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terça-feira, 14 maio 2019 06:05

Fernando Manuel: depois de todos os desfiladeiros

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Acabo de falar ao telefone com Sangare Okapi, e ele recorda-me um verso que me remete ao silêncio: não me aguarde, basta que penses em mim. Outro verso perturbador já o tinha ouvido de Fernando Manuel: agora vivo de sons. Na verdade, Fernando não tem outra escolha senão aceitar este futuro que já encara de frente, com palavras sem fim em formigueiro nas mãos trémulas queimadas pelo tabaco. Ele está apressado em lançar toda essa enxurrada depositada no sentimento mais profundo, porque o tempo que tem pela frente é inesperado.

 

Quando nasceu não sabia de nada, mas já estava escrito que tudo consumar-se-ia na pesada penumbra. Quer dizer, a cegueira, cansada de esperar na vigília furtiva iniciada no ventre da sua linda mãe, abateu-se – mais de seis décadas depois - com estrondo sobre um cronista que agora respira entre os sopés e os cumes. Sem saber exactamente o que pensam as pessoas à sua volta, porque não vê o rosto delas. E o rosto, segundo o poeta, é um pouco a janela da alma.

  

Estou sentado frente a frente com Fernando Manuel na sala do seu apartamento na Avenida Guerra Popular, em Maputo, onde vários charcos de mijo espalham-se por um município fedorento. Onde os cheiros nauseabundos são exaltados pelas canções repetidas no silêncio dos dementes desmazelados, que gozam a liberdade infindável oferecida pelas velhas acácias. E pela rebeldia dos meninos de rua que não sabem para onde vão. Nem de onde vêm os ventos frios que varrem seus ossos nas noites e nas madrugadas.

 

Há muito que não nos víamos, e ele nunca mais há-de me ver. Mesmo assim não me compadeço com o cego que está à minha frente, apesar de saber que estes olhos grandes jamais voltarão a vislumbrar a cor das manhãs. O que me arrepia porém é que o cronista parece escutar-me com esses mesmos globos oculares ora escurecidos. Já não é o mesmo homem que conheci, que saía a correr da Redacção para trazer a reportagem inadiável, posteriormente burilada com saber. Já não é aquele boémio incapaz de controlar a boca que ao mesmo tempo bebia e dava azo às bojardas que só ofendiam a quem não entendesse efectivamente os tecidos da vida.

 

Fernando Manuel agora é um personagem resignado perante todas as derrotas infligidas pelos desfiladeiros íngremes calcorreados um a um. Passa a vida a escutar Rádio e a ouvir música, como se isso fosse lhe devolver a pujança dos músculos. Qual! O que lhe sobra é alma. E as palavras que lhe alagam as mãos. Em turbilhão.

 

A nossa conversa rodopia em torno do eixo do passado. É o próprio Fernando Manuel quem assim o diz, lá para frente não há nada. Tudo começa daqui para trás. Ou da trás para aqui. Aqui é o limite. É aqui onde terminam todas as paródias. Pior quando não há vinho por sobre a mesa. A vida torna-se um muchém de sal insípido, como se transformou a mulher de Lote, libertada de Sodoma e Gomorra.

 

É isso: a iris do Fernando Manuel perturba-me. Parece inquirir-me.  E eu digo assim ao meu amigo, vou trazer-te um par de óculos escuros para esconderes esses olhos de águia em fúria, porque já não servem para nada. E ele responde-me assim, os olhos da águia são a tónica máxima da liberdade. Depois da águia não há outro animal. Ou seja, na audácia da águia está a audácia de Deus. 

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