Estes dias de canícula pós-eleitoral veio-me à memória o Professor José Negrão, falecido académico e proeminente activista social moçambicano. A memória em questão não se prende com assuntos eleitorais, mas sim com a habilidade de pensar e agir estrategicamente, sobretudo na criação e gestão das condições necessárias para que um determinado propósito siga com tranquilidade o curso previsto, quer anulando ou mitigando, antecipadamente, as potenciais ameaças, quer capitalizando oportunidades para a respectiva viabilização.
Nesta linha, partilho um episódio por mim vivenciado, enquanto membro de um grupo de trabalho, em 2003-2004, quando foi do processo de participação da sociedade civil na monitoria do plano governamental de redução da pobreza absoluta, cuja liderança – da coligação da sociedade civil, denominada G20, que fora criada para o efeito, envolvendo vários segmentos da sociedade, incluindo o sector privado, sindicatos, academia e confissões religiosas, fora as tradicionais ONGs – esteve à cargo do Professor Negrão.
Nessa altura, o país ainda vivia a ressaca da tensão pós-eleitoral das eleições de 1999, as consequências das cheias de 2000 bem como o habitual frenesim da proximidade e realização das eleições, no caso das autárquicas de 2003 e as gerais de 2004, contando estas últimas com a emergência de Armando Guebuza como o candidato antecipado do partido Frelimo, então assumindo o cargo de Secretário-geral do seu partido.
Ainda nessa altura, destacavam-se na influência da opinião pública, entre outras figuras: o jornalista Machado da Graça com a sua ''Talhe de Foice'' no Jornal Savana; o jornalista Salomão Moiana com os seus editoriais no Jornal Zambeze; e o músico José Mucavele que, repetidamente, na imprensa, alertava sobre o potencial (neo)colonialismo nos processos de governação nacionais, tendo sido, nesta linha, crítico da candidatura do Doutor Gagnaux , um moçambicano de raça branca e de ascendência suíça, para edil da capital do país.
O ponto: numa das reuniões do grupo de trabalho de preparação para um encontro da cúpula do G20, o Professor Negrão sugeriu que convidássemos as três figuras acima para começarem a participar na reunião da cúpula. Nas reuniões os três não falavam. O Machado da Graça até passava o tempo a desenhar. Numa das reuniões de balanço do grupo de trabalho acabei por perguntar ao Professor Negrão qual era a mais-valia em ter os três nas reuniões do G20.
Em resposta, o Professor Negrão disse que era estratégico tê-los próximos e mesmo calados do que distante e a hostilizarem. O argumento: para o Professor Negrão uma ''Talhe e Foice'' de Machado da Graça a questionar se o G20 não seria mais uma encomenda ou organização de quadros do partido Frelimo, um editorial do Salomão Moiana a questionar a transparência e integridade da iniciativa, e uma entrevista de José Mucavele, a acusar que se estava diante de mais uma iniciativa neocolonial ocidental (sublinhar que o Professor Negrão era de raça branca), seriam mais do que suficientes para derrubar as boas intenções do G20.
Dito isto, e embora tenha mencionado no início de que a memória que me acossara não estava directamente relacionada com assuntos eleitorais, mesmo os decorrentes da actual tensão pós-eleitoral, agora percebo que tem, e tem muito. Mas, como diz um outro professor e académico, Elísio Macamo: ''Pensar dói!''. E ''Pensar e agir estrategicamente'' deve doer ainda mais, tal a ausência generalizada na política da Pérola do Índico.