A imprensa e as redes sociais têm demonstrado ao público em geral que, em certa medida, a gestão governamental sobre a greve dos médicos está a ser feita com base em ameaças de instauração de infundados processos disciplinares contra os médicos grevistas, o que inclui ordens ilegais, as chamadas ordens superiores, para marcação de faltas aos médicos que não comparecem ao posto de trabalho por estarem a exercer o direito fundamental à greve. É neste contexto que em várias unidades sanitárias, nas quais a greve se manifesta, já está em curso o processo de marcação de faltas, com ordem para os departamentos dos recursos humanos e da administração e finanças procederem aos descontos nos salários ou vencimento dos médicos grevistas, independentemente de instauração de processo disciplinar, atendendo à efectividade dos mesmos, no sentido de que as faltas pelo exercício do direito fundamental à greve em questão são injustificadas.
Aliás, o Governo, através do seu porta-voz das sessões do Conselho de Ministros, veio a público fazer eco da alegada ilegalidade da greve dos médicos e das ameaças de represálias de diversa natureza sobre os mesmos, incluindo intimidações de desvinculação do aparelho do Estado dos grevistas, por via da contratação de 60 novos médicos. No mesmo sentido, a Governadora de Manica veio de viva voz ameaçar os médicos que trabalham a nível daquela Província que dirige, ordenando, sem qualquer legitimidade e base legal, a marcação de faltas e instauração de processos disciplinares contra os médicos que estão a exercer o direito fundamental à greve.
Acresce a esses actos abusivos de poder o facto de o Governo estar a denegar renovar os contratos dos médicos grevistas, bem com em não proceder à nomeação definitiva dos mesmos, conforme revela a Associação Médica de Moçambique (AMM). A mesma AMM tem ainda denunciado outros abusos que estão a ser praticados silenciosamente com base em famigeradas ordens superiores, do tipo ameaças de transferências de local de trabalho e despromoções. Mais do que isso, é o facto de o Governo pretender levar a cabo a revisão do Regulamento do Estatuto do Médico na Administração pública com vista a retirar os direitos adquiridos em claro prejuízo do sector da saúde pela completa desmoralização dos médicos pela falta de condições salarias adequadas de trabalho.
Inércia do Ministério Público e da Assembleia da República face à Greve dos Médicos
Nos termos da Constituição da República de Moçambique (CRM) e da Lei Orgánica do Ministério Público – aprovada através da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, o Ministério Público zela pela observância da legalidade e fiscalização do cumprimento das leis e demais normas legais. É ao Ministério Público que cabe o controlo da legalidade no ordenamento jurídico moçambicano.
A Greve dos Médicos tem suscitado preocupações e debades sobre a sua legalidade e sobre a garantia dos serviços míninos. E, enquanto o MISAU, ou seja, o Governo de Moçambique, assume a posição de que a presente greve é ilegal, outras instituições, como é o caso da Ordem dos Médicos de Moçambique, e diversas personalidades, sobretudo a nível das organizações da sociedade civil, defendem a posição de que a greve dos médicos é legal e que se trata de um exercício legítimo de um direito fundamental que está a ser feito dentro do quadro constitucional vigente no País.
Ora, esta greve dos médicos, pelas suas caracteríscas e circunstâncias em que está a ser levada a cabo, revela, indubitavelmente, tratar-se de matéria de interesse público, até porque as causas e finalidades da mesma, conforme o caderno reivindicativo que a sustenta, se enquadram no âmbito dos objectivos e políticas de desenvolvimento do Estado no sector da saúde. A greve tem mexido bastante com a questão da garantia dos serviços mínimos no sector da saúde, para além de que, directa e indirectamente, afecta negativamente os cidadãos utentes dos serviços de saúde, sobretudo os pobres, cuja satisfação e garantia cabe ao Estado em primeira linha.
Estranhamente, perante toda a dicussão sobre a legalidade desta greve e as consequências negativas que a mesma está a ter no desenvolvimento do sector da saúde e na vida dos cidadãos pelo deficiente acesso à saúde, incluindo os actos de ameaças, intimidações e abuso de poder praticados por vários órgãos e entidades governamentais contra a classe médica em greve, o Ministério Público não se pronuncia sobre a (i)legalidade da greve e conduta abusiva do Governo contra os médicos grevistas, tendo em conta a sua qualidade de garante da legalidade e representante dos interesses do Estado.
Por sua vez, a Assembleia da República, representante dos interesses do povo, conforme determina a CRM, perante o facto da Greve dos Médicos ter colocado a nú a falta de entendimento sobre o significado e alcance da garantia dos serviços mínimos, bem como o grave prejuizo do vazio legal relativamente à legislação específica sobre o exercício do direito à greve na função pública, ainda não se pronunciou sobre a alegada (i)legalidade desta greve. A Assembleia da República, sendo autora material e formal da CRM, bem como do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e da Lei sobre a Sindicalização na Função Pública devia pronunciar-se sobre os termos do exercício do direito fundamental à greve plasmado no artigo 87 da lei mãe e dissipar equívocos de interpretação.
Não se percebe a razão pela qual o Ministério Público e a Assembleia da República, numa situação em que são, por lei, obrigados a intervir, se furtam ao seu papel de fiscalizar o cumprimento da lei e garantir a correcta interpretação e implementação da CRM e das demais relativas ao exercício da greve. Estranhamente, também, quase que nada fazem para educar os cidadãos e as entidades e órgãos relevantes sobre o exercício dos direitos e liberdades fundamentais em causa.
Morosidade processual no Tribunal Administrativo
Em Dezembro de 2022, a AMM interpôs, no Tribunal Administrativo, um processo de excepcional urgência para esta jurisdição administrativa intimar a direcção máxima do Ministério da Saúde a respeitar o exercício do direito fundamental à greve pela classe médica e para se abster de praticar condutas ameaçadoras, arbitrárias ou de abuso de poder ou que se traduzem em qualquer tipo de violação contra os médicos grevistas pelo facto da greve em apreço ser legal, legítima e exercida dentro do quadro da CRM.
No entanto, o supra referido processo urgente ainda não foi objecto de decisão por parte do Tribunal Administrativo e já revela excessiva morosidade processual, uma vez que já devia ter sido proferido o correspondente Acórdão justo e consciencioso, dada a natureza urgente do processo, para além de se tratar de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, com destaque para os médicos e para o povo que estão a ser vítimas de falta de acesso à saúde de qualidade e em tempo útil.
A esperada decisão do Tribunal Administrativo sobre este caso pendente, desde que se debruce sobre o mérito da causa, irá ajudar a perceber melhor os termos do exercício do direito fundamental à greve na função pública, bem como sobre a conduta do Governo na gestão da mesma greve e se as ameaças têm qualquer base legal para o efeito.
No entender da AMM, a demora no desfecho do referido processo está a dar espaço para o Governo perpetuar as ameaças e outras condutas abusivas contra os médicos grevistas, para além de estar a criar um ambiente de descrédito do sistema de justiça aos olhos dos cidadãos que não entendem a razão de excessiva morosidade processual.
Provedor de Justiça e Comissão Nacional dos Direitos Humanos
A função primordial do Provedor de Justiça e da Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) consiste na garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos, na defesa da legalidade e da justiça, bem como na promoção dos direitos humanos. Todavia, estes dois órgãos de justiça extrajudicial não se têm manifestado sobre a problemática do exercício do direito à greve dos médicos, nem sobre a denegação do direito à saúde pelo Estado pela não resolução do problema que levou os médicos a enveredarem pelo exercício do direito fundamental à greve. Ou seja, enquanto o Governo não satisfaz as reivindicações dos médicos, o efeito directo dessa teimosia é a violação do direito à saúde dos cidadãos, sobretudo os pobres. Não faz sentido e é preocupante o silêncio do Provedor de Justiça e da CNDH perante um assunto tão complexo e de interesse público prioritário que se enquadra nas atribuições e actuação desses mesmos órgãos da Justiça.
Concluindo
Do acima dito, é notório que o sistema de justiça moçambicano está cada vez mais distante ou alheio aos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, aos direitos humanos e à realização da almejada justiça para os pobres, senão proteger o Governo, independentemente das violações que pratica contra os cidadãos. Trata-se, pois, de mais um caso flagrante da dita “justiça mais forte com os fracos e fraca com os fortes”, o que já é apanágio do sistema de justiça moçambicano. Portanto, está na hora das instituições de justiça competentes responsabilizarem as entidades e órgãos da Administração Pública pelas ameaças e aplicação de represálias aos funcionários e agentes do Estado por exercício legítimo do direito à greve e do associativismo no quadro da Constituição.
Numa época em que os três (3) principais partidos políticos já se decidiram sobre as escolhas dos seus respectivos cabeças-de-lista para as Eleições Municipais que se avizinham, é oportuna a realização de uma breve análise sobre o perfil do(a)s candidato(a)s, não necessariamente do ponto de vista do percurso que cada um(a), mas relativamente à sua dimensão etária, pois vivemos num País onde a média de idade é colocada no intervalo de 16-17 anos, o que reflecte, em grande medida, sobre a população eleitoral presente e futura.
Contudo, antes de abordar o caso específico de Moçambique, importa destacar que a questão da idade na política sempre foi um tema controverso. Por exemplo, para Percheron (1989)[1], falar de idade, no domínio da Sociologia Eleitoral, é, antes de mais, pensar na oposição entre os eleitores mais jovens e os mais velhos, entre os que entram e os que saem da arena política. Ou seja, significa projectar a demografia eleitoral e avaliar o peso numérico dos fluxos de entrada e saída do eleitorado, visando comparar a composição dos grupos etários mais jovens e mais velhos em termos de características essenciais para uma análise do comportamento eleitoral (sexo, nível de instrução, grupo socioprofissional, local de residência ou, ainda, património).
Aliás, como explica Muxel (2011)[2], não há nada mais natural do que a idade. Ser jovem ou velho, ter uma data de nascimento ou envelhecer com o passar do tempo – tratam-se, pois, de elementos objectivos da condição humana que ninguém contesta.
Uma breve pesquisa relativamente ao significado da palavra idade, consultados diferentes dicionários, sugere tratar-se de duração normal da vida, medida desde o nascimento até à morte. Ou seja, a idade é uma unidade de tempo, a medida da vida humana. Mas é, também, uma fracção dessa duração.
Além disso, a idade abrange não só todo o processo de envelhecimento, mas também os graus específicos de uma escala contabilística de uma duração de existência. Refere-se a uma dupla perspectiva: diacrónica e sincrónica. Podemos ter consciência da nossa idade avançada e, ao mesmo tempo, reconhecermo-nos como crianças ou adultos, jovens ou velhos, ou mesmo entre duas idades. Nisto reside a riqueza e a ambiguidade de um conceito ao qual estão associados muitos pressupostos e ideias preconcebidos.
Ainda para Muxel (2011), se analisarmos os efeitos da idade na política, utilizando diferentes métodos e domínios de observação, a primeira conclusão é óbvia: A idade é claramente uma variável fundamental para a compreensão dos fenómenos políticos. Mais do que isso, através dela se introduz o parâmetro fundamental do tempo e, com este, a duração da vida, bem como porque permite explicar a transformação inevitável de toda a experiência humana. Porém, o seu envolvimento na estruturação e evolução das atitudes e dos comportamentos políticos dificilmente dá origem a regularidades infalíveis ou a lógicas facilmente identificáveis. Por sua vez, os seus efeitos directos, embora presentes, permanecem ténues e relativamente resistentes à análise.
Ademais, os demógrafos estão habituados a considerar a idade como uma variável intermédia, isto é, a que se situa sempre entre duas águas, nem exclusivamente dependente nem exclusivamente independente, que, sobretudo, reforça, fortalece ou atenua os efeitos de outras variáveis consideradas mais decisivas e discriminantes. Todavia, a idade, por si só, não diria nada, mas combinada com outros elementos da situação, desempenharia todo o seu papel.
Alguns autores[3] explicam que a idade é um conceito maleável, pelo que não há um limiar objectivo que separe os jovens dos indivíduos de meia-idade ou idosos. Há, pelo menos, quatro (4) pontos de discórdia que tornam os jovens difíceis de definir. Primeiro, os indivíduos podem ter uma percepção diferente de si próprios com a mesma idade numérica. Por exemplo, alguém com 50 anos pode identificar-se como jovem, de meia-idade ou velho. Segundo, o significado de idade é específico do contexto. Por exemplo, ter 30 anos pode ter uma conotação diferente num contexto urbano de um país com rendimentos elevados em comparação com o contexto rural de um país com rendimentos baixos. No primeiro caso, a esperança média de vida pode muito bem rondar nos 80 anos, ao passo que no segundo pode ser substancialmente inferior.
Terceiro, a idade é um estado temporário da vida de um indivíduo. Isto contrasta com as características de muitos outros grupos – por exemplo, ter uma linhagem étnica – que raramente muda à medida que as pessoas crescem. E, por último, e de forma relacionada, não está claramente delimitado o limite superior ou inferior do intervalo de idade que define o grupo “juventude’’ ou outros grupos etários como a meia-idade ou os idosos.
Actualmente, tornou-se evidente associar a idade como sinónimo de falta de interesse pela política ou, ainda, ausência de capacidade dos mais jovens em assumir tal poder. Dalton (2017)[4] já havia mostrado que os cientistas políticos tem estado a debater por que razão a geração do milénio (nascida entre 1981/1996) está a desinteressar-se da política nas democracias contemporâneas. Baseando-se no caso dos Estados Unidos da América (EUA), já se demonstrou que se regista, nas gerações mais recentes, um claro declínio da participação eleitoral no período 1967-2014. Em contrapartida, os aumentos da participação ao longo do ciclo de vida são mais comuns nas actividades não eleitorais (manifestações, petições ou boicotes). Ambos factores influenciam a participação, mas de formas contrastantes para diferentes modos de acção colectiva.
Adicionalmente, Stockemer e Sundström (2023)[5] explicam que as pessoas que tomam decisões políticas em todo o mundo tendem a ser muito mais velhas do que o eleitor de idade média, pelo que, os parlamentos e gabinetes não são representativos da população em geral. Este facto tem consequências: arrisca-se a favorecer políticas orientadas para os interesses dos grupos mais velhos, podendo afastar os jovens do voto e levar os partidos a apelar (ainda mais) aos eleitores mais velhos. Relativamente a isso, alguma literatura chama a tendência de afastamento dos jovens como sinónimo de apatia política ou desencantamento partidário[6].
Outros autores[7], por sua vez, argumentam que os jovens não só se abstêm nas eleições, como também optam por não participar em muitas vias tradicionais de aprendizagem e desenvolvimento político, tais como ler jornais ou assistir aos noticiários televisivos.
Uma interpretação comum dos baixos níveis de participação eleitoral entre os jovens eleitores sugere que eles são apáticos e integram uma geração que não se preocupa com as questões políticas – de facto, uma geração egoísta e materialista.[8] Todavia, alguns trabalhos[9] contrastam essa realidade, pois ilustram que os jovens estão dispostos a empenhar-se politicamente, mas estão desmotivados pelo enfoque e pela natureza do discurso e da prática política dominantes, que, na visão de muitos analistas, exclui e ignora os seus interesses e necessidades.
Retomando ao caso específico de Moçambique, destaca-se que, recentemente, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) e o Movimento Democrático de Moçambique (MDM) apresentaram as suas candidaturas para as Eleições Autárquicas de 2023. Metodologicamente, ao invés de analisarmos todos os 65 Municípios onde os três (3) partidos políticos concorrerão, por limitação de dados e complexidade do próprio exercício, quisemos apenas considerar os localizados nas capitais provinciais, e obtivemos os seguintes dados em termos de idade dos cabeças-de-lista, conforme a tabela abaixo[10]:
Partido |
Cabeça-de-lista |
Idade |
Município |
Frelimo |
Rasaque Silvano Manhique |
40 |
Maputo |
Renamo |
Venâncio Mondlane |
49 |
|
MDM |
Augusto Mbazo |
45 |
|
Frelimo |
Júlio José Parruque |
45 |
Matola |
Renamo |
António Muchanga |
57 |
|
MDM |
Augusto dos Santos Pelembe |
45 |
|
Frelimo |
Adamo Ossumane Adamo |
55 |
Xai-Xai |
Renamo |
Félix Tivane |
36 |
|
MDM |
Manasse Alexandre Mulhovo |
33 |
|
Frelimo |
Benedito Eduardo Guimino |
53 |
Inhambane |
Renamo |
Vitalino Macauze |
39 |
|
MDM |
Constantino Manuel Sevene |
43 |
|
Frelimo |
Stela Pinto Novo Zeca |
46 |
Beira |
Renamo |
Geraldo de Carvalho |
51 |
|
MDM |
Albano Carige |
52 |
|
Frelimo |
João Carlos Gomes Ferreira |
50 |
Chimoio |
Renamo |
Manuel Macocove |
55 |
|
MDM |
Celestino Tapero |
35 |
|
Frelimo |
César de Carvalho |
70 |
Tete |
Renamo |
Ricardo Tomás |
49 |
|
MDM |
Celestino Bento |
59 |
|
Frelimo |
Lourenço Acide Abdul Gani |
44 |
Quelimane |
Renamo |
Manuel de Araújo |
53 |
|
MDM |
Bruno Hubre Dramusse |
47 |
|
Frelimo |
Manuel Rodrigues |
58 |
Nampula |
Renamo |
Paulo Vahanle |
63 |
|
MDM |
Carlos Saíde Chaúre |
52 |
|
Frelimo |
Satar Abdul Gani |
36 |
Pemba |
Renamo |
Amido António |
44 |
|
MDM |
Machude Chale Momade |
41 |
|
Frelimo |
Luís António Saíde Jumo |
43 |
Lichinga |
Renamo |
Orlando Augusto |
57 |
|
MDM |
Pedro Baptista Salimo |
55 |
Ora, não há consenso partilhado relativamente à idade juvenil no País, pelo que tal se coloca entre a faixa etária dos 15/18 até aos 35 anos. Para uma primeira leitura da tabela acima, como hipótese, consideramos ser importante recuperar o discurso segundo o qual “os jovens podem vender o País’’ (General Hama Thai, 2008). Como lógica explicativa, a ideia subjacente girava em torno de uma aparente desconfiança sobre a capacidade dos jovens em operar mudanças de âmbito político. Contudo, tal se deve questionar, sobretudo quando se usa a lógica do “adultismo político’’ como razão da não inclusão dos jovens.[11]
Ainda no que tange à tabela, é evidentemente notório que a média de idades está acima dos 35 anos. Porém, excepção seja feita para o caso do partido MDM, em que Manasse Mulhovo (Xai-Xai) e Celestino Tapero (Chimoio) surgem com 33 e 35 anos, respectivamente. Em relação ao partido Frelimo, a maioria dos candidatos alistados está acima dos 40 anos, exceptuando-se Satar Gani (Quelimane) e Rasaque Manhique (Cidade de Maputo), que têm 36 e 40 anos, respectivamente. No caso do partido Renamo, pelo menos dois dos seus candidatos estão abaixo dos 40 anos. Trata-se, pois, de Félix Tivane (Xai-Xai) e Vitalino Macauze (Inhambane), com 36 e 39 anos, respectivamente.
Além do quesito idade, é igualmente notório o “deserto’’ absoluto de mulheres candidatas em quase todos os partidos políticos, excepto a Frelimo, na Beira. Para nós, a leitura dos dados acima revela um cenário sombrio, no que respeita à representação política vs. idade. Neste contexto, uma breve explicação ajudaria a reflectir melhor sobre a necessidade de se operacionalizar a representação política dos jovens como a percentagem de políticos num determinado escalão etário, ou a necessidade de se comparar a percentagem de jovens adultos numa assembleia com a de jovens adultos na população.
Ora, as análises que apoiam uma maior representação política dos jovens tendem a discutir a representação de grupos sociais. Este argumento se baseia na teoria de uma “política de presença’’[12], segundo a qual grupos sociais específicos têm direito a uma representação descritiva porque têm sido sistematicamente desfavorecidos. Todavia, um contra-argumento indica que não devemos prestar atenção a um grupo com o qual os indivíduos têm apenas uma identificação temporária. Este raciocínio sugere que a exclusão da política que os jovens podem enfrentar durante os primeiros anos de vida pode ser compensada pelas vantagens de que se beneficiarão mais tarde.
Outrossim, ao nível dos partidos, três (3) factores parecem ser moderadamente importantes para os jovens[13]: (1) a idade do partido, (2) a idade do líder do partido e (3) a ideologia do partido. Relativamente aos dois primeiros, alguns indícios sugerem que os partidos mais jovens tendem a nomear representantes mais jovens, e o mesmo se aplica aos líderes partidários mais jovens. Relativamente à ideologia partidária, parece haver uma correlação moderada entre uma ideologia de esquerda e uma maior representação dos jovens, com a ressalva de que esta associação pode não se aplicar aos partidos comunistas. Individualmente, os jovens candidatos que já acumularam experiência política tendem a ser mais bem-sucedidos nas eleições, em média, quando comparados aos jovens sem essa experiência. No caso de Moçambique, tal fica por confirmar ou desmentir perante o actual cenário político em debate.
Por fim, a teoria segundo a qual os mais jovens são incapazes perante a política, não passa de uma retórica dos actores que querem para si mesmos o domínio totalitário sem partilha. A hipótese que explica a nossa colocação prende-se com o facto de que quanto mais nova for uma geração, ela tende a ter uma melhor educação – maior nível de formação e compreensão dos fenómenos[14], razão pela qual, outorgá-la de incapaz ou apática sobre questões políticas é um argumento meramente redutor e falacioso.
Em nota conclusiva, podemos apoiar a nossa análise nos argumentos já avançados pela literatura[15] em torno da representação política dos jovens na era contemporânea, através dos quais se pode sublinhar três (3) componentes: (1) os jovens têm interesses específicos, que não são representados no domínio político actual; (2) há um preconceito dos idosos em relação aos jovens na arena política; e (3) os baixos níveis de representação política dos jovens alimentam um círculo de alienação da(s) juventude(s).
[1] Percheron, A. (1989). Chapitre 9. Age, cycle de vie, génération, période et comportement électoral. In Daniel Gaxie (Ed.), Explication du vote: Un bilan des études électorales en France (pp. 228-262). Paris: Presses de Sciences Po.
[2] Muxel, A. (2011). Introduction / Qu'est-ce que l'âge en politique ? In Anne Muxel (Ed.), La politique au fil de l’âge (pp. 15-30). Paris: Presses de Sciences Po.
[3] Harris A., Wyn J. & Younes S. (2010). Beyond apathetic or activist youth: “Ordinary” young people and contemporary forms of participation. Young, 18, 9-32.
[4] Dalton, R. (2017). Age, Generations, and Participation – The Participation Gap: Social Status and Political Inequality. Oxford Academic.
[5] Stockemer, D. & Sundström, A. (2023), Age Inequalities in Political Representation: A Review Article, Government and Opposition, 1–18
[6] Lardeux, L. & Tiberj, V. (2021). Générations désenchantées? Jeunes et démocratie. Paris. Institut national de la jeunesse et de l’éducation populaire. Documentation Française.
[7] Cammaerts, B., et al. (2016). Participation of Youth in Elections: Beyond Youth Apathy. In: Youth Participation in Democratic Life. Palgrave Macmillan, London.
[8] Op cit. Cammaerts, B. et al. (2016).
[9] Juris, J. S. & Pleyers, G. H. (2009). Alter-activism: emerging cultures of participation among young global justice activists. Journal of Youth Studies. 12, 57–75.
[10] Idade actual ou anos a completar até ao dia 31 de Dezembro de 2023.
[11] Tsandzana, D. (2022). The political participation of youth in Mozambique’s 2019 general elections. Journal of African Elections, 21(1), 95-119.
[12] Stockemer, D. & Sundström, A. (2023). Age Inequalities in Political Representation: A Review Article. Government and Opposition, 1-18.
[13] Stockemer, D. & Sundström, A. (2022) Youth without Representation: The Absence of Young Adults in Parliaments, Cabinets, and Candidacies. Ann Arbor: University of Michigan Press.
[14] Ver Vincent Tiberj/The Conversation, Les jeunes et le politique: au-delà du vote, des formes d’engagement multiples, March 2022.
[15] Op cit. Stockemer, D. & Sundström, A. (2023).
Uma vez mais, a apreciação, debate e aprovação da lei sobre o Fundo Soberano pela nossa Assembleia da República foi adiada para… mais tarde, não se sabendo se será na próxima sessão ou não. A primeira proposta deste instrumento legal foi desenhada no início do segundo semestre do ano passado e esperava-se que na sessão de Outubro do mesmo ano fosse à apreciação e aprovação, dado que em Novembro iríamos receber os primeiros dividendos da exploração do gás, o que não aconteceu. Muitos, incluindo eu, então, sentiram-se desconfortados com a proposta de lei, ou de todo excluídos e clamaram por mais auscultação popular, inclusão e mais debate. A AR anuiu e o projecto acabou sendo retirado para próxima oportunidade.
Tudo indicava que tal oportunidade seria na sessão do primeiro semestre do presente ano, mas, uma vez mais, não aconteceu. Entre o desencontro de ideias entre deputados das três bancadas, as desavenças da AR e o Banco de Moçambique, com o governador deste a humilhar completamente os deputados/moçambicanos ao não comparecer nem se justificar a uma sessão de esclarecimento na comissão parlamentar especializada, veio de nova à tona que a tal auscultação não tinha sido mais abrangente como se requer e nem acomodava as contribuições apresentadas por várias sensibilidades.
Houve, novamente, recomendação de mais auscultação.
Daí para cá, houve uma correria louca do Executivo e, quando se convocou a sessão extraordinária da semana passada, havia quase certeza de que o projecto de lei, uma vez constante da agenda, iria ser abordado. De novo… nada!
Em causa, a ausência de consenso. Prevalecem divergências nos pontos essenciais, designadamente, sobre a natureza e essência do fundo, se uma conta bancária domiciliada no Banco Central ou noutro; quem vai efectivamente geri-lo; e onde e como será aplicado. Por outras palavras, estamos no mesmo sítio onde estávamos quando ainda não recebíamos dividendos da exploração dos nossos recursos naturais. Entretanto, já estamos a recebê-los.
Mas, ouvindo e analisando alguns dos pronunciamentos de certos concidadãos, dá para perceber que a questão da essência ainda não está ultrapassada e é bicuda. O professor Severino Ngwenha questiona se, numa situação como esta em que nos encontramos - de crianças estudando ao ar livre e no chão; apenas 30 por cento de compatriotas com três refeições por dia (ao contrário do que propalou Celso Correia); 50 por cento com acesso à água de fonte segura e energia eléctrica; défice de hospitais e os existentes sem medicamentos essenciais para a maioria da população; país com grande défice de infra-estruturas (estradas, linhas férreas, pontes, acesso à comunicação (telefonia); etc. - vale a pena guardar dinheiro para as futuras gerações. Esta é a questão de fundo: tendo compatriotas sucumbindo, sobrevivendo; com uma refeição por dia, sem emprego, sem acesso à água segura, energia, estrada, telefone, ie., condições de vida básicas, vale a pena guardar dinheiro?… grande encruzilhada!
Num artigo de Outubro do ano passado, escrevia eu: “Minha visão é que devemos definir aqui e agora o que fazemos com o Fundo Soberano, a parte que irá para a conta a ser aberta no Banco de Moçambique. A lei sobre o Fundo Soberano deve estar completa e estar completa significa que deve também especificar o destino dos valores a entrarem. Não acho que devamos ser como a maioria dos criadores de gado do nosso país, que se contenta apenas em contemplar a quantidade de cabeças que tem no curral e está à espera de ver o que vai fazer com elas… tipo nós que só vamos ver o saldo da nossa conta e não temos ideia clara do que fazer com aqueles fundos… que até são magros… estamos à espera de decidir o que fazer com eles. Não. Esta questão tem que estar fechada já. Tomarmos uma decisão colectiva e consensual sobre onde aplicar os fundos provenientes da exploração dos recursos naturais.
Já agora: acho que o Fundo Soberano deve ser aplicado na construção e reabilitação de infra-estruturas, só e somente só. Por infra-estruturas, quero dizer estradas estratégicas e estruturantes, isto é, as primárias e secundárias, pontes estratégicas, nacionais, regionais e provinciais; linhas férreas regionais e nacionais; e barragens e centrais eléctricas de âmbito nacional e regional. Penso que um país com excelentes infra-estruturas será um bom “legado” para as gerações vindouras.”
Considero pertinente a questão colocada acima, mas mantenho este posicionamento, que me parece que cobre a preocupação levantada, de se guardar dinheiro quando compatriotas soçobram, com a ressalva de que também não vejo com bons olhos que a gestão do fundo seja por uma equipa subordinada ao governo do dia; deve, sim, prestar contas à Assembleia da República.
“(Item 1): Governar o mundo e controlar as riquezas do planeta - nossa política é dividir e conquistar, dominar, explorar e saquear para encher nossos Bancos e torná-los os mais poderosos do mundo; (Item 2): nenhum país do terceiro mundo é um estado soberano e independente; (Item 3): todo o poder nos países do terceiro mundo emana de nós, que o exercemos pressionando os líderes que são apenas nossos fantoches. Nenhum corpo no terceiro mundo pode assumir o seu exercício; (Item 4): todos os países do terceiro mundo são divisíveis e suas fronteiras móveis de acordo com nossa vontade. O respeito pela integridade territorial não existe para o terceiro mundo; (Item 5): todos os ditadores devem colocar suas fortunas em nossos Bancos para a segurança de nossos interesses. Esta fortuna será usada para doações e créditos concedidos por nós como crédito e ajuda ao desenvolvimento de países do terceiro mundo”.
In Carta do Imperialismo, Provisão Geral, Museu Real da África Central em Tervuren, Bélgica.
Na minha opinião, os problemas de África e de Moçambique devem ser vistos com base na chamada “Carta do Imperialismo”, concebida em Washington durante o comércio de escravos e negociada na Conferência de Berlim em 1885, aquando da partilha da África, uma partilha, como reza a história, sem os próprios africanos. Desde então, África tem sido aquilo que os europeus querem que seja e a eliminação de dirigentes lúcidos e comprometidos com os seus povos faz parte da estratégia traçada em Washington antes da partilha da África.
Quando no Item 5 se diz taxativamente: “todos os ditadores devem colocar suas fortunas em nossos Bancos para a segurança de nossos interesses. Esta fortuna será usada para doações e créditos concedidos por nós como crédito e ajuda ao desenvolvimento dos países do terceiro mundo”, isso espelha a realidade de hoje, em que quase todos os dirigentes africanos têm as suas fortunas nas antigas metrópoles ou em outros paraísos fiscais. A história recente mostra-nos, por exemplo, o destino da elite política de Angola em Portugal. O que lhe aconteceu? E nos outros países do mundo, incluindo Moçambique, a “novela” das dívidas ocultas mostra, igualmente, onde a fortuna de alguns moçambicanos se encontra domiciliada.
Também encontramos nessa “Carta do Imperialismo”, no Capítulo do “Regime Político”, Item 6, o seguinte: “todo o Governo e o Poder estabelecido por nós é legal, legítimo e democrático. Mas qualquer outro poder ou Governo que não emane de nós é ilegal, ilegítimo e ditatorial, qualquer que seja sua forma e legitimidade. Já no Item 7: qualquer poder que oponha a menos resistência às nossas injunções perde assim a sua legitimidade e a sua credibilidade. Ele deve desaparecer”. Ora, se dúvidas existiam, com este item sobre a Governação Política da “Carta do Imperialismo”, creio que foram dissipadas.
O caso do Níger é o exemplo paradigmático neste momento. Se o Golpe de Estado é legítimo ou não, não deve ser o ocidente a dizer ou a avalizar, é o povo do Níger que se deve pronunciar. Por aquilo que é o carinho que os golpistas recebem do seu povo, pode se assumir que este povo se revê nos militares do Níger. Contudo, tendo em conta o princípio segundo o qual “qualquer outro poder ou Governo que não emane em nós é ilegal, ilegítimo e ditatorial”, aqui temos a prova da aplicação à risca da chamada “Carta do Imperialismo”.
Os países africanos mobilizam-se para atacar os militares do Níger com o apoio, claro, da Europa e dizem de boca cheia que o “Golpe é ilegal”. Falta dizer que “não emana da Europa”. Os golpistas pretendem, desde já, verem-se livres das relações neocoloniais da França, seu antigo colonizador, que se retirou das colónias com base no acordo que oferece vantagem à França em detrimento dos cidadãos do Níger.
Muitos meus concidadãos não irão concordar, decerto, tal é a forma alienada em que estamos, mas as chamadas “dívidas ocultas”, segundo os contratantes, tinham um fim nobre, que colocava em causa os interesses ocidentais, em particular os que exploram a Bacia do Rovuma.
Moçambique queria se ver livre do sistema de monitoria de segurança montado por eles, que, segundo suas declarações, drenava milhares de USD semanalmente.
Também é verdade que usaram a parte fraca de nós moçambicanos, nomeadamente a vontade do enriquecimento fácil e de viver fora dos padrões dos nossos próprios rendimentos e puseram-se a facilitar tudo.
Se é verdade que, para a contratação da dívida por um Estado, é imperioso que a sua Assembleia aprove e que essa aprovação faça parte dos documentos a apresentar aos Bancos Europeus, por que razão eles aceitaram fazer a entrega do dinheiro sem que esse requisito fosse preenchido. Mas, no lugar de questionarmos isso, ficamos com vozes roucas, acusando em exclusivo os nossos de corruptos. Onde andam os corruptores? Esta equação tem os dois lados, os corruptos e os corruptores. Entretanto, aqui, mais uma vez, como a segurança marítima a aplicar não era do interesse europeu, teria de cair de qualquer jeito, por bem ou por mal e estamos nós aqui presos e dependentes deles.
As companhias que exploram a Bacia do Rovuma retiraram-se num momento crucial para Moçambique, quando tudo indicava que, mais dias menos dias, iria iniciar a exploração de Gás e tudo indicava um encaixe financeiro que pudesse livrar Moçambique da dependência Orçamental. E o que fizeram? Retiraram-nos o financiamento directo ao Orçamento do Estado. Pensavam que Moçambique iria “baquear” através da dívida interna. É verdade que falamos de esgotamento da capacidade de endividamento, mas isso também é normal.
Este bloqueio europeu e das instituições das Nações Unidas fez com que o desenvolvimento de Moçambique estagnasse, devido ao elevado custo do dinheiro. As instituições bancárias e outras de carácter de financeiro deram privilégio ao endividamento do Estado no lugar de injectar dinheiro à economia. Duas razões levaram a esta decisão, a garantia de que o Estado mais cedo ou tarde iria pagar os juros altos cobrados aos Bilhetes de Tesouro. Tudo isto foi feito de caso pensado, mas, internamente, aqueles que deveriam raciocinar através do olho de nação parece que ficam do outro lado, do lado dos subscritores da “Carta do Imperialismo”.
Como se não bastasse o acima exposto, a “Carta do Imperialismo” tem na sua terceira parte o capítulo que diz: “Tratados e Acordos (Item 8) - não negociamos acordos e tratados com países do terceiro mundo, impomos o que queremos e eles se submetem à nossa vontade”. (Item 9): “qualquer acordo concluído com outro país ou negociação sem o nosso aval é nulo e sem efeito”. No capítulo sobre Direitos Fundamentais, no seu Item 10, diz assim: “onde existem nossos interesses, os países do terceiro mundo não têm direitos, nos países do Sul, os nossos interesses vêm antes da Lei e do direito internacional”.
Ora irmãos africanos e moçambicanos em particular! Depois desta leitura, quais são as ilações a tirar desta “Carta do Imperialismo”? Continuamos à procura dos culpados do nosso insucesso ou devemos nos concentrar na fórmula para sair deste ciclo vicioso criado por essa famosa Carta! Continuamos a pensar que a morte de dirigentes africanos é outro infortúnio ou é algo pensado há bastante tempo!? No caso de Moçambique, a Agricultura definida constitucionalmente como sendo a “base do desenvolvimento” não sai do papel por incapacidade ou porque efectivamente estamos manietados. O ocidente, com destaque nos europeus, não quer o nosso desenvolvimento, por isso nos bloqueiam em tudo!
Os contornos da contínua Greve dos Médicos têm revelado falta de capacidades administrativas em respeitar, com transparência e rigor, a Constituição da República de Moçambique (CRM) e demais leis e normas ordinárias, para a efectivação do direito à greve e direitos fundamentais conexos. No mesmo sentido, chama à reflexão sobre a fragilidade das políticas públicas de incentivos aos profissionais de saúde para a melhoria da prestação de serviços públicos de saúde aos principais beneficiários, que são os cidadãos.
A greve da classe médica em curso só teve e está a ter lugar depois de várias tentativas insatisfeitas de negociação entre os médicos, através da AMM, e o executivo, particularmente o Ministério da Saúde (MISAU), para a melhoria das condições salariais e de trabalho, conforme apresentado no respectivo caderno reivindicativo, tornado público. A insatisfação da classe médica é real, elevada, abrangente e o processo de negociação com as autoridades competentes para a solução do diferendo já dura há bastante tempo, sem produzir resultado satisfatório. Por isso, os médicos em questão não viram outra saída para além de efectivar o direito fundamental à greve nos termos previstos na CRM e de forma contínua, como forma de pressionar o Governo a resolver o problema.
Esta greve sempre foi legítima e legal, mas muito combatida com recurso ao abuso de autoridade e a arbitrariedades. Aliás, a greve chegou a ser suspensa na expectativa de que os acordos alcançados com o Governo seriam devidamente respeitados pelas partes, de boa-fé e nos termos da lei.
Importa compreender que o direito fundamental à greve não carece, necessariamente, de lei específica para ser exercido, uma vez que a Constituição da República não condicionou o exercício deste direito à vigência de qualquer diploma legal, embora o mesmo possa melhor facilitar os seus procedimentos. Assim, a não existência de lei específica sobre a greve na função pública não impede o seu exercício, pois, é um direito fundamental exequível por si próprio, conforme se percebe do disposto no artigo 87 conjugado com o artigo 56, ambos da CRM. E, além disso, é preciso compreender que a Constituição da República está em vigor e não faz depender o exercício dos direitos e liberdades que consagra na entrada em vigor de qualquer lei ordinária, conforme se depreende do disposto no seu artigo 313. A jurisprudência do Tribunal Administrativo sobre o direito à greve na função pública exprime o mesmo entendimento.
O direito fundamental à greve pode ser exercido sempre de boa-fé e por quem tenha legitimidade, desde que se respeite os limites constitucionais previstos nos artigos 56 e 87 da CRM. No caso da Greve dos Médicos, ao faltarem ao serviço para o efeito e nas circunstâncias em que o fizeram ou fazem, os profissionais de Saúde não violam nem a Constituição da República, nem qualquer outra norma infraconstitucional que trate da matéria relativa à greve na função pública.
Logo, o exercício do direito fundamental à greve ou de quaisquer outros direitos e liberdades fundamentais em respeito à Constituição e que impliquem a falta ao serviço deve ser considerado causa justificativa dessa falta ao serviço. Além disso, nenhum cidadão deve ser penalizado ou ameaçado por exercer um direito, dever ou liberdade fundamental à luz do artigo 56 da Constituição.
Faltar ao serviço para o cumprimento de direitos, deveres e liberdades fundamentais dentro do quadro constitucional deve ser, indubitavelmente, considerado causa justificativa bastante da falta.
Contudo, enquanto dura a greve dos médicos liderada pela AMM, o Governo moçambicano tem demonstrado uma conduta conflituosa que se traduz em ameaças e intimidações aos médicos em greve, com destaque para a marcação de faltas tanto para a instauração de processos disciplinares, como para injustamente efectuar descontos nos salários dos mesmos, o que significa dar espaço para o enriquecimento sem causa de quem vai ficar com o valor descontado.
Quanto à possibilidade de instauração do procedimento disciplinar
O procedimento disciplinar deve ser feito à luz do disposto nos artigos 108 e 157, respectivamente, do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE), aprovado pela Lei n.º 4/2022, de 11 de Fevereiro e do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (REGFAE), aprovado pelo Decreto n.º 28/2022, de 17 de Junho. Este procedimento deve ser resultado de elementos ou indícios factuais bastantes de cometimento de infracção disciplinar.
Não havendo sinais ou indícios bastantes de cometimento de infracção disciplinar na conduta praticada pelo funcionário ou agente do Estado, não há fundamento legal par dar seguimento a um processo desta natureza, sob pena de se criar espaço para insegurança jurídica, acusações infundadas e colocar os funcionários e agentes do Estado numa situação de vulnerabilidade pela abertura de canais para perseguições através de processos disciplinares sem base legal. Não basta, pois, entender que qualquer conduta possa configurar infracção disciplinar, é preciso que haja indícios objectivos e suficientes que possam levar a essa suspeita de cometimento de infracção disciplinar, caso contrário, a lei não permite que a Administração Pública instaure procedimento disciplinar.
Do EGFAE e do REGFAE resulta que a instauração de processo disciplinar deve ser resultado do não cumprimento dos deveres do funcionário ou agente do Estado, ou seja, do cometimento ou existência de infracção disciplinar por partes destes. Pelo que, não existindo infracção, como é o caso da Greve dos Médicos por estarem no pleno exercício de um direito fundamental, não é razoável, nem justo e nem legal que se instaure processo disciplinar para sancionar uma conduta que se traduz no exercício de direito fundamental.
O processo disciplinar não deve ser instaurado de má-fé, nem ser contrário aos princípios de justiça e dos direitos humanos, tão pouco deve ser usado como instrumento de intimidação, de ameaça ou de abuso de poder por parte das autoridades, conforme está a acontecer no caso da greve dos médicos.
As disposições legais supra, do EGFAE e do seu Regulamento, trazem consigo requisitos essenciais a que devem ser obedecidos para a legalidade e validade do procedimento disciplinar. É sobre esses requisitos que a AMM se deve concentrar para se defender e exigir responsabilidades das autoridades que abusarem do poder ou praticarem arbitrariedades com vista à instauração de processos disciplinares ou aplicação de sanções e represálias contra os médicos por exercício de direito fundamental.
É importante notar que a Constituição da República consagra como princípio fundamental no nº 1 do seu artigo 248 o seguinte: “A Administração Pública serve o interesse público e, na sua actuação, respeita os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.”
Portanto, a lei estabelece, na Administração Pública, as regras para a efectivação das consequências das faltas injustificadas a que o órgão da Administração Pública em causa deve obedecer. O exercício legítimo e legal do direito fundamental não deve ser objecto de penalização sob pena de limitação do mesmo, fora dos casos previstos no artigo 56 da Constituição, o qual estabelece no seu nº 2 que: o exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição e o nº 3 da mesma disposição determina que: a lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição.
PS:
Este artigo constitui também um contributo para o debate público sobre a necessidade de existência duma lei ordinária específica que regula o exercício do direito fundamental à greve na função Pública, no pleno respeito à Constituição e aos Instrumentos Internacionais de protecção dos direitos humanos de que Moçambique é parte, com vista a evitar equívocos de interpretação e má aplicação da lei que possa perpetuar a violação deste direito e outros conexos.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos