conhecimento das circunstâncias de ocorrência de tão trágicos eventos que só contribuem para a redução da nossa dignidade colectiva como sociedade.  

 

A desinformação oficial (intencional ou não) desde a ocorrência dos episódios que selaram a progressão da saga de destruição, onde as autoridades de tutela se revezam na reprodução de "discos riscados", "está tudo controlado"; "são grupelhos enfraquecidos e quase extintos";  imediatamente seguidos pela multiplicação de ocorrência de relatos de ataques e destruição anarquicamente dispersos por diferentes pontos da província de Cabo Delgado,  reforçam a ideia de intencionalidade manipulativa de sonegação de informação, ampliação da cegueira e desligamento da opinião pública sobre a progressão  da tragédia.  A ignorância que se vende  sobre o perfil e eventuais motivos dos insurgentes, instigam-nos a repensar sobre as capacidades instaladas de gerar inteligência de Estado, os métodos e opções de articulação da comunicação Estado sobre problemas e ameaças com potencial de alterar a ordem e segurança pública. 

 

Assim como dificilmente se retém água nas mãos, porosamente, o sangue de mais de duas centenas de cidadãos mortos, entre decapitados, calcinados e esquartejados, escorre dentre o véu da minimização, sulcando novos roteiros, novos distritos, novas localidades e aldeias, feitas presas fáceis que vão alimentado e encorpando o tamanho desse instrumento de destruição  que nos faz observar, como quem contempla, impotentemente,  num gigante placar eletrónico a progressão do número de vítimas sem que esteja claro um posicionamento de Estado, senão por vagas indicações de que já foram despachados para o "Teatro de Operações" novos contingentes de militares, mais ou menos especializados para conter a progressão do que, por enquanto chamamos "insurgência". Não se demanda que o Estado seja omnisciente, mas que seja capaz de, com alguma celeridade, demostrar capacidade de recompor-se de eventuais surpresas e articular estratégias de entendimento, explicação, actuação e comunicação relativamente consistente e sustentável e não apenas exibir bravatas que se desfazem em menos de uma semana.   

 

Desde Outubro de 2017, mais de duzentas pessoas foram mortas com a mesma crueldade e consistência no modus operandi.   Às dezenas, por semanas, atingiu-se a escandalosa cifra de mais de 200 mortos contabilizados, se não forem muitos mais, especialmente se tomarmos em consideração que a subnotificação do número de mortos, independentemente das razões, não é rara em cenários como estes. A Comissão Nacional de Direitos Humanos guarda relatos das atrocidades e registos de violações de códigos de conduta na forma de actuação das Forças de Defesa e Segurança.  A Human Rigths Watch regista actos de intimidação de jornalistas pelas FDS. A detenção dos jornalistas  Amade Abubacar e Germano Adriano, por alegada "violação de segredo de Estado", evidencia o clima de deterioração dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

 

Inequidades sociais e históricas, exclusão económica estrutural,  extremismo religioso, expansionismo do terrorismo regional e global, brigas e ressentimentos "interétnicos", atavismos inter-tribais, disputas entre grandes interesses económicos e de controle territorial,   sublevações camponesas espontâneas, migrações económicas desusadas,   rebelião da juventude frustrada, conspirações dos senhores da guerra, armadilha lançadas por mercenários, prolongamento de disputas de interesses intrapartidário e muito mais, fazem parte do arcabouço de caracterização estereotipada não conclusiva do que se passa no "Teatro de Operações" em que Cado Delgado se tornou.   As ofertas e predisposições de "príncipes" para exterminar os insurgentes em três meses,  soam a achas à fogueira e pedidos de credenciais para a legitimação da actuação de grupelhos económicos e militares em cenários fartos, quais abutres circundando agonizantes presas.

 

O obscurantismo que cerca o entendimento da tragédia que se desenrola em Cabo Delgado, na era da informação, é tão despropositado que sequer se presta a função de abrir mentes e "ganhar corações".   Quando o PR diz que é tempo de os nossos serviços de inteligência virem dizer-nos o que se passa e, ainda assim, não ter reposta plausível (pelo menos publicamente) talvez seja tempo de rearticular os esforços, ampliar as plataformas de visibilização do tamanho da tragédia, abrir corredores de protecção e assistência às populações deslocadas, potenciar o aproveitamento dos trabalhos das pessoas que vem produzindo reflexões sobre Cabo Delgado e assuntos afins, e reiterar que CD não é terra de ninguém, propriedade privada, cujos dramas e dilemas possam ser tratados somente por debaixo de tapes.  

 

O cerceamento de liberdades de profissionais de comunicação, na era de abertura tecnológica, dificilmente vai prestar-se aos objectivos das táticas adoptadas no passado recente, quando a estratégia de descaracterização dos rebeldes resumia-se em tratá-los como simples "bandidos armados", sem bases sociais e até materiais de apoio e que poderiam ser desmantelados num abrir e fechar de olhos. Não preconizo nenhum repetir-se da história, mas a necessidade de capitalizar do conhecimento histórico sobre as nossas guerras e guerrinhas, ampliar o espectro para novos aprendizados, desviar-nos de chavões ufanistas e triunfalistas do tipo grupelhos já fragilizados e quase acabados e investir na busca e partilha de inteligência para assegurar maior efectividade das escolhas do Estado nas suas formas de actuação nesse trágico "teatro de operações" que se faz de Cabo Delgado. Em tal “teatro de operações”, salvo por melhor elucidação, a única coisa claramente não teatral é o rasto de destruição, de vidas ceifadas, famílias e comunidades destituídas. O resto, urge interrogar, compreender e engajar-nos como sociedade coesa e solidária na preservação da vida, nos esforços de normalização das rotinas das pessoas mais sacrificadas, qual capim em brigas de elefantes.

 

É tempo de inventarmos qualquer coisa como "década da vitória contra a barbárie"  que, a ser bem sucedida, possa abrir espaço para décadas de vitórias pelo que de melhor alguma vez, como país, aspiramos.

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