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quinta-feira, 29 junho 2023 06:48

A Vigia

Edna Juga

Cena 1

São 03:03 da madrugada de sábado. A encruzilhada entre duas grandes avenidas está visivelmente despida de vida humana. Um grupo de semáforos posicionados nos três cantos da encruzilhada seguem as suas mudanças sincrónicas, obedecendo a sequência alternada das cores Verde, Laranja e Vermelho. Como não houve movimento desde às 23 horas, jogam o renomado Nomes-Terras. O mais trapaceiro do grupo quando percebe que vai definitivamente perder, desvia a atenção da agremiação.

 

- “Ainda não percebo, por que temos que trabalhar 24 horas?”, pergunta incitando discussão.  - “Durante dois meses, há três meses, estávamos desempregados. Os automobilistas sobreviveram, muito bem, na nossa ausência. Agora que não há ninguém, estamos a trabalhar. Mesmo quando há, quem é que para? Estou com sono. Isso é um abuso!”, resmungou o trapaceiro.

 

A mais sensata dos semáforos, aproveitou a deixa para fazer comentários que encerrariam a conversa.

 

- “Ouçam colegas, o nosso digníssimo e exemplar colega está com sono!”, exclama enquanto organiza as próximas palavras. - “Onde ficou a sua vergonha?”, dispara a pergunta dando início a um ataque. - “Você só sabe reclamar. Primeiro, o seu sinal verde não funciona devido a lâmpada fundida. Segundo, onde está o montante que lhe deram para as lâmpadas? A sua indolência, obriga aos automobilistas, a tornarem-se vesgos para perceber, se devem ou não passar”, opugnou a sensata. Termina o seu discurso indagando, “Por que, até hoje, ainda não trocou a lâmpada? Diga lá?”

 

A conversa ia mudando de tom até que um deles principiou um quadro de alucinações. Era o único dentre o grupo que ainda não havia sido reabilitado. Tratava-se de um semáforo antigo que não recebera a devida atenção. As lâmpadas, começaram a piscar simultaneamente. Deu sinal de encaminhar-se para um estado de colapso, dizendo:

 

- “Estes têm direito de passar, mas aqueles devem esperar. Aqueles tem direito de passar, mas estes devem esperar. Não… Não… Não! Aqui reina a democracia. Todos devem passar, esperar e parar ao mesmo tempo. Se todos temos direitos e deveres, quem poderá confundir a democracia?! Ou… Ela, não existe?” – Cantarola algo inaudível, com intervalos de risos bobos, entrando em estado de avaria.

 

Os restantes colegas semáforos interrompem o jogo, assim como, a audição da discussão entre o trapaceiro e a sensata, para acudir-lho. A lua em sua faceta crescente notifica, aos astros, que a madrugada juvenil será longa. Está contente porque subtraíra o protagonismo da lua cheia. Mesmo com os 55% de crescimento, consegue medir o pulso dos acontecimentos que vigia. Em duas frases, exprime:

 

- “A minha homóloga lua cheia pensa que só ela pode causar infortúnios.”, afirma triunfante. - “Em breve, causarei impacto na vida de algumas almas imprecatadas!”, conclui ciente do seu poder nas propínquas ocorrências.

 

Cena 2

Num dos extremos da grande avenida, que intercepta a encruzilhada descrita, vem um automobilista jovem. Em seu plenos 23 anos, festejados há três semanas, goza de uma aparência física peculiar. A sua face está decorada de acne de grau três. Aos 19 anos, deu a sua batalha contra o acne por vencida. Passeou por vários consultórios de dermatologia, bem como, por vários dermatologistas. O último intento secreto da família é levar-lhe de férias para Singapura afim de experimentar uma nova técnica.

 

Os resultados publicados por uma instituição de pesquisa de dermatologia são incontestáveis. O nome do pesquisador foi recomendado para um dos mais conceituados prémios de pesquisa clínica. Há ainda uma esperança, no fundo do túnel, para a mãe agoniada com afiguração disforme do filho. Junta-se a isso, a sua altura de 1,94 cm, corcunda e escanifrado. Durante a escola primária passou despercebido entre os colegas. Sem embargo, aos catorze anos começou a distinguir deles pela altura e a corcunda. Aos 16 anos, iniciam as malezas da acne. No princípio apareceram alguns pontos negros, depois alguns pontos brancos. Na altura, a sua prima Mariamo, que ia sempre aos domingos almoçar com a família, não se cansava de dar conselhos. No primórdio, tentava espremer-lhe os pontos. Mais tarde, sugeriu usar saco de cebola… Depois, usar a pasta de dentes… A seguir, usar o carvão em pó… Posteriormente, usar mel, entre outras.

 

 A lista de tentativas era vasta. Numa das vezes, ousou presentear a sua roupa íntima inferior para esfregar nas zonas acometidas. Os seus bons desejos de prima preocupada eram reconhecidos. Mas, todos foram mal sucedidos. Na escola, o jovem era desajeitado para o desporto. Contudo, rapidamente encontrou o seu engenho. Era um génio no mundo da tecnologia e da informática. Conquistou amigos por ser imbatível em jogos de game. Navegava livremente no mundo virtual, onde era capaz de ter acesso gratuito aos produtos mais procurados, nos sites de pirataria digital. Com os seus 18 anos, já facturava quantias consideráveis com a prestação de serviços como freelancer. Mesmo com êxito, no pilar profissional, sentia-se profundamente descontente. A sua meta era mostrar-se imbatível para conquistar a atenção do pai. Este último, era um homem de negócios requisitado internacionalmente. Esquivava-se das suas responsabilidades paternais por múltiplas razões. Durante os raros diálogos que trocará com o filho, deixava sempre a mesma mensagem.

 

- “Miúdo, aprenda uma coisa! Todas as pessoas têm o seu preço. O que você deve aprender é a identificar quem elas são e quanto elas valem.”, dizia fitando directamente nos seus olhos. - “Com isso, saberá o quanto está disposto a pagar para que façam o que você quer.”, terminava o seu discurso solenemente.

 

Aos olhos do pai, aquele jovem era uma aberração. Não podia de forma alguma ser sangue do seu sangue. Nos momentos em que os ruídos da sua agitação profissional paravam, indagava-se, como ele um benquisto homem teria um representante indigno de chamar de filho. Ainda por cima, o primeiro herdeiro. Por sorte, o jovem era extremamente lúcido. Como regra familiar, decidiu inclui-lo nos negócios da família mas por insistência do que por iniciativa própria. O resultado foi prodigioso. As rendas da empresa aumentaram pelas condições inatas do jovem. Estava a compreender agora as flutuações da moeda internacional. Muitas vezes, fez alertas importantes que impediram de criar uma tragédia financeira para a empresa familiar. A experiência adquirida com advento da COVID-19, possibilitaram isolar o filho no mundo dos negócios através de encontros virtuais. Assim, podia utilizar o excelso de sua sagacidade, sem desferir o seu ego. O pai descobriu no filho, um excelente negociador. Mais ainda, estava sempre actualizado em muitos assuntos. Havia uma dose de inveja saudável quando o filho contrariava o pai em reuniões de alto nível. Todavia eram aceitáveis pelos seus desfechos sempre exitosos. Por outro lado, um mal vinha se instalando, com a entrada no mundo das substâncias psicotrópicas. A nova rede de amizade, o arrastaram para um mundo conhecido-desconhecido. Julgava que através dele podia se conectar com as pessoas que o cercavam.

 

Nos dois anos precedentes, ao evento que se aproxima, conheceu a Mônica numa festa de despedida de solteiros. A rapariga encenou um papel nada dignificante para a imagem das mulheres. Sendo única feminina, naquele evento, realizou o que lhe cabia no tempo esperado e ao montante  transacionado. As suas regras eram simples: banho, cheque, e o resto se apaga, no dia seguinte, com alguns copos de aguardente. Para o jovem, aquele encontro representou um marco na sua vida. No desflorar de sua ingenuidade ficou completamente apaixonado. Ou seja, assim o considerou, orientando-se com as suas pobres referências. Intimamente, estava ciente que nunca podia levar a Mônica para casa. Existiam muitos desafios na frente, como exemplo,  profissão, raça, religião, berço. Melhor dizendo, os valores e realidades eram dissonantes. Mesmo com esse contraste, arriscava-se a gastar quantias exorbitantes de dinheiro para ter alguns minutos da atenção, da Mônica, a vigarista.

 

Naquela hora da madrugada, muito agitado com o reencontro presencial, dirigia a 140 km/hora para ver-lha. Antes da jornada, entregou-se ao seu vício, para escamotear a timidez e mostrar que era homem, naquele encontro a dois. Ia atrasado devido a uma cerimônia fúnebre que tardou a desvincular-se. Uma série de mensagens foram enviadas para desculpar-se. Adicionalmente, endereça-lhe uma foto de dois presentes que levava consigo. Dentre eles, nada mais nada menos era o último iPhone lançado ao mercado. Esperava com isso, receber antecipadamente, um perdão pela demora.

 

No seu canto, a lua testemunhava toda a cena. Com um sorriso maroto, assobiou a um gato indeciso em continuar a sua exploração. O som do assobio, intima-o a terminar a sua exploração numa casa abandonada. Ao fim, sentou-se no muro, que o separava do passeio e a avenida, lambendo a cauda e parte do tronco com destreza. Subitamente, ao observar a lua, começou a miar em sotto voce, em andamento Lento. Dois minutos, mais tarde, ouviam-se as vozes de outros gatos, respondendo como um grupo coral, “Miau-Mi-Auuuu-Miau-Prr!”, em andamento Largo. Uma das residentes do prédio, ao lado da casa abandonada, no caminho de assossegar a sua bexiga importunada pela urina, desvia o percurso da casa de banho para a cozinha. Vai a correr buscar sal grosso. Com certa urgência, atira sal por todas as entradas da casa, sejam elas portas ou janelas. Depois de sentir-se aliviada, na casa de banho, fecha todas janelas e põe-se a rezar. Em posição de submissão, cresce-lhe um forte pressentimento, e roga:

 

- “Salve-nos, Senhor! Livre-nos, a nós, da adversidade!”, exclama com profunda incerteza de interferir no que quer, que se segue.

 

Cena 3

 Na avenida que faz cruzamento com a avenida da vêm um carro que funciona como táxi privado, que marcha 120 km/hora. O automobilista é tido como Sr. Jaime. Depois da aposentadoria precoce, numa instituição não governamental, tornou-se motorista privado. O novo emprego dava autonomia para gerir o seu próprio negócio. Tinha clientes fixos com regimes de viagens semanais dos seus domicílios aos postos de trabalho ou estabelecimentos específicos. A alma do seu negócio estava no bom cuidado do veículo e sua cortesia na comunicação. Sabia oferecer pronto conforto, respeito, privacidade, aos seus clientes. Só por isso recebia, largas gorjetas para além dos honorários planificados. A publicidade dos seus serviços era passada de cliente para cliente. Em conversação, com o seu irmão gémeo que às vezes o substituía, instruía:

 

- “Tomé, fale pouco! Pergunte somente o necessário para saber a localização do destino, se pretende ouvir alguma coisa e se está confortável. Se fizerem alguma pergunta, procure entender se conversa contigo, ou está diante de um solilóquio. Esses ricos, na maioria, querem ouvir apenas as suas vozes. Alguns são narcisistas. Outros, são vítimas deles mesmos… Não obstante, o mal é o mesmo. As suas almas estão tão carregadas, que qualquer um sem vencilhos, serve de confidente. Com eles, a estratégia é tornar o ouvido ábdito para evitar ataduras mórbidas.”

 

O Sr. Jaime era conhecido no seu bairro como um indivíduo cerimonioso, tradicionalista e um tanto misterioso. A imoralidade não fazia parte da sua conduta. Quem necessita-se de sua ajuda devia meditar sobre os seus objectivos antes de contactar-lhe. Caso contrário, receberia uma aula sobre o significado do tempo. Num desses dias, um velho arengueiro do bairro, aflito por não ter ninguém com quem compartilhar às últimas notícias, arriscou-se a confidenciar sobre o aborto da filha da Sra. Joaquina. Em resposta, em uma das línguas nativas do país, ouviu:

 

- “O Vovó Pedro, sabe quantos dias faltam para que a sua respiração lhe abandone?”, pergunta calmamente aproximando-se do velho, que o observa com espanto.

 

Com uma das mãos no ombro do seu interlocutor, continua:

 

 – “Eu, também, não sei quanto tempo me falta a mim. Não devaneia que seria prudente usar esse tempo para organizar a sua herança e evitar discórdia entre os seus?”, provoca-o ciente de espernear a mediocridade naquele arcabouço de ideias.

 

Indignado o velho reage, retirando a mão do seu ombro, e afirma em leal baixaria das pessoas mal ocupadas:

 

- “Ah! Só porque trrabalhas com brrancos, pensas que és o mais-mais? Êh? Tsc-tsc-tsc…”, respondia a fungar, completamente exaltado. - “Seu prreto desgraçado! Eu te vi a nascer. Sabes disso? Podias ser meu filho. Sabes disso? Só não comi a tua mãe porrque ela é salgada, feia e gorda. Sabes disso? Agora queres me matarr! Neh? Vou queixarr ao mano Titos.”, rezingava afastando-se do Sr. Jaime.

 

Aquele evento não era o primeiro incidente. O Sr. Jaime sabia que o velho era um adolescente que nunca conseguira transitar a fase adulta. Livrar-se de um diálogo com ele era salutar. Estava feliz porque nos próximos três a seis meses não teria que trocar palavras com o velho. Tratava-se de uma indivíduo da pior estirpe. Um aliciador de crianças para ronceirismo. Na sua casa, vendia bebidas alcoólicas de 24/24 horas. De sexta-feira à domingo, os vizinhos eram apoquentados com música estrondosa, algazarra, e toda sorte de bizarrice. Sendo uma pessoa influente, as queixas contra o seu comportamento libertino, sempre foram por água abaixo. Todavia, o velho sabia que qualquer melúria contra o Sr. Jaime seria uma tarefa perdida. O mesmo estaria na verdade a expor-se. Por outra, estaria a levantar questionamentos sobre si. O comportamento exemplar do Sr. Jaime era uma testemunho incontestável de sua moralidade.

 

            Naquela madrugada, a casa do Sr. Jaime foi urgentemente visitada por um dos membros da família Sítone. A filha Carolina foi a correr a sua casa, depois de ter realizado duas chamadas sem sucesso. Em pânico, bate a porta da casa do Sr. Jaime e grita:

 

- “Tio Jaime, estou a pedir nos atender.  Tio Jaime!”, exclama profundamente alarmada com o plano B. Enquanto isso, intercala a batida na porta, janela, gritando o seu nome.

 

Naquele final de semana, o Sr. Jaime estava de folga. Na noite anterior, havia rumado com a família para sua quinta. Quem ficava responsável por atender o negócio era o Sr. Tomé. Ao contrário do seu irmão gémeo, o Sr. Tomé era um indivíduo rude e quase sempre mal-humorado. Sendo gémeos homozigóticos, era simples diferencia-los pela cicatriz no queixo do Sr. Tomé. Além disso, o nível de brutalidade era abismal. Praticava fisiculturismo agravando, ainda mais, a sua expressão agressiva. O lar era muito conturbado na sequência da violência doméstica exercida sobre a esposa e os filhos.  Nas duas semanas pregressas, uma reunião familiar impeliu a distanciar-se deles por causa da repercussão psicológica. Uma visita não avisada protegeu a esposa de uma asfixia por uma esganadura. Muita discussão decorria pela queixa retirada na esquadra contra o esposo. Iam-se 7 anos de ciclos de contendas violentas com separações e retornos.

 

Passados 3 minutos, a porta da dependência traseira da casa do Sr. Jaime, abriu-se. Primeiro saiu um filhote de cão da raça Jack Russell Terrier, a correr animado por estar solto, soltando um latidos amistosos. Simultaneamente, tinham saindo de casa alguns vizinhos curiosos com o som que vinha de fora. Em passos decididos, atrás do seu mascote, vinha o Sr. Tomé furioso com a barulheira:

 

- “Ei, chega! Vão nos arrombar a casa, pá!”, determina com tom incisivo. Enquanto aproxima-se da fonte do ruído, agacha-se para resguardar no colo o filhote de cão fazendo carinho, no tronco e ajeitando a coleira.

 

Ao avistar a Carolina, magicou que algo grave devia ter acontecido. Aquela menina não tinha o perfil de estar fora de casa aquela hora e naqueles trajes privados. Malgrado, sentia-se enfadado por lhe ter interrompido o ócio. Em algumas horas, tinha que ir buscar dois estrangeiros ao aeroporto, seguindo-se um passeio com um casal de turistas pelos pontos icónicos da cidade e por fim, conduzir um casal de idosos, à missa vespertina. Observando a vizinhança; mesclada entre curiosos, preocupados e mexeriqueiros; que se aproxima do quintal, tenta disfarçar o seu desinteresse, comunicando-se com elegância:

 

- “Como posso dispor os meus serviços?”, averigua fingido prestação, resultado do treino na comunicação com os clientes. Em resposta, Carolina toda desesperada e libertando o pranto recentemente reprimido, soluça entre a palavras:

 

- “Eu… Eu… Eu!”, não consegue completar a frase dada a agitação.

 

Ao mesmo tempo escorrem-lhe lágrimas e muco pelo nariz. A demora em pronunciar-se começa a inervar o Sr. Tomé que achasse perdendo tempo. Captando a irritação diluída no ar, uma senhora de idade muito terna, abeira-se a Carolina. Com discrição, reproduz a questão com o tom matriarcal mas agora na língua local:

 

- “Minha filha!”, observa-a afagando as costas. Com delicadeza, retira-lhe as secreções na face usando porção da capulana que traja, e prossegue, “O que te aconteceu Carolina?”. Por um lado, a voz afectuosa tranquiliza temporariamente a Carolina. Por outro lado, a pergunta aguça aos bisbilhoteiros a erguerem os pescoços, como girafas; as orelhas, como um Jerboa-de-orelha-longa e aos olhos, causam uma quase exoftalmia, para registar tudo ao pormenor, no âmbito da reportagem que farão aos vizinhos dorminhocos. Reflectindo no tempo que lhe fugia, a Carolina esclarece:

 

- “Eu ia a casa de banho, quando vi papá, no chão. Estava no chão…”,  interrompe o discurso pensativa.  Ao absorver um imediato trago de ar frio, acrescenta, “O lado esquerdo do corpo secou, a boca virou, e não está a falar”.

 

            Ao proferir estas palavras, recorda-se em voz alta que tinha que trocar as fraldas do bebé. A Senhora de idade, muito envolvida com a situação, assume o comando vigorosamente. Ordena ao Sr. Tomé e aos dois vizinhos de meia idade, para acompanhar a Carolina. Sem contestar, o Sr. Tomé adentra-se na dependência deixando o seu mascote. Ao agasalhar-se, por instinto, endereça uma série de mensagens para um primo atender aos clientes do dia. Leva as chaves do carro, toda documentação necessária e tranca a dependência. Instalado no carro, convida a Carolina e aos dois vizinhos solícitos a acompanhar-lho. Todos despediram-se da senhora de idade e dos outros vizinhos que os testemunhavam partir. Nos 5 minutos posteriores, a Carolina, partilhou que o dia tinha corrido bem com o pai. Quando ela regressará a casa às 19h, o mesmo já havia preparado o jantar e dado de comer ao seu neto de 8 meses. Após o banho, em diálogo durante o jantar, o pai informou que tinha concluído as peças de carpintaria que os clientes iam buscar, no dia seguinte às 9h. Assistiram o telejornal das 20h. Esse era um momento que aproveitavam para estar juntos desde a sua viuvez há 15 anos. Encontrando-se os quatros irmãos, nos seus lares, sentia a responsabilidade de cuidar do pai.  A cerca de dois anos, o seu namorado agora noivo, fez-lhe o Lobolo planificando o matrimónio para o ano seguinte.

 

            Nas suas projecções, a Carolina não acolhia bem o casamento. Para ela, implicaria mudar de casa, de bairro, de província e quiçá do país. O seu noivo, eminente funcionário num empresa multinacional de exploração de recursos naturais, trabalhava na outra extremidade do país. Fazia-lhe pressão para viverem juntos e acompanhar o desenvolvimento do filho deles. Em justa fuga, a Carolina, explicava com certa dose de chantagem:

 

- “Papá tem problemas de tensão. Quem lhe vai acompanhar para consulta e controlar o tratamento? Esqueceste que o doutor disse para tomarmos conta dele. Hmm!? Se acontecer alguma coisa quem vai ajudar? Queres que eu o abandone?”

 

As alegações da Carolina eram muito fortes para serem rebatidas. O noivo foi duas vezes arrastado as consultas de cardiologia. Uma vez foi para acompanha-la e outra vez em substituição. Noutras vezes, voluntariou-se devido a indisponibilidade pelos trabalhos em turnos, numa rede de telefonia móvel. Ambos tinham apanhado um susto, quando o Sr. Sítone estive internado por um quadro de hipertensão arterial severa. A rotina familiar acabou mudando para todos. Reduziram o sal na confecção alimentar, a ingestão de alimentos gordurosos, abandonaram os temperos artificiais, praticavam exercício físico regularmente. O grande mal a ser eliminado era o alcoolismo. Uma psiquiatra austera conseguiu reinserir o pai novamente na vida social. O trabalho se tornara um refúgio da solidão após a morte de sua esposa. Não podia se dizer, de todo, que o vício estava ultrapassado todavia controlado.

 

Durante a semana, conseguia ludibriar o vício sepultando-se no trabalho. Porém, aos fins de semana passava as tardes, na casa do velho Pedro, para olvidar o luto que ainda lhe pesava sobremaneira. O local era uma tentação pela exposição ao álcool. Dizia que bebia moderadamente. O seu principal divertimento era jogar Ntxuva (xadrez africano) com os demais vizinhos. Na maioria da vezes perdia. Entretanto, não se importava. O importante era o entretenimento. As esposas daqueles homens havia imposto, como condições, que os jogos não envolvessem apostas. Já alguns anos, uma família fora despejada da casa por causa delas. Muitos infelizes aprenderam pela má via o preço das irreflexões.

 

Chegado a casa dos Sítones, todos acudiram o homem dispondo-o na cadeira traseira do carro. Por ventura, o bebé da Carolina desfrutava um sono profundo, alheio aos acontecimentos do domicílio. Ao espreitar-lho no berço, assossegou-se pelas fácies angelicais que contemplava. Findo os preparativos para saída, carregou o bebé e sentaram-se no assento lateral ao motorista. Um dos vizinhos, ficou no bairro para permitir conforto da viagem aos passageiros traseiros.

 

Infligindo as regras, lá ia o Sr. Tomé, tranquilizado pela pouca movimentação. Conduzia a alta velocidade para levar a pronto socorro o Sr. Sítone. O mesmo tinha mais afinidades com o seu irmão Jaime do que ele. A um quarto de distância do Hospital, o bebé acordou chorando aos berros. Aquele som estridente empurrava o Sr. Tomé para fora da bolha do fingimento. Inspirava profundamente para se controlar. A mãe sentindo os nervos por um fio, deu-lhe de mamar cantando baixinho melancolicamente, uma música para ninar. A música era mas para ele do que para o bebé.

 

Cena 4

A cerca de três quarteirões do Hospital, o nível de consciência do Sr. Sítone decresce para uma estado de imobilidade completa do corpo. O vizinho que o tinha com a cabeça no colo, aflito sussurra pelo nome, dando palmadas gentis na face e movimentando o tronco:

 

- “Tio Sítone, tio Sítone!”, aterrorizado afasta-se do corpo desajeitadamente, gritando por socorro abraçando o motorista.

 

A filha na frente junta-se aos gritos pelo pai, voltando a acordar o seu filho, que se põe novamente aos berros. Descontrolado, o Sr. Tomé ameaça:

 

- “Larga-me, seu estúpido”, ordena removendo rispidamente as mãos que lhe envolvem.  Com os olhos fixos na estrada, declara “Fechem a boca ou vos atiro a todos da janela!”. O seu carácter explosivo era sobejamente conhecido pelos passageiros, excepto o bebé que continuava pranteando. Furioso intimida mãe, dizendo:

 

- “Se esse, bebé não terminar o circo rebento-vos agora.

 

A Carolina num impulso cobre a boca do bebé com a mão, embalando-o com o tronco e braço contralateral. O Sr. Tomé completamente decidido a desfazer-se deles na entrada do Hospital, afunda o pé no acelerador, coloca o carro em sinal de emergência e vai buzinado em intervalos regulares. Cinco minutos depois, entra numa das grande avenidas da segunda cena.

 

Uma peona, funcionária num restaurante próximo a avenida, regressa a casa sozinha. O destino é a paragem de transporte semicolectivos. Na manhã do dia anterior, chamaram-na para fechar o lugar de uma colega recentemente expulsa por furto. Aquele extra vinha de bom grado para cobrir algumas contas que tinha a pagar. Infelizmente, naquele turno ninguém dormia no restaurante a espera do amanhecer  e todos iam embora em vias opostas a dela.

 

Analisava como o trabalho foi dinâmico. Aquele grupo de colegas era mais colaborador que os do seu turno fixo! Para variar, a casa esteve cheia, conseguiram uma generosa gorjeta dos clientes cuja repartição foi equitativa. Aquela seria um excelente altura para solicitar a permuta.  Agora na rua, magicava como pediria ao patrão para ficar até amanhecer para não regressar sozinha, nas próximas ocasiões. Enrolada em três capulanas  para reduzir a corrente de frio, caminhava pela estrada mal iluminada, para evitar o passeio escuro. Não se via nenhum guarda na avenida. Ouviam-se em alguns edifícios, uns sons abafados de algumas rádios ligadas, sem embargo, não reduziam a sensação de insegurança. Era a primeira vez, que regressava sem companhia naquela hora.

 

Quando se dava por sozinha, ouve de longe uns passos apressados ao seu encalce. Sem olhar para atrás, começou a acelerar o passo, quando de longe escuta:

 

-“Cremosa, queres que eu te acompanhe?”, uma voz masculina atrevida, autoconvoca-se a estar junta dela. Quando os sons dos passos outrora distantes, aparentam estar próximos, a jovem poem-se a correr. Em retorno, a reacção de evasão, a voz diz:

 

-“Sucá! Quando eu te apanhar vais ver, sua ranhosa desqualificada!

 

O semáforo em alucinações, ao ver o sinal de pisca-pisca contínuo do carro que aproxima pensa “Bem me quer ou mal me quer?”. Espera ver assim, uma luz verde ou vermelha, contudo a cor é a mesma. Em provocação, diz aos colegas:

 

- “Quem é mais velho aqui só eu. Acabou a anarquia! Todo mundo com cor verde!

 

Os outros semáforos sem participarem na tomada de decisão trocaram o sinal que tinham para verde.  Temiam o lunático que, em momentos de crises, assumia a liderança deixando tudo desordenado. A sensata preocupada tentava comunicar-se com outros para ao menos ficarem desligados. Os gatos miavam interpretando L’ORFEO de Claúdio Monteverdi, ao passo que um rato tenta atravessar de um lado da estrada para outro. Uma crise de desejo cresceu, no gato posicionado no muro. Depois de calcular o golpe, saltou para o passeio em direcção a rato.

 

A  jovem do outro lado da avenida, meteu-se no meio da estrada, assim que ouviu a buzina do carro que vinha em sua direcção. Em sua mente, pensou “Mil vezes morrer atropelada do que nas mãos desse abutre.” O Sr. Tomé ao desviar-se da alienada que quase atropelava, para de buzinar para recobrar o fôlego. Do outro lado da avenida da cena 2, vem o jovem que com os efeitos das doses ingeridas sente-se impelido a atropelar o gato que irrompe a estrada. O sinal está verde e pode acelerar ainda mais. Em fracção de segundos dois carros, embatem-se capotando, sem ficar nenhum sobrevivente excepto o bebé.

 

A jovem que era perseguida alegra-se por sua estranha sorte. Hoje teria sido o fim. Mantendo a sua corrida, ouve um gato a miar junto a um bebé ileso que chora. Depois de olhar para os lados, espanta-lhe a ausência do indivíduo que a perseguia. Sentindo que foi abençoada pega no bebé e vai para casa, guardando as reflexões para o desabrochar do dia. A lua crescente observa, vigilante, reconhecendo culpados e vítimas. Uma incomum regulação da sincronia dos semáforos marca-se, sem deixar sinais de alguma vez ter havido problemas. O gato mia insatisfeito por se achar manipulado. Perdeu a sua refeição, se não fosse o salto repentino dado, a esquivar um possível atropelamento. Ao concluir a observação: dos destroços; dos corpos sem vida espalhados no chão e outros retidos no carro; do vulto da mulher que se aparta com uma criança no colo; do semblante de um covarde que assiste os eventos escondido detrás de uma árvore, forte para as acções predatórias e fraco para as nobres; começa agora um peculiar miar semelhante ao choro! Todos os gatos circunscritos a zona miam de volta, acompanhando as nuances. Escutam-se vários timbres vocais. Em adição, a maioria dos cães da área ladram melancolicamente, em uníssimos com os gatos, em cortejo as almas que abandonam o plano físico. Os sensitivos que despertam com o som, lançam pragas aos gatos e cães com medo do que lhes possa acontecer. Vão rapidamente examinar nos quartos os seus entes. A seguir, leem as mensagens nos telemóveis, abrem os correios electrónicos, averiguam as diferentes estações noticiosas nacionais, em busca da fonte de inquietação. O mau agouro pesa-lhes sem perceber a origem. A senhora que a pouco rezava decide recolher-se nos seus aposentos. No seu pensamento expressa, “O que é mau não tarda a revelar-se! Até a pouco, fiz tudo correctamente. O que virá na sua hora se resolverá”.

terça-feira, 27 junho 2023 07:40

Olá Paz

MoisesMabundaNova3333

(Ao Reverendo Dom Dinis Sengulane)

 

Poucos anos após o restabelecimento da paz em Moçambique, na sequência do Acordo Geral de Paz assinado na capital italiana Roma, a 4 de Outubro de 1992, o Reverendo Dom Dinis Sengulane, então Bispo da Diocese dos Libombos, brindou o mundo com a sua incrível imaginação. Em variadíssimas sessões, encontros ecuménicos, reuniões diversas, pedia a todos os participantes para pronunciarem sorridentemente a expressão Olá Paz! Tipo uma confissão de verdadeiro comprometimento, engajamento, entrega desinteressada; ou aquela circunstância em que um homem quando tenta conquistar uma mulher de quem sente uma grande paixão! E todo o mundo pronunciava Olá Paz, com toda a solenidade, sinceridade e do fundo do seu coração, como uma espécie de confissão de amor que se sentia pela paz, ou uma tentativa de atraí-la, conquistá-la e amá-la! Lembro-me de, na sequência, o Presidente Chissano ter comentado agradavelmente e sobretudo agradecido a criatividade de Dom Dinis Sengulane. O país deve muito a este homem!

 

E a expressão Ola Paz entrou para o vocabulário político e social nacional. No início, com mais ímpeto, maior frequência, depois com menos e, hoje, quase ninguém se lembra dela. Mas, certo é que ao longo deste tempo todo andamos a tentar conquistar a paz, a tentar amá-la e a tentar conservá-la. Ao que tudo indica, sem o conseguir, pois, de tempo em tempo, as matanças e os impedimentos de circulação prosseguiam. Depois de Roma, houve mais acordos, uns quatro outros no total, com nomes rebuscados.

 

Só que, como diz um ditado xangana, ‘swilo swa ku kala swinga heli swa lhola’, em português: não há nada, mesmo um mal, que perdure para todo o sempre! Conseguimos encontrá-la lá nas matas de Gorongosa e, sexta-feira 16 de Junho, ao invés de assinalarmos o massacre de Mueda, ou o dia do nosso Metical, encerramos a última base e recolhemos a última arma da Renamo, ao que se seguiram belíssimos discursos de ocasião. Intervenções confluentes na imperiosidade da necessidade de conservar a paz conseguida. Todo o moçambicano com acesso aos media e disponível viu aquela cena a partir de Gorongosa. O mundo viu e aplaudiu. Até hoje, as congratulações brotam de todos os quatro cantos do mundo. Parabéns a Moçambique e aos moçambicanos, parece que, finalmente, encontraram a paz! Olá Paz!

 

Só que, com muito espanto e lamentação, há moçambicanos que entendem que alguém ganhou a guerra contra outrem. Definitivamente, estou com dúvidas se vamos conseguir manter a paz que almejamos, ou auguramos, como gosta de dizer ultimamente o chefe do Estado. Se tivesse havido um vencedor, ter-se-ia imposto: um vencedor não é apresentado, impõe-se!

 

Estamos todos tão empolgados e emocionados que até nos esquecemos de certas aporias. Esquecemo-nos que aquela arma que Ossufo Momade entregou a Filipe Nyusi, que demonstrou não ser expert na matéria, não foi parar onde estava, nas matas de Gorongosa, por si só: ela não tem pernas, não anda, não se compra a si próprio, não dispara sozinha, ela não mata sozinha. Esquecemos que é uma mente humana que dela se serve/serviu: que a foi comprar onde a comprou, levou-a para onde a levou, fê-la disparar onde e quando bem lhe apeteceu; e fê-la tirar a vida a quem entendeu, ou destruiu os bens que entendeu destruir. Em palavras mais precisas, dela se serviu para a consecução de um determinado propósito!

 

Mais importante ainda, esquecemo-nos de que a luta não se faz somente de material bélico nas mãos. Mahatma Ghandi fez escola no mundo. ANC fez escola no mundo. Marchas, manifestações, absentismo, greves, paralisações… são também modalidades de luta. Portanto, o facto de a Renamo ter entregue as últimas armas não pode ser tido e entendido como, ipsis verbis, que ela abdicou de lutar pelos objectivos por que se tem batido desde… 1977! Que ficou reduzido a zero! Nada.

 

A par de jubilarmos, interessa agora decifrar o propósito que levou a que aquela arma fosse adquirida onde foi adquirida, trazida e usada para matar compatriotas. Uma oportunidade soberba de, com muita solenidade, seriedade e sinceridade, esmiuçarmos as razões que nos leva(ra)m a diferenças que conduziram a matanças, destruições e retrocessos no nosso desenvolvimento.

 

Todos os discursos apontaram para a necessidade de reconciliação e reunificação da família moçambicana. Há que traduzir estes conceitos em acções concretas. Falaram da necessidade de inclusão, de democracia genuína, de liberdades de facto, de boa governação, séria; pois, é chegado agora o momento de se decifrar o conteúdo de inclusão e implementar no concreto. Se não formos capazes de tudo isto e persistirmos na exclusão ou rejeição ao outro, a cercearmos as liberdades, a trapacearmos a democracia que escolhemos, continuarmos a praticar nepotismos, a patrocinar a corrupção, não terá valido nada todo o esforço despendido para chegarmos à paz. Voltaremos à estaca zero, àqueles ou outros bang-bangs!

 

E convém dizer uma coisa: nós não chegamos à paz! Chegamos, sim, a entendimentos sobre a paz. Como alguém disse e bem, a paz não é algo consumado, tangível; é, sim, um processo, um estado que precisa de muito cuidado e rigor na observância, conservação e manutenção das suas premissas. Como um jardim. A paz advirá dos actos que doravante formos a praticar. O que conseguimos é um momento em que dizemos: “ok, vamos recomeçar”! Tudo dependerá do que todos os moçambicanos forem a fazer daqui em diante, sobretudo aqueles que dirigem, decidem e orientam.

 

Olá Paz!

 

ME Mabunda

O aniversário da independência é um apelo para reflectirmos profundamente sobre o legado de luta que herdámos. A independência conquistada há 48 anos não pode ser vista como uma conquista definitiva: ela foi apenas o começo de uma caminhada incessante em busca de uma verdadeira emancipação. Ainda há muitas e árduas batalhas a serem travadas em prol de uma sociedade mais justa, igualitária e livre.


Não podemos satisfazer-nos com as conquistas passadas e permitir que as adversidades actuais nos acorrentem. Não podemos permitir-nos cair na complacência ou na apatia, nem permitir que as amarras invisíveis do conformismo nos aprisionem.

A corrupção, a desigualdade social, a pobreza e as divisões étnicas ainda assolam o nosso país. Por outro lado, o mundo em que vivemos é um terreno fértil para novas formas de opressão, um campo minado onde os poderes dominantes podem florescer.

Moçambique enfrenta desafios que permeiam a trama das nossas vidas. Precisamos de permanecer vigilantes, despertos e dispostos a enfrentar as complexidades contemporâneas que desafiam a nossa liberdade. Não podemos dar-nos ao luxo de ceder às circunstâncias adversas ou de nos resignarmos.

Não podemos acomodar-nos, não podemos permitir que o desalento nos encontre.

Abdicar de Moçambique seria trair a nossa história, hipotecar o nosso presente e futuro, negar a nossa própria existência. Renunciar a Moçambique seria entregar o destino nas mãos daqueles que não compartilham dos nossos ideais, que não compreendem a urgência de uma nação livre e justa. Abdicar significaria entregar o destino do nosso povo àqueles que não têm interesse em promover o bem-estar de todos os moçambicanos. Seria permitir que a corrupção e a desigualdade se aprofundassem, que os mais vulneráveis fossem esquecidos e as vozes dos mais fracos silenciadas.

Abdicar de Moçambique significaria negar o futuro das próximas gerações, privar os nossos filhos e netos de um país com oportunidades, educação de qualidade, serviços de saúde acessíveis e uma sociedade justa. Abdicar seria um acto egoísta e irresponsável, condenando-os a um legado de desigualdades e limitações. Abdicar seria permitir que interesses externos se apropriassem das nossas riquezas em detrimento do nosso povo e do futuro das próximas gerações.

Abdicar seria sucumbir diante das adversidades, permitindo que a desesperança tomasse conta dos nossos corações. Abdicar seria rendermo-nos ao comodismo, à resignação diante dos desafios que enfrentamos. Significaria entregar as nossas aspirações, os nossos direitos e a nossa dignidade nas mãos daqueles que não têm empatia ou compromisso com o bem-estar do nosso povo.

Desistir seria permitir que as nossas riquezas fossem exploradas de forma predatória, beneficiando apenas alguns em detrimento da maioria. Seria uma traição aos nossos valores de equidade e sustentabilidade. Abdicar significaria permitir que interesses estrangeiros determinassem o nosso futuro, explorando os nossos recursos sem consideração dos impactos sociais e ambientais. Abdicar seria negar a responsabilidade que temos, como cidadãos, de moldar o destino da nossa nação e ser agentes activos de transformação, engajados na construção de uma sociedade mais justa, onde os direitos sejam respeitados e a voz de todos ouvida. Desistir seria trair o nosso passado de luta e comprometer o futuro das próximas gerações.

A abdicação representaria um retrocesso histórico, um triste episódio em que abriríamos mão do progresso conquistado com tanto esforço. Seria entregar a nossa soberania a forças estrangeiras, ao retorno do colonialismo.

Não temos o direito de abdicar de Moçambique. Pelo contrário, é nosso dever incontornável perseverar, resistir e trabalhar incansavelmente pela construção de um país melhor.

Moçambique merece mais do que o silêncio cúmplice diante das injustiças. Merece que vozes corajosas ecoem nas esferas do poder, exigindo mudanças reais, lutando pela igualdade e pelo progresso de todos os moçambicanos. 

A independência não é uma conquista final, mas um compromisso contínuo que exige vigilância constante.A independência que conquistámos é um legado que deve ser protegido e fortalecido a cada geração que surge. A luta pela liberdade e independência é um processo que requer a nossa persistência e engajamento constantes.

Cada um de nós tem a responsabilidade de ser o guardião da nação e de lutar pelos direitos e liberdades de todos os moçambicanos.O dia do aniversário da independência deveria servir para reafirmarmos o nosso compromisso de seguir em frente, juntos, como um povo determinado a moldar o nosso próprio destino; compromisso de jamais abdicarmos de Moçambique, não importa quão desafiadoras sejam as circunstâncias.O tempo é implacável e a nossa janela de oportunidades se estreita a cada dia.Mas não podemos, em hipótese alguma, desistir de Moçambique.

*Filósofo. Reitor da Universidade Técnica de Moçambique

sábado, 24 junho 2023 08:11

As pontas do iceberg

Ainda na ressaca da celebração dos 60 anos do ensino superior em Moçambique – que foi uma soberba oportunidade para radiografarmos os descaminhos e os caminhos, sobre os quais assentaram as trajectórias do nosso, ainda, incipiente e descaracterizado ensino superior – revisitamos, igualmente, o ethos universitário, os caminhos do seu futuro e o papel do Estado, pedra angular do sistema de educação em Moçambique, considerando a força e tendências neoliberais (de privatização, mercantilização, cortes orçamentais e redução do financiamento público, dentre outras) que tentam, amiúde, aproveitar as crises institucionais e de identidade, do nosso ensino, para o tornar irrelevante e desnecessário.

 

A nova visão do ensino superior para 2030, advogada pela UNESCO e, por arrasto, por todas as instituições de Bretton Woods, do qual somos signatários cegos, e seguimos, de forma tão obediente, todas as cartilhas, defende que, neste mundo em profundas transformações e transição digital, no que Yuval Noah Harari (2023) designa por “mundo dos algoritmos”, as instituições de ensino superior apenas sobreviverão para as pesquisas em inteligência artificial, big data, robótica, e a internet das coisas.

 

Ainda condoídos pela lastimável partida de Pierre Bourdieu, já na eternidade, mas sem nunca abandonar o mundo, fica a recusa tácita de que o ensino superior deixará de ser relevante, pois, qualquer que seja a transição tecnológica, terá que assentar em princípios humanistas e sociais.

 

O mundo não é feito de robôs, mas de emoções, sentimentos, sonhos e ambições. Em suma, seres humanos. Portanto, não são os jovens que se distanciam do ensino, e do ensino superior em particular, mas, são os próprios Estados que cedem terreno às pressões do FMI e do Banco Mundial e às teorias draconianas de desinvestimento nos sectores da educação, saúde pública, cultura e demais áreas sociais. Não nos esquecemos da célebre nota oferecida pelo Banco Mundial, numa reunião com dirigentes do ensino superior, em Harare, no ano de 1986, onde afirmara que o ensino superior em África era um luxo, sugerindo que as instituições do ensino superior em África deviam ser fechadas e os seus estudantes enviados à Europa para formação!

 

Desde o advento da independência, em Moçambique, em 1975, e considerando até todas as aporias e vicissitudes que tipificaram este período, Moçambique dedicou o melhor do talento e esforço económico aos diferentes subsectores da educação. As políticas da época, sobretudo, convergiam na diversificação de oportunidades com o apoio do mundo ocidental, oriental e dos países não-alinhados.

 

Não foi por mero acidente de percurso que os moçambicanos beberam das experiências dos Estados Unidos, das academias da França, Alemanha e Suíça, das escolas superiores de Moscovo, Hungria, Cuba e Bulgária, das conceituadas universidades da Suécia, Reino Unido, Portugal, e até das universidades solidárias do Brasil, da Argentina, da Austrália e, mais recentemente, do Japão, da China e da Coreia do Sul.

 

Este conhecimento permitiu que o ensino superior público estruturante tivesse corporizado as principais necessidades económicas do país e do seu desenvolvimento, minimizado os desequilíbrios regionais e, sobretudo, criado um modelo de ensino. Um ensino que busca identidade, relevância e ethos.

 

Ainda temos presente como, nos últimos 30 anos, o desinvestimento feito nas escolas primárias públicas conduziu à mercantilização do próprio ensino primário, ditando a subsequente morte da qualidade desse ensino público. As escolas privadas cresceram à custa dos professores das escolas públicas, que abocanharam os gestores e, até, alguns espaços físicos que anteriormente serviram ao Estado.

 

Há cerca de 20 anos, assistimos, impávidos e serenos, à criação de escolas secundárias privadas, por vezes, até associadas ao ensino superior, que causaram a mesma erosão junto das escolas do Estado. O fenómeno se repetiu com o aliciamento aos principais gestores e docentes, e, em muitos casos, ao material pedagógico, como livros e outros, que outrora pertenceram ao sector público.

 

Se tivéssemos que elaborar um ranking das principais escolas no país, notaríamos que as escolas primárias e secundárias privadas se encontram há anos-luz das escolas públicas. Esta, infelizmente, tem sido a tendência que se verifica em outros Estados de natureza neoliberal ou que aspiram a esse estatuto. Todavia, em qualquer um desses países, o que sucede é que os estudantes vão para as escolas privadas almejando um lugar nas universidades públicas. Têm a consciência de que os melhores professores, os melhores laboratórios e as melhores pesquisas continuam sob a responsabilidade do Estado.

 

Ao revisitarmos a lei no.8/2021 – a Lei do Sistema de Segurança Social Obrigatória dos Funcionários e Agentes do Estado, que estabelece uma reforma compulsiva para os funcionários públicos com mais de 60 anos – assistimos, de alguma forma, o mesmo filme bem conhecido que se repetiu com o ensino primário e secundário. Com efeito, esta saída de professores, programada, porém, compulsiva, englobando, grosso modo, 450 docentes e investigadores de todas as instituições públicas de ensino superior, sugere um desinvestimento intelectual, financeiro e moral cujas consequências serão imprevisíveis.

 

De algo podemos ter a certeza. As instituições privadas, que até representam já quase o dobro das instituições públicas, são as grandes beneficiárias de todo o investimento feito na formação de capital humano pelo Estado, à custa de muitos sacrifícios e de uma visão de futuro por parte de todos os sucessivos governos deste país.

 

Nem a indicação de que estes docentes e intelectuais, ora em desligamento, podem ser substituídos, servirá de solução perante a derrocada eminente do ensino superior, pois, não se substitui a experiência e, muito menos, a maturidade. Para se atingirem os níveis mais altos da carreira docente são necessários alguns decénios. Os processos de substituição vão exigir alguma serenidade, acompanhamento, rigor e um sistema de promoções mais célere. Mesmo assim, o argumento de racionalidade financeira, de modo a promover eficiência na contenção da despesa pública é questionável, uma vez que, indirectamente, os reformados continuarão a receber as suas pensões (de fundo diferente, mas ainda assim!) e os seus “substitutos”, os vigorosos graduados da geração da viragem, tornarão ainda mais pesada a despesa pública.

 

As apostas do Estado moçambicano, ao longo dos seus 48 anos de independência, podem até não ter surtido os melhores efeitos para todo o sector da educação, mas garantiram a funcionalidade do sector público, do empresariado nacional e, sobretudo, da estabilidade das instituições.

 

Não questionamos o mérito ou o demérito das dezenas das instituições de ensino superior que foram criadas, e o local onde elas funcionam ou foram instaladas. Uma forma de conferir robustez a estas instituições foi a criação do Conselho Nacional de Avaliação de Qualidade (CNAQ), celebrando agora 15 anos, que estabeleceu os princípios e normas que regem as instituições de ensino superior. Paradoxalmente, o CNAQ tem princípios que podem até comprometer as instituições do próprio Estado, uma vez que com a aposentação destes professores, elas deixarão de ter as exigências mínimas para suportar os seus cursos de pós-graduação.

 

Existe uma expectativa de que as duas mais antigas instituições de ensino superior de Moçambique – a UEM e a UPM – se transformem em instituições de pesquisa e de pós-graduação. Esta é a recomendação dos seus planos estratégicos para os próximos anos. A erosão de capital humano de que deverão sofrer voltará a transformar essas instituições em apenas locais de ensino, e nunca de pesquisa ou de extensão universitária. Este poderá ser o desmoronamento de um sonho de colocar o ensino moçambicano com a relevância que o mundo globalizado exige. Temos já muitos exemplos de estudantes do sector público que brilham em diferentes academias do mundo. Deveríamos ter o dobro ou o triplo destes talentos. Porém, estes desideratos poderão sofrer um sério abalo e poderemos inclusivamente não colocar à disposição do Estado as ferramentas teóricas e conceptuais sobre as quais deveria assentar o nosso desenvolvimento social, cultural, tecnológico e industrial.

 

Estejamos claros sobre o que significará, nos actuais moldes, a reforma obrigatória de docentes universitários. Por um lado, perder-se-á imenso em capital humano, experiência e conhecimento epistemológico, uma vez que os professores visados possuem ímpares qualificações e competências em áreas de especialização, e a sua saída afectará, irreversivelmente, a qualidade do ensino universitário. A sua saída repentina poderá, igualmente, ameaçar a continuidade dos cursos e programas académicos de pós-graduação sob sua responsabilidade ou monitoria. Adicionalmente, as universidades ficarão, repentinamente, com escassez de especialistas em determinadas áreas, muitas delas sensíveis aos desafios de desenvolvimento nacional.

 

Mais grave ainda, a saída compulsiva de docentes poderá impactar, grandemente, a produção científica nas universidades onde vinham prestando serviço, afectando seriamente a sua reputação e relevância. Aliás, um efeito imediato desta medida vai ser exactamente esta: a perda imediata dos lugares nos rankings africanos e globais do ensino superior. Contudo, como dito antes, o ensino privado continuará a ser o maior beneficiário desta medida, pois estes quadros, no auge da sua produção científica, juntar-se-ão à projectos já estabelecidos ou criando novos, formando assim verdadeiros conglomerados que tenderão a monopolizar o acesso ao ensino superior, tornando-o elitista, tal como aconteceu com outros subsistemas de educação.

 

O mercado de emprego mais exigente, sobretudo, as multinacionais e não só, poderão passar a contractar exclusivamente graduados destas instituições privadas, se não quiserem correr o risco de contractar graduados do público, de qualidade questionável nessa altura ou ainda reduzir os seus planos de expansão por falta de capital humano, como já tem estado a acontecer.

 

Por outro lado, o argumento do ajustamento financeiro que justifica a reforma compulsiva parece ser, por sua via, fundamentalmente contraditório. Com efeito, ter na porta de saída um número significativo de docentes implica um igual ou maior esforço de investimento com novos contratos e em capacitações. Isso exigirá excepcionais recursos financeiros e programas de formação.

 

Outro assunto, ainda não devidamente lançado a debate, é o do impacto da reforma nas relações profissionais e interpessoais dentro da comunidade académica – a implementação de uma reforma obrigatória pode gerar insatisfação e ressentimento entre os docentes afectados, com implicações imprevisíveis no ecossistema universitário e tornando pernicioso tanto o engajamento como a colaboração intergeracional, entre os docentes mais novos e os mais experientes.

 

Estes exemplos com o ensino superior podem ser apenas uma ponta de um iceberg que atingirá a saúde, a segurança e áreas sociais afins, sob a capa de se fazerem ajustamentos financeiros e devidos balanços nas folhas salariais, nesta tentativa de redução da massa salarial do sector público que é pesada por outros motivos, mas que não tem, a rigor, nada a ver com os investimentos que ainda precisam de ser feitos em áreas sociais como as da educação e da saúde que, pelo seu estatuto soberano, deviam ser preservadas.

 

A educação é um produto de construção contínua, colectiva e, embora sujeita à reformas, é o garante da identidade de um povo. África e Moçambique perderam muito com a colonização, onde sua identidade intelectual foi brutalmente assassinada e substituída. Com as independências, tentou-se resgatar algo, em especial, o orgulho de se ter um espaço de produção científica nativa, com os seus respectivos desafios. Temos a responsabilidade de garantir este sonho de Mondlane.

 

Por fim, uma verdadeira e sistemática renovação do corpo docente se faz por via de reinstituição de entradas por via de monitores porque estes vêm do acompanhamento dos professores com experiência acumulada. Por outro lado, a saída honrosa mas, também, proveitosa para a universidade que despede, se faz por via da figura de professor emérito, uma figura que continua a servir e a honrar a universidade, para além da reforma.

quarta-feira, 21 junho 2023 09:15

Sou uma prostituta em fim de carreira

AlexandreChauqueNova

Não me canso de escutar a extraordinária música de Wazimbo (Nwahulwana), é como se tivesse sido composta em função de mim, mas já é tarde demais para entendê-la. Mesmo que eu quisesse voltar atrás, o sinal está fechado para mim e agora só me resta ruminar as feridas que andei a plantar na vida inteira, sou uma escória. O pior é que nunca juntei nada na perespectiva de que a estiagem é infalível, então passo estes últimos dias da vida ouvindo de longe a gargalhada das hienas.

 

A princípio - influenciada por outras mulheres - a escolha que fiz parecia luzidia, voltava para casa de madrugada e colocava comida à mesa, e isso dava-me a sensação de que a vida é bela. Envolvia-me com três/quatro homens por noite e eu aguentava, era jovem. Mas não passou muito tempo, percebi que tinha-me metido no escuro e o caminho de volta não se vislumbrava. Aliás, nem sequer cheguei a pensar em voltar ao princípio, o dinheiro era mais forte que a dor, e eu o tinha todos os dias.

 

Porém a minha beleza enganou-me durante todo este tempo, toda a vida. Os homens encantavam-se com o meu corpo, com a minha candura, e nunca dei em conta que afinal estava caminhando nas trevas onde no fim serei recebido pelos mabecos que irão devorar-me viva. Como agora, que os últimos sabujos disputam o meu coração que ainda bate, mas o corpo já não serve para as orgias infinitas em noites indescritíveis. Tudo aquilo era um escárnio, os homens abusavam-me.

 

E hoje estou aqui. Magoada, não pelo passado de violência, mas pelas lembranças do meu comportamento, da minha incapacidade de escutar os sinais que recebia ainda em casa quando minha mãe me perguntava, “vais para onde assim esta noite, minha filha!” Eram palavras de súplica. Minha mãe ia até a varanda e pedia, “minha filha, volta para casa, é noite!” Mas eu já não a escutava, estava determinada a sentir as esporas do diabo e embrenhava-me no néon.

 

Agora estou aqui despedaçada. Sentada num dos bancos do anfiteatro da imaginação, ouvindo a minha mãe cantando os versos que me ressurgem em cada pensamento: “vais para onde assim esta noite, minha filha”! “Minha filha, volta para casa, é noite”! Mas já é tarde demais para voltar. Tarde demais para seguir Nwahulwana, profundamente interpretada por Wazimbo.

 

Fumo desesperadamente sem parar em lugares imundos onde se bebe aguardente caseira partilhada no mesmo copo, que vai girando em bocas exalando hálito horrível. Não tenho como recusar esta imundície, não tenho dinheiro. A minha pele está flácida, perdeu a graça, ninguém a aprecia a não ser estes jovens frustrados que depois da pinga encostam-me num canto qualquer e ejaculam toda a merda dentro de mim., porra!

 

Quando desperto estou molhada de ignomínia. Cuspo a minha saliva espessa para o chão com desdém e raiva, mas depois do banho vou para lá de novo, com fome, pronta a ser achincalhada a troco de um petisco e do mesmo copo nunca lavado. É assim a minha vida, depois de tudo o que fiz em desobediência à minha mãe, “minha filha, volta para casa, é noite!”

terça-feira, 20 junho 2023 07:05

Sobre a reforma compulsiva

MoisesMabundaNova3333

Depois de um prolongado sono, este ano, ou mais precisamente, de há uns três, quatro meses, acordamos e logo queremos mandar à reforma obrigatoriamente cerca de 19 mil funcionários e agentes do nosso aparelho do Estado! O que consta, bem, bem, nem, é que no processo de migração dos 400 mil funcionários e agentes do Estado para a nova plataforma electrónica de gestão de recursos humanos, descobriu-se que esses cerca de 19 mil têm 60 ou mais anos de idade e por lei devem ir à aposentação! A notícia não especifica quantos  funcionários exactamente irão à aposentação compulsiva por sector. Aqui e ali, vamos ouvindo que, entre os tais, há duzentos professores doutores da UEM, “muitos” médicos especialistas, quase todos os diplomatas (sobretudo embaixadores) nos Negócios Estrangeiros e… uns tantos magistrados!

 

Quando é que, como país, vamos ter um sistema nacional de estatística profissional, sério, moderno e à altura da “Sociedade de Informação” que vivemos. Não consigo perceber como é que é difícil termos estes dados - ou está

 

-se a ocultar deliberadamente -, quando estamos a falar que 400 mil funcionários foram integrados na nova plataforma electrónica de gestão dos recursos humanos, na sequência da nova tabela salarial única. A estatística é o método científico fundamental para a compreensão racional de qualquer empreitada, assunto ou situação. Sem ela, dificilmente se percebe o que se pretende.

 

De toda a forma, é com estes dados pobres com que temos de viver e formarmos as nossas percepções. O primeiro sapo que não aceita ser engolido é: porque será que só no processo de migração para a nova plataforma electrónica de gestão dos recursos humanos é que se descobriu que há 19 mil funcionários em idade de reforma? Antes disso não se sabia? Como? Não deveria ser o processo de o funcionário ir à reforma um processo normal em que, anualmente, ou de tempo a tempo, alguém aqui e ali vai à reforma ou porque atingiu a idade limite, ou o tempo de serviço? Tenho a impressão que se tivéssemos feito isso, não estaríamos a ser acordados com 19 mil que têm que ser aposentados obrigatoriamente dentro de 15 dias; ou serem barrados dos serviços! Quem não cumpriu a sua parte e porquê? Não cumpriu a sua parte e hoje empurrou o país para uma situação desastrosa destas! Em regiões sérias, haveria responsabilização!

 

Não estou a imaginar o que é mandar para casa de uma só vez 19 mil funcionários e agentes de Estado, entre os quais professores doutores, médicos especialistas, diplomatas, magistrados, docentes, enfermeiros e muito mais! Ao fazer isso, o nosso Estado estará a autofragilizar-se, a autocondenar-se a um paupérrimo desempenho no ranking das nações. Não tenhamos dúvidas. Estamos a dizer que o rácio médico-população é dos mais baixos do mundo… a estatística de 2021 dizia que temos 2500 médicos para 30 milhões de habitantes, o que perfaz o rácio um médico para 12 mil pessoas! E nós estamos a mandar médicos para casa! Há ainda muita falta de enfermeiros e outro pessoal hospitalar nas unidades sanitárias… e nós queremos mandar justamente aquelas pessoas para casa! Anualmente, há défice de professores em todas as províncias e em todos os níveis do nosso ensino, primário, secundário, médio, incluindo nas universidades! E nós vamos mandar docentes para casa! O que pretendemos mesmo?

 

A outra questão: afinal formamos para quê? Para mandar à reforma? É que para termos um especialista, seja médico ou não, um cientista de verdade, um magistrado de categoria suprema, um diplomata de categoria, precisamos de bom tempo; só se chega à tal posição já numa idade adulta. E nós já estamos a mandar reformar todas essas pessoas. Não engulo o rato ou ratinho de que há “professores doutores cujo desempenho é muito baixo e é desses que o sistema pretende livrar-se”! Se os há, os culpados são os gestores/o sistema no seu todo que não estabelecem indicadores de desempenho razoáveis para essa categoria, exigir o seu rigoroso cumprimento e sancionar no caso de inalcançabilidade! Assim, poderia separar-se o trigo do joio.

 

O outro rato que não entra é a ideia de que mandando para casa 19 mil funcionários, vai viabilizar-se a TSU. Vai-se sim sobrecarregar o sistema de pagamento de pensões e condená-lo à falência técnica… já não bastam os falaciosos milhares guerrilheiros da Renamo? O que vai viabilizar a tabela salarial única é a produtividade do país no seu todo, um sistema de cobrança de impostos eficaz e incorrupto, uma gestão incorrupta da coisa pública, uma governação racional, não esbanjadora, nem esbulhadora e um combate sério à corrupção. Enquanto a cobrança de taxas e impostos tiver dois pesos, duas medidas, tipo aquele empresário que importa carrões sem pagar um centavo; duplicação de instituições, tipo dois governadores e governos provinciais, ministérios a mais, esbanjamento e roubalheira do erário público, governação erante danosa e corrupção na sua melhor, tipo 500 milhões para em quatro meses se estabelecer um novo sistema de gestão municipal… não sairemos nunca da situação de solavancos no pagamento das remunerações aos funcionários e agentes do Estado.

 

Dá a ideia de que alguém nos está a sabotar. Não conhecendo esse alguém, registo aqui que estamos-nos a sabotar a nós mesmo!

 

ME Mabunda

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