Antes de eu partir, no dia anterior, vasculhei a minha caixa de livros à procura de Ualalapi. Antes porém de localizar essa obra borbulhante de Ungulani Ba Ka Khosa, deparei-me com “A mãe”, de Máximo Gorki. Queria mais um ou dois, dos poucos que tenho e que já os li, para que me sentisse aviado. Sou leitor de baixa intensidade e viajo pouco pela música, mas escuto boa música, independentemente do género. Sobre os filmes, idem. Os que vi ficaram na memória de tal forma que ainda hoje os sinto. E os absorvo na imaginação.
Levei no regaço Ualalapi, A mãe, e Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievski, não propriamente por necessidade de os reler, apenas queria algo que me sustentasse o espírito para que, em momentos imprevisíveis de provável tédio, encontrasse refúgio ou, na melhor das hipóteses, o stick para me levar a outros enredos. Sobre a música não me preocupo em providenciar nada, tenho o youtube, onde não faltará a recorrência a Fela Kuti - não me canso de ouvi-lo.
Já estou pronto a pegar a estrada, sem medo de nada, depois de uma noite mal passada, a ser encostado, violentamente, pela minha mulher, à parede, como uma criança inútil. O que me vale é que agora, com a idade entrando fundo dentro de mim, aprendi a suportar as facadas, mesmo que elas sejam injustas. Aos ataques reajo com o silêncio e com o olhar incisivo dos tigres, sem dizer nada. Sinto-me a enrrigecer como as rochas que formam grutas inteiras nas montanhas de pedra. É por isso que não vocalizo nas minhas respostas.
Mas estou aqui, com a sacola a tiracolo, dentro da qual, além das poucas roupas que vão dar para uma semana, tenho as obras literárias de grandes escritores no meu bornal. Elas são o meu baluarte. Não preciso de armas para guerrear, quero um bastião, e os livros e a música são isso mesmo, meu último reduto. São as palavras grafadas no papel e na história que me protegem ao ser agredido pela minha mulher, com vários feixes de azagaias buscando meu sangue. E na verdade sangro ao ser vergastado. Sangro para dentro onde guardo todas as minhas cicatrizes. Sou como os gatos, você enterra vivo esse pequeno felino, e ele vai refocilar e vem cá fora. De novo. Vivo!
Tu não prestas para nada! És um cão vadio! Se fosses homem de verdade saberias o que é uma mulher! Passaste a vida toda a caminhar, nunca chegaste a lugar algum. És como as mulheres sáfaras, não produzes nada. Nem por fora brilhas, mas esse é o espelho das tuas vísceras corroídas pela opacidade. O pior é que ainda pensas que estás vivo! Se eu fosse a você, suicidava-me sem pensar duas vezes.
É este flashback que soa profundamente dentro de mim, sentado, encostado à janela do 737 que me leva a Pemba. Como das outras vezes. Estou para além das nuvens, onde a atmosfera começa a diluir-se.
Se eu fosse a você, suicidava-me!
Mas eu não quero morrer, nasci para viver. O sinal disso é esta viagem que faço dentro de um clima de catástrofe. Onde caminhamos nas margens do precipício. Esquecendo que nenhum de nós tem escafandro para sobreviver ao fogo.