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domingo, 10 fevereiro 2019 16:21

A morte da senhora do Atum

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Mitemane acordou debaixo das águas. O seu relevo formado por reentrâncias e saliências não conseguiu engolir a fúria da maré que não cessou de expelir jatos e mais jatos de corrente. “É o dilúvio”. Dizem os pecadores. “Talvez, Deus está zangado com tantos ladrões que existem nestas terras do régulo Napuco”, acrescenta um pescador cujo barco acaba de atracar ao porto de areia fina.

Tothoro, um empresário da vila sede de Memba, envia a Mitemane o seu camião para ajudar a evacuar as pessoas que ainda beijam a areia abaixo da linha do mar numa relação de amor forçada pela emergência que não os deu tempo de tatear outras longitudes enquanto a água não exibia sua musculatura.

 

Palhotas da aldeia meio engolidas, ventos em rajadas, aguaceiros e trovoadas, o corpo da polícia costeira, lacustre e fluvial desdobra-se para que os pescadores do último barco do dia se fizessem a terra. “Tenta anexar a corrente de reboque meu inspector”, grita em agonia um guarda da polícia que havia ajudado a combater “os que não comem”, grupo de jovens ladrões que chegou a protagonizar assaltos históricos na cidade de Nampula. “Vamos todos ajudar, façam força” apela o inspector.

 

A embarcação da polícia era pequena em comparação ao último barco, um Bénéteau francês, muito diferente dos barcos de madeira empurrados a vela e vento que pululam por Mitemane. A embarcação tinha o seu título de propriedade registado em nome de uma grande empresa chamada Atusag, S.A, acrónimo de Atum Sagrado, Sociedade Anónima, uma firma cujo sucesso não atravessou a fronteira da promessa.  

 

Apesar de ter sido criada para pescar atum, os moradores estavam habituados a perder de vista os barcos da Atusag, S.A, pois a periodicidade de movimentação daquelas embarcações pelas águas da Baia de Memba era uma vez em cada três meses. Os populares das aldeias circunvizinhas a baia não tinham memória de ter visto um destes barcos carregado de “Naphome”, o nome que a ciência dos costumes locais dá a este marisco.

 

O que se sabe é que a Dra Alimina Mussagy, uma contabilista que serve como cobradora de taxas da capitania da baia, era uma das gestoras da Atusag, SA, uma empresa cujos sucessos eram anunciados pela rádio comunitária, sem que as comunidades locais matassem curiosidade de ver com seus próprios olhos, um só carregamento.

 

Num desses dias, a Atusag, S.A doou algumas caixas de peixe ao centro de saúde de Baixo Pinda, uma unidade que inala o ar de uma aldeia dormente há poucas milhas de Mitemane. A partir dessa doação, a Dra Alimina passou a ostentar o título: “a senhora do atum”. 

 

“Engata mais um arrame e diz para o Sargento Amede ligar o motor do nosso barco, porque temos de fazer de tudo para tirar esse Bénéteau daqui”, ordena o inspector ao guarda à sua direita.

 

- Temos um homem a naufragar inpector!

 

- Sargento a nossa prioridade agora é resgatar aquele barco que está prestes a naufragar, depois vamos conferir as baixas

 

- Mas como podemos ter uma operação sem a certeza que o batalhão está em forma, meu inspector?

 

- Cala-te seu filho da Puta. És sargento e me deves obediência. Lembre-se que qualquer tentativa de indisciplina, serei implacável e te vou punir – diz o inspector aos berros já sedento de saliva que engula o desespero de apresentar um relatório que desagrade as ordens superiores.

 

Os pescadores de Mitemane haviam já subido as zonas altas de onde apreciavam o cenário nas calmas. E porque desocupação faz pensar para além do permitido, as questões não paravam de desembarcar em seus cérebros, sendo uma delas, as reais motivações dos agentes da polícia costeira, lacustre e fluvial a tudo fazer para salvar um barco já náufrago.

 

Muitos não conseguiam perceber, uma vez que sempre que se registam naufrágios, os próprios guardas desaconselham qualquer acção de salvamento, alegadamente com o intuito de salvaguardar que mais vidas não sejam perdidas. Mas desta vez assistiu-se o contrário, não se importaram em ver polícias perdendo uma ou duas das suas sete vidas.

 

- Já estamos a conseguir inspector – grita o sargento visivelmente emocionado ao sentir o Bénéteau da Atusag, SA em movimento.

 

- Oh rapazes! Vós sabeis que estamos preparados para estancar qualquer acção de tentativa de alteração da ordem e tranquilidade pública.

 

- Claro meu inspector, mas ainda não localizamos “os desconhecidos” – recorda o sargento Amede.

 

De repente um místico de silêncio e pavor abate aos agentes da polícia e aos populares de Mitemane que do alto alimentam a sua apetitosa curiosidade ao dirigirem os olhos a um corpo que flutua sobre as águas salgadas.

 

- Sargento será que estou a ver mal? É um corpo?

 

- Sim meu inspector. Que triste.

 

- Consegues reconhecer antes mesmo de chegar ao laboratório do SERNIC?*

 

- Sim. É a Dra Alimina Mussagy.

 

- A senhora do atum?

 

O inspector responde assertivamente e recomenda a sua equipa a continuar com a operação de busca e salvamento com a crença de que o Bénéteau francês pode ainda reservar outras pessoas que resistem a fúria das águas salgadas de Mitemane em levá-las para o outro lado do mar.

 

*SERNIC – acrónimo de Serviço Nacional de Investigação Criminal 

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