O povo foi demitido!!!
O povo foi demitido do seu papel de fiscalizador. Foi demitido de monitorar, de reclamar, de pedir para ter dignidade mínima.
Foi demitido de ser parte integrante do processo de governação da coisa pública. De ser um agente de participação, transformação e de mudança.
É triste, mas é a verdade. Chegamos a um estado de lamentação, consternação e lamuria em que o tanto fez é igual ao tanto faz. E agora parece que tudo é “swa fana” – na língua ronga – é mesma coisa.
O cansaço tomou conta; a frustração generalizou-se e a descrença tornou-se o respirar deste povo sonhador e lutador.
Como e quando isso aconteceu? De quem é a culpa? E como nos permitimos descer o penhasco desta forma, chegar quase no fundo sem estrondo, mas com impacto?
Na minha jovem trajectória, não tenho memória anterior de estar e participar em conversas várias, com diversas franjas sociais, e com alguma preocupação notar que o pulsar da apropriação nacionalista e patriótica esta em queda acentuada (não trago aqui nenhum barómetro capaz de servir como evidencia). As várias premissas foram paulatinamente me conduzindo a afirmar que o povo foi sendo demitido das suas tarefas principais.
O povo já sofrido e cioso de alguma mudança estrutural e estruturante, foi dando votos e confiança e, foi acreditando de forma cega na tão propalada mudança. Acreditou que a situação que vivia – boa ou má – era parte de um processo e de uma conjuntura histórica, política, económica e social, ou seja, era parte do processo de construção de um país novo. Alias, muitos de nós nascemos e crescemos sob a atmosfera de uma narrativa segundo a qual estamos num processo de construção e afirmação da nossa identidade enquanto povo. Processo este complexo e demorado que vai desde a conquista da tão sonhada e almejada independência aos nossos dias.
Um processo, diga-se, em que a tese principal era a expulsão do colono e da sua máquina opressora que chicoteava, humilhava, segregava e desumanizava o homem negro (moçambicano neste caso). A antítese era o direito a autodeterminação, o direito a liberdade de decidir os destinos do país.
A mítica noite de 25 de Junho de 1975 foi mais do que uma reunião de moçambicanos e moçambicanas no Estádio Machava. Foi o renascer e um inaugurar de uma página que se sabia de antemão nada fácil, mas desejável e necessária.
O povo enfrentou uma longa noite escura com os 16 anos da guerra civil – uma longa noite de horrores e dissabores. O mesmo povo chorou de alegria quando, em Roma se assinou o fim das hostilidades com um abraço fraterno entre dois irmãos outrora desavindos. Esse mesmo povo se fez as urnas de forma altamente patriótica e organizada para celebrar e contribuir para o lançamento das fundações basilares da nossa frágil e incipiente democracia.
De lá para cá, vimos de tudo um pouco; desde o empoderamento a marginalização do povo. O povo foi-se imunizando de esperanças, e se mascarando de crenças. Foi também se maquilhando de um cansaço disfarçado de força. Era importante estar alinhado e acreditar que o futuro e a mudança estava a chegar. Futuro este que até chegou – mas para alguns – novas elites emergiram e novas formas de exploração do homem pelo homem onde nacionais exploram e subjugam nacionais. Sedimentamos uma nova colonização com timbre local protagonizada por burgueses nacionais.
Entre avanços e retrocessos, vitorias e derrotas, júbilo e frustrações – um fenómeno ganhou forma – O Povo foi demitido!!!
A pobreza generalizou, as assimetrias agudizaram, a corrupção institucionalizou-se, as liberdades reduziram-se, o espaço cívico afunilou-se, e o povo começou a sentir-se estranho na sua própria terra.
A redistribuição da riqueza foi se tornando cada vez mais desigual; educação foi sendo paulatinamente escangalhada, saúde mais precária, emprego cada vez mais elitista, infraestruturas degradadas e inviáveis, transporte público paupérrimo, segurança publica caótica, raptos, crime, assaltos, etc. Alguns dos factos que trago para justificar a demissão do maior e mais valioso recurso de qualquer país.
E quem assinou a carta de demissão do povo? Que consequências essa demissão pode trazer?
Há quem diga em jeito de gozo: melhor mudar de país.
Há que questiona: Será que ainda somos um país?
Há quem indaga sobre o país e o legado que deixaremos às gerações vindouras; sobre o legado histórico e político, sobre a nossa soberania e sobre os limites do nosso endividamento.
Há quem prefere simplesmente olhar e calar.
Eu, na altura era Ministro para os Assuntos do Povo (ainda que sem despacho). Tinha um dossier muito vasto e complexo por analisar. Confesso que foi difícil ajuizar e tomar uma decisão que fosse de encontro com aquilo que havia sido exposto.
Precisava agir com sabedoria. E quando me preparava para assinar a carta que recebera do povo (do povo que também represento e sou parte), o sono acabou e o sonho terminou.
Ao analisar-se o entusiasmo em redor do Moçambola, facilmente se verifica que ele diminui do Norte para o Sul, de forma proporcional à distância. De Lichinga à Beira, o desporto-rei é uma loucura e os adeptos até dão espectáculo nas bancadas, monopolizando conversas e exacerbando paixões, algo que contrasta com a capital do país, onde apesar de haverem os melhores estádios e transportes, as bancadas ficam “às moscas”, mesmo em dia de derby.
Em contra-ponto, na capital, em dia de embate Manchester City-Barcelona, Benfica-FC do Porto e outros, os adeptos vestem camisolas e bonés dessas equipas e vibram até à exaustão.
Fica claro que para estes, o estatuto do futebol interno e do desporto em geral, é uma coisa menor, um “xitututu” (barulho de uma motorizada), incapaz de ser factor de atracção.
DE FORMADOR A ESPECTADOR
Recordam-se os mais velhos, que o Norte e o Centro, eram os viveiros e fornecedores da base das selecções nacionais no pós-Independência. Cito algumas estrelas: Nuro Americano, José Luís, Chiquinho Conde, Rui Marcos, Paulito, Jójó e outros. Porém, hoje vivem do recrutamento de treinadores de Maputo, que por sua vez impõem a contratação de jogadores do Sul. Os plantéis ficam completos com o recrutamento de futebolistas nos países vizinhos, muitos deles de categoria duvidosa.
E porque os clubes vivem dos orçamentos das empresas e não da publicidade e quotas dos associados, importa apresentar resultados imediatos, para justificar novos desembolsos.
O principal “cancro” da formação? Após terem sido “bisnados” – na sua maioria - os espaços vazios, campos e pavilhões, o que escapou tem como prioridade o aluguer a reuniões políticas, cerimónias religiosas e espectáculos musicais. As futuras estrelas que optem pelos “games” nos celulares.
Quanto ao futuro dos Mambas? Ressalvando as excepcões, a prioridade para sermos competitivos passa pela naturalização de jovens descendentes de segunda e terceira geração de cidadãos nascidos em Moçambique!
Uma pobre herança para estrelas como Eusébio, Coluna, Armando Manhiça, Hilário, Mário Wilson, moçambicanos de raiz que levaram o nome da antiga colónia portuguesa ao Mundo.
Eu, o Povo
Conheço a força da terra que rebenta a granada do grão
Fiz desta força um amigo fiel.
(Mutimati Barnabé João)
Quando, naquele remotíssimo sábado, de 2 de Julho de 1994, o Luís Carlos Patraquim me ligou a dar a notícia da morte de António Quadros, já se tinha balcanizado o mito do guerrilheiro morto na frente de combate que deixara “Eu, o Povo”, como legado ou testamento poético da revolução, que fora o breviário de jovens que o estudariam afanosamente anos a fio como uma espécie de cartilha. Reconheço-me nesses moçoilos e nesse livro e naqueles poemas inauditos. Não tenho dúvida de que fizeram de nós mais moçambicanos. “Mutimati é a voz individual que corporiza a voz colectiva.”
Tinha visto, entretanto, o filme de John Ford, “O Homem que Matou Liberty Valance”, e continuava a sufragar a lenda mesmo diante da verdade. Aliás, anos mais tarde, ao antologiá-lo, em “Nunca Mais é Sábado”, no texto biográfico redigi: “a lenda por vezes torna-se verosímil com o tempo”. A colectânea, de 2004, também resgatava outro dos seus heterónimos, o mais facundo de todos: João Pedro Grabato Dias. Parece haver, em termos biográficos, um apelo recorrente nas datas: em 1964, António Quadros vai para Moçambique, em 1984 é o epílogo dessa experiência, o ocaso da sua vida dá-se em 1994.
À época, eu batucava a minha prosa no jornal “Público” e dei conhecimento ao meu editor, Torcato Sepúlveda, de gratíssima memória, deste infausto acontecimento. Quando me dirigia para a redação, aonde iria fazer o obituário que se impunha, recordei-me de um livro que me assombrara nos meus tempos de debutante. Encontrara-o numa vetusta livraria do Alto-Maé, que hoje cedeu espaço e memória a uma dessas lojas que vendem quinquilharias. Era um livro de pequeno formato, tê-lo-ei perdido algures, na defluência dos anos. A despeito, o seu humor truculento e profundamente feroz ainda ecoam na memória: “Como o morto nunca nos diz nada / vem daí o extremo penoso da sua presença”. O título da obra – “O Morto – Ode Didáctica” (1971) -, assinado por João Pedro Grabato Dias, o seu heterónimo mais exabundante.
Fora o Luís Carlos Patraquim que me dera a ler “40 e Tal Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada” (obra inicial do poeta, editada em 1970). Quando isso sucedeu, eu já associava o nome de Grabato Dias ao de Rui Knopfli, o meu poeta electivo, por causa da revista “Caliban”, que ambos haviam editado nos anos 70. Disse-me o Knopfli em 1989: “Quem teve a ideia de se publicarem os cadernos “Caliban” foi o João Pedro Grabato Dias. O progenitor é ele”. Em 1996, Rui Knopfli assentiria que os publicasse, numa edição fac-símile, com a benesse do meu bom amigo José Soares Martins.
Foi através de um prémio, atribuído, em 1968, pela antiga Câmara Municipal de Lourenço Marques, hoje Maputo, que surgiu, para o espanto dos jurados, “40 e tal Sonetos de Amor e uma Canção Desesperada”. Quando foi da publicação da obra remunerada, dois anos depois, Eugénio Lisboa, que estivera no júri, redigiria numa das badanas: “Voz singular, ulcerada e mitológica, ensimesmada, onírica, ironicamente realista, brutal, descabelada”, tudo isto, segundo o ensaísta, “traduzido por uma extraordinária ´fauna lexical´ que a um tempo nos subjuga e desorienta”. Num dos volumes, da sua monumental obra memorialística, “Acta es Fabula. Memórias III – Lourenço Marques Revisited – 1955-1976” (2013), Lisboa dar-nos-á uma circunstanciada notícia desse acontecimento literário único e fará a cartografia desta personagem singularíssima: António Quadros.
Também devo ao Patraquim o conhecimento de “As Quybyrycas – poema étyco em ovtavas”, publicado em 1972, para celebrar os 400 anos de “Os Lusíadas”, ínclita obra de Luís de Camões. Assinada por Frey Ioannes Garabatus, tinha J. P. Grabato D. como seu Editor. Esta obra que mereceu um erudito prefácio de Jorge de Sena. “Cada um faz a homenagem que pode” – era a divisa do frontispício. O Editor, assim grafado, agradecia a M.L. Cortez, E. Lisboa, R. Knopfli e A. Quadros com um “embaraçado obrigado pelo estímulo permanente”. Já era óbvio o chiste literário. O autor era um heterónimo de António Quadros – o pintor.
António Quadros foi pintor e professor, artista gráfico e ilustrador, ceramista e escultor, fotógrafo e cenógrafo, pedagogo e apicultor. Interessou-se por arquitectura, comunicação, biologia ou ecologia. Era vário, múltiplo, complexo. Talvez daí, também se explique, a sua heteronímia, os vários poetas que encarnou: ele foi João Pedro Grabato, ele foi Frey Ioannes Garabatus, ele foi Mutimati Barnabé João, ele foi António Quadros. (“Pois que todo o proposto é uno e vário”, deixará escrito algures).
Para além dos livros acima aludidos, publicou: “A Arca – Ode Didáctica na Primeira Pessoa” (1971), “Uma Meditação. 21 Laurentinas e Dois Fabulírios Falhados” (1971), “Pressaga – Ode Didáctica” (1974), “Facto-Fado – Piqueno Tratado de Morfologia Parte VII” (de 1986), “O Povo é Nós” (1991) e “Sagapress” (1992). Todos eles assinados por João Pedro Grabato Dias. A sua poesia é exuberante, os seus versos são avassaladores, o seu tom desmedido, muitas vezes burlesco, faustoso, quase sempre, poesia que denuncia uma afortunada versatilidade imagética e um dos estros mais prósperos da poesia que se produziu em Moçambique.
António Quadros era uma personagem: complexa, heterogénea, vasta, abundante, profusa. Expendeu 20 anos da sua prodigiosa vida em Moçambique, entre 1964 e 1984, e aí produziu grande parte, ou a totalidade, da sua obra (“Produzo mas não crio, quando interpreto”.) Isto muito longe de “Mil novecentos e quarenta em lisboa. Lisboa após Expo” quando se entrevista com “o meu amigo da guiné / o ansiado irmão que vivia mais perto do sol” que “estava ali, tinha chegado no anoitecer de inverno / sem ser prevenido da névoa de lisboa, sem camisola de lã / sem calças à golfe, sem luvas de malha”.
A cidade, a “baixa laurentina”, o Djambu, o Continental, a “polana das coutadas”, Maxaquene, mais tarde, a Machava, fazem parte da sua geografia poética, numa vida em que, diz o poeta, “em palavras gastei tudo”. Muitos anos depois, do epílogo dessa experiência africana, não deixará de se referir aos seus “áfricos remorsos”, uma indisfarçável melancolia e, provavelmente, imprescindível desencanto. Quem o lê, atentamente, escrutina na sua poesia o estertor de um tempo – isso é comum a Rui Knopfli – e o entusiasmo pelo tempo ulterior que que lhe provocará um inevitável desengano. A revolução teve as suas contradições e, de permeio, acotovelou quem não devia.
Não o conhecera pessoalmente, mas sabia-o figura lendária em Moçambique. Tenho uma vaga memória de o ter visto, de relance, algures em Maputo. Mas pode ser uma paródia da minha própria memória. O José Capela (nome de historiador de José Soares Martins) falava-me amiúde dele, com saudade, das vezes que este o visitava e ficava, à varanda, a escrever ou a pintar. Tinha, aliás, obras de Quadros nas paredes. O José Craveirinha (“sinto que fiz um verso à Zé Cravé, alô Mafalala!”) também me falava dele. O Rui Knopfli falou-me dele. O Luís Carlos Patraquim, idem. A Amélia Muge, outrossim. A minha amiga Lisdália, de saudosa memória - (“Feitiços? Vivi deles, vivo, como de factos em bruto”, entre outros, “no rir da Lisdália”) – rememorava, liricamente, João Pedro Grabato Dias. Quem não me falou de António Quadros?
António Augusto Lucena Quadros nasceu em Santiago de Besteiros, em Viseu, a 9 de Julho 1933, onde iria falecer a 2 de Julho de 1994, a dias de fazer 61 anos, depois de muitos exílios. (“Nunca me libertei da infância.”) Estudou Pintura na Escola Superior de Belas Artes do Porto e Gravura e Pintura a fresco em Paris. Parte da sua obra plástica está antologiada em “O Sinaleiro de Pombas” (2001).
Numa entrevista à revista “Tempo”, quando deu à estampa a sua glosa camoniana – Camões e Fernando Pessoa eram seus deuses tutelares – afirmaria: “Se eu soubesse o que é ser europeu, saberia talvez o que é ser moçambicano. Tirando o anedotário da coca-cola, falta a soma das criações de mais de duas gerações, para se definir o que é ser moçambicano, para o bem e para o mal. Daí a tremenda responsabilidade de um criador, hoje e aqui, onde o pouco que há feito muito pouco denuncia o muito que há por fazer (...) No fim de contas, haverá dois mundos, não sei. A “tese” que o meu trabalho defende é que existe só um universo e nós com ele. Se à poesia de minha lavra se pode censurar a falta de tambores, luares africanos e queimadas, note que a que produzi de 50 a 64 pelos sucessivos exílios em que andei, e onde o mental não foi o menor, é impublicável por isso mesmo”.
Não me parece que haja dúvidas que este homem singular sabia exercer a arte de pitonisa e haveria de se antecipar à discussão da moçambicanidade na sua extensa e complexa obra. Mais do que isso: quis zombar da História e inventara a mítica obra que faz a sagração de Moçambique livre: “Eu, o Povo”. “Mutimati é a voz individual que corporiza a voz colectiva” – assim se escrevia no frontispício: “É agora pertença de Moçambique. O Povo Moçambicano é o seu Autor”.
Sabe-se: António Quadros não conseguiria descartar-se da suspeita de ser o autor daquele hino da revolução e da nação emergente. Aliás, rezam os velhos mitos que Samora Machel terá feito, mais tarde, um repto irrecusável que irá resultar em “O Povo É Nós” (1991), uma glosa – ou uma sequela? -, de “Eu, o Povo”, assinada por João Pedro Grabato Dias.
António Quadros foi um permanente exilado (“estaremos sempre votados a este exílio”), nos vários solos que lhe pertenceram. “Com três estações intermédias, djambu, casa e colmeia / ou do rovuma ao maputo como diriam nas rolhas diversas” – escreve Grabato Dias, sempre com o seu humor finíssimo e assertivo. Foi cantado por José Afonso ou Amélia Muge, pouco lido e ainda menos discutido ou estudado, como mereceria.
Em 2021, em Portugal, foi editada uma antologia – “Odes Didácticas”, numa coleção de poesia coordenada por Pedro Mexia, na Tinta da China, com um extenso e importante posfácio de António Cabrita, que intenta interpretar a vasta e complexa obra de João Pedro Grabato Dias. O arquitecto José Forjaz fizera um texto imprescindível para a reedição de “Eu, o Povo” da Cotovia (2008). Releio o poeta. Volto aos versos que me perturbaram na juventude: “Devo velar os meus mortos. / Vigiá-los, com doçura, mas vigiá-los. / Estar atento nas franjas do silêncio. / Alguma coisa deve acontecer / na espera.” “Um morto esquecido é tantíssimo perigoso”. A paródia, a sátira, a critica acerba, sempre. “É preciso ter muita coragem para assumir o medo”.
Provavelmente, esquecido hoje em Moçambique. Luís Carlos Patraquim evoca-o num belo poema: “Frei Mutimáti Barnabé João”: “P´la estrada da Machava, à esquina da Meseta / como Rolando sob a última frechada / ou como quem tropeça piqueno / em um Morto muito / lhe devo versos – o cono! - / mai-lo zarolho que lhe deu / claramente visto o Povo, / lá vai Frei João, o Mutimáti, / ao grabato da Alma. // Psiu, D. Antónia; João dos barcos / desencorados da infância: Amélia, / múgica guitarra onde sob os cabelos / a voz e tu, menino, / que arado adunco nos mostrasse em obra, / visto que o autor é o seu próprio processo, / e dele nem Virgílio o nomeia / em verde prado onde os deuses apascentou; / Psiu, que pelo céu de Inhaminga, / p´lo caminho de Santiago com a Rosa na Arca/ e a sapata grossa ecoando, cavernosa, / uas quybyrycas de Barcelos, / lá Mutimáti mai-lo cachimbo / de chicaocao e canho adornando ogres, / floresta obscura, parva savana nívita.” E o poema lá vai e não termina sem evocar, outros deuses tutelares da poesia moçambicana: “o Cravé ainda salga os velhos espíritos/ e o Rui sangra a sombra ardida e verde”.
Ironicamente, quando morreu, estava para sair, naquele mês, o disco da Amélia Muge (“Todos os Dias”), que tinha uma canção com versos de João Pedro Grabato Dias, intitulada “Estar vivo”. Começava e terminava assim: “Estar vivo é estar à morte”. Foi o título óbvio para noticiar a passagem de António Quadros - “percebi logo a morte”, dirá ele num dos seus versos onde, como sempre, zomba da morte (ou tenta exorcizá-la?) -, que nascera a 9 de Julho de 1933, faz hoje, precisamente, 90 anos.
Cidade do Cabo, 9 de Julho de 2023
Mas da maneira como bebo como é que podia ser alguém?! Tentei várias vezes ser carvão a ver se dava vida às fervuras mas não ardo. Vivo com a minha mãe, ela também é um farrapo, perdeu completamente a direcção, ou melhor, o farol dela é essa merda que está a chacinar-nos, isto é uma chacina. Então eu e ela somos duas jangadas sem remos, e assim como estamos não temos outra terminal que não seja o pricipício.
Mesmo que eu esteja sob domínio do efeito do álcool, não consigo entrar no cosmos da alucinação onde devia ser tomado pela falsa sensação de bem estar. Cada vez que entorno goela abaixo o veneno dessas garrafinhas do diabo, mais lúcido me torno. Fica disponível a minha sensibilidade do corpo e do espírito, e aí sinto toda a dor das minhas feridas vivas e acabo repetindo o refrão dos Rockfeller,s. “Esta vida é uma ressaca”.
Submeti-me ao “Senta-baixo” e agora faço parte da roleta. Nas noites quero que amanheça depressa para sair de casa, pois lá fora sinto-me um escravo livre, embora tenha que carregar a machila do Lúcifer e levá-lo a passear nas sombras sombrias onde a música que se ouve é regida pelo próprio diabo e cantada em coro pelos seus sequazes. Um desses sequazes sou eu.
Dói-me muito por a minha mãe também fazer parte desta sinfonia da morte. Tenho falado com ela várias vezes, sobretudo quando estamos embriagados, rogando-a a que dispamos as batinas que nos sufocam e atormentam o espírito, e a minha mãe não dá importância ao que digo, “dispa tu a tua batina, meu filho, ainda vais a tempo, eu não!
Nunca bebo com ela no mesmo lugar, ninguém a respeita. É bojardeira, e outros jovens como eu deliram com os seus discursos sem pudor e aproveitam-se do seu estado para abusá-la. Mas eu sei disso, porém não posso fazer nada. Sou incapaz de tirar a minha mãe do caminho infestado de vespas que lhe picam em todo o momento sem parar.
Eu bebo demais no seio de uma juventude que não sabe para onde vai. Não sei se a culpa deste descalabro é do Estado ou é nossa, nós os jovens. Podiamos fazer qualquer coisa para mudar o rumo do barco, mas não! No lugar de buscar os remos caídos no mar deixando as nossas almadias ao léu, optamos por aceitar e beber o veneno que eles nos dão, e ainda dizem que não se pode proibir o fabrico desse cianeto porque os fabricantes pagam impostos. Então, sendo assim, podem nos matar.
Mas essa é a realidade, daqui a pouco seremos cadáveres reais, depois desta farsa toda de que somos pessoas. Na verdade já não somos nós que vamos, eles é que nos conduzem com essas bebidas de merda que nos vão castrando pouco a pouco, dando a florescer o negócio da viagra. Porra!