Na Av. Eduardo Mondlane havia um bar baptizado “Goa”, conhecido em todo o grande Maputo pela essência dos petiscos ali servidos, em particular os mariscos que levavam os irresistíveis temperos asiáticos. Bebia-se cerveja a rodos desde o amanhecer, e todos aqueles que lá iam pela primeira vez, queriam voltar outra vez e nunca mais abandonavam o lugar que se tornou histórico, resistindo aos ventos infaustos do tempo, até ao momento em que tudo aquilo colapsou.
É aqui onde João Paulo, o arrebatante blues man e soul music man, inspirava-se para a loucura dos clubes noturnos reservados aos grandes, e ele reverberava, tornando-se assim, aquele cometa que jamais voltará. Era ele, o João, a principal referência quando o “Goa” entrou em derrocada até se tornar uma espelunca. João Paulo também estava em derrocada, até que a morte, cansada de esperar por um indivíduo que ia devagar em direcção à guilhotina, em cada duplo de Jack Daniels, trespassou-o.
Nos Últimos anos, - meados de 2000 - “Goa”, apesar de se ter tornado um lugar desprezível, era uma importante lagoa, onde mais do que ir refrescar-se com as suas águas turvas, as pessoas que lá se materializavam , muitas delas, faziam-no com o propósito de debater ideias. Havia massa pensante que transformava esta gruta em fonte de sabedoria, não se falava de putas. Quer dizer, em todas as mesas a conversa era desenvolvida em torno do saber, e o que se notava é que quanto mais embriagados, mais lúcidos ficavam os intervenientes.
João Paulo apelidou o “Goa” de “Bar dos Crâneos”, querendo dizer com isso que o “Goa” é bar dos pensantes. O que se falava lá dentro e na esplanada cá fora, não eram balelas. Havia oradores esclarecidos, que se destacavam e eram promovidos, pelo seu conhecimento, a mais do que simples pivots. Outros ainda, aqueles cuja capacidade de oratória e de cultura geral era limitada, ficavam empolgados em escutar os arautos, e pediam mais cerveja. Para eles próprios e para aqueles que falavam.
No “Goa” não havia interlúdio. Em todas as mesas destacava-se um maestro, ou vários, mesmo assim não se perdia a consonância. Era como você estar num estádio com vários palcos, onde em cada um deles a música que se toca, é tocada por grandes músicos, e você quer ouvir todas as músicas ao mesmo tempo. Com a diferença de que chega um momento em que o maestro dilui-se. Cada executante quer tocar a sua música e quer que os outros a escutem. Mas esse é o ressurgimento dos “crâneos”, todos querem brilhar. Aliás, eles vão ali para brilhar. E mostrar que brilham.
Pois é! Lembrei-me destes momentos indeléveis na memória, quando há uma semana estive em Maputo e passei por este lugar onde ainda fui tempo de sentir o cheiro do João Paulo, sem precisar de entrar. Já não se chama “Goa”, mudou de nome e de história, como todos nós. Já não somos os mesmos!
- Armando Artur, em entrevista fictícia *
Armando Artur pode ser um homem taciturno, ele diz que é uma forma de defesa. Não é o tempo que conta na sua vida, mas a importância das coisas que faz. Foi na AEMO onde aprendeu a valorizar a amizade e a partilha. Não guarda ressentimentos, mesmo dos malucos que em algum momento lhe apedrejaram na vida, “eu também sou maluco”.
Acompanhe na íntegra a conversa mantida num final de tarde, na varanda da sua casa, lembrando o sol a esconder-se no esplendor dos Montes Namuli.
-Nasceste em Nauela num ano qualquer. Em 1982 chegas a Maputo com um pequeno bornal no regaço, ninguém te conhecia. O que é que te moveu para um lugar movediço e tão distante da tua terra?
- Você fala do bornal que eu trazia no regaço e faz me lembrar que bornal é uma saca usada pelos soldados, obreiros e itinerantes para transportar provimentos ou mantimentos, mas a minha saca não tinha nada. Se calhar vim para aqui com a necessidade urgente de encher o coração e eu não sabia. Provavelmente aportei neste grande entreposto como um pedaço desconhecido da cordilheira de Namuli, que já tinha as palavras a zumbirem em forma de poesia dentro de mim.
- O que é que te arrebatou em primeiro lugar ao desceres num lugar que não tinha nada a ver contigo?
- Eu era imberbe, deixei-me conquistar pelo fascínio de uma grande metrópole sempre sonhada na pacatez desse lugarejo onde minha mãe me deu à luz, na verdade todo o bulício de Maputo, o frenesim consubstanciado no ruído dos carros, as pessoas a quererem passar todas ao mesmo tempo, os grandes autocarros abarrotas com pessoas penduradas nas portas, tudo isso foi um choque profundo para um rapaz atrevido que apenas confiava na poesia.
- E confiava nos búzios também!
- Depois de retirares a carne desse molusco, a carrapaça do búzio assobia ao sibilar do vento, e na esteira dos médiuns torna-se uma verdadeira bússola, dependendo das mãos que a manipulam, mas os meus búzios são outros, são cada verso da poesia que vou cantando em vários sopros de meditação. Por vezes nas paródias.
- Depois foste parar a esse efervescente alfobre que é a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), onde te mantens até hoje como uma das pedras angulares. O que é que significou para ti entrar nesse clube restrito?
- Se eu sou uma das pedras angulares da AEMO, só pode ser no sentido de que sou um fragmento de uma rocha maior, com o risco de me precipitar e diluir-me no mar. A AEMO é um baluarte sagrado onde aprendi a arrumar as palavras que já trazia da cordilheira de Namuli. A AEMO é um depositário de tesouros, aqui abriu-se-me a luz que me fez perceber o valor da amizade e da partilha. Sinto-me lisonjeado por fazer parte desta orquestra esquisita, em que cada um toca a música dele sozinho, tentando atingir a perfeição e querendo profusamente que os outros escutem essa música.
- Já atingiste essa perfeição?
- Olha, como já te disse, nasci em Nauela na província da Zambézia. É uma zona superabundante que faz parte dos Montes Namuli, abrange Gurúè onde se estende aquela exuberância toda das plantações de chá. Você olha para aquilo tudo e diz, que obra da natureza tão perfeita! Então, a única perfeição que reside em mim, é o lugar onde nasci.
- A propósito, há muita gente que vem das províncias de Moçambique, chega a Maputo e desumbilica-se completamente das suas origens. Como é que tem sido a tua relação com Nauela?
- Desumbilicar-me de Nauela seria abdicar da poesia, e abdicar da poesia é o mesmo que rejeitar a própria vida. Não me canso de repetir isso. Eu sou um dos grãos das poeiras da cordilheira de Namuli, mesmo que levite em escaparates reais e imaginários, de vez em quando tenho que ir para lá, poisar naquele chão para deste modo poder ressurgir e continuar a rugir fora das jaulas.
- Foste secretário-geral da AEMO durante dois mandatos. A tua consciência tranquiliza-te ao pensares no tempo que ficaste lá?
- Tranquiliza-me no sentido de que fiz tudo o que estava ao meu alcance para manter a família unida, e levar a agremiação a níveis de organização satisfatórios, claro com a colaboração de todos os confrades, cada um com a sua afinação. Mas o mais empolgante era eu dormir a pensar que no dia seguinte ia voltar ao bulício onde tudo era imprevisível, ir ao trabalho preparado para ser apedrejado sem mais nem menos por alguns malucos, alguns dos quais ainda sobrevivem, com roupa mais leve, sem a verve do veneno.
- Esses malucos deixaram-te alguns recalques?
- O poeta que me orienta é também um maluco que luta permanentemente pela paz, por isso não tenho como, mesmo que o quisesse, ter ressentimentos. Farto-me de rir quando me lembro desses momentos, com saudade.
- Você anda longe da vida pública, transformaste-te num taciturno, pareces ter medo de alguma coisa!
- Somos todos mutantes, o próprio mundo já não é o mesmo, nem a cordilheira de Namuli, como é que eu, uma pessoa tão pequenina, tão insiginificante perante esses gigantes não vou ter medo! Provavelmente seja um taciturno como tu o dizes, mas essa pode ser uma forma de defesa, pois perante uma vida absolutamente vituperada, a melhor coisa que podes fazer é ficar em silêncio, no silêncio, deixar as palavras avançarem, como se elas fossem a tua jangada e tua muralha ao mesmo tempo. Mas também não é verdade que ande longe da vida pública, depende da lupa que usas para me focares.
- Trinta e cinco anos de carreira é um marco importante para um poeta, há muitas flores espalhadas no percurso, e espinhos que podem ficar encravados para sempre na alma, muitas frustrações, incongruências. Será que depois deste tempo todo você está em condições de embalar a troucha e dizer, deixem-me voltar a Nauela beber conhaque?
- (Risos). Não há conhaque em Nauela (Risos), mas tem muita cachaça que bebo sempre quando vou para lá. Bebo para renovar e fortificar a minha relação com os espíritos lómwè que me guiam. Quanto aos trinta e cinco anos, não é isso que me vai marcar, não é o tempo que me marca, é a forma como tenho vivido a vida até aqui, lançando palavras ao léu, muitas delas grafadas em livro como um monumento erigido em memória de mim. Isso é que conta, não o tempo que levei a juntar as pedras. De resto o que importa é não sermos vencidos.
- Mesmo assim como é que te sentes perante esta efeméride que é uma comemoração da tua vida?
- A emoção é maior ao ver o envolvimento dos meus confrades na minha homenagem, significa que eles dão-me valor, significa que sou importante para eles, mesmo sem o merecer, e eu não posso querer mais nada para além desse conforto espiritual. Eles não o fazem porque brilho, mas será com certeza por amor, ao qual agradeço sem parar. Choro quando penso nisso tudo.
* Entrevista publicada na antologia em homenagem aos 35 anos do poeta
Mónica Fungayi, mulher com quem tenho muitas afinidades, ligou-me às seis da manhã e disse, estou a passar Xai-Xai, e eu exclamei, a passar Xai-Xai?! Ela disse, sim, estou a passar Xai-Xai, meu caro!
Vinha de Maputo e eu estou em Inhambane. Fiquei uns instantes a pensar na maneira como ela conduz, segura, entretanto perigosa. Viajar ao seu lado é aceitar o suicídio, contudo a conversa e o whisky diluem todo o medo, apesar de já não termos idade para suportar a pressão, como nos tempos de juventude, quando viviamos a vida em cascata.
Foi ela quem retornou e disse, vou à Tete, queres ir comigo?
Mas eu nunca me surpreendi com as maluquices da Mónica Fungayi, ela podia estar a falar a sério ou a brincar, dela espero tudo, é uma pessoa inesperada, está pronta a todo o momento a responder ao chamamento da liberdade, e o que mais admiro nela, é o desejo permanente de ver os outros, livres, como Bob Marley quando dizia, “deixo as pessoas que amo, livres, se voltarem é porque as conquistei, se não voltarem, é porque nunca as tive”.
Eu volto sempre para Mónica Fungayi porque conquistou-me, não resisto ao seu fogo feito de palavras sempre novas. Então, se for verdade que está a passar Xai-Xai a caminho de Tete, vou com ela, essa proposta é irrecusável. Irresistível, por todas as diabruras que se anteveem.
Chove uma chuva intermitente aqui onde estou, e por causa disso não fui fazer a minha caminhada habitual. Se não caminho, desce sobre mim o tédio, o dia fica longo, sufocante, desgastante, e esta chamada da Mónica Fungayi vem mudar meu azimute, dá-me as luzes que preciso para enfrentar o dia.
- Daqui a uma hora e meia estou aí, meu brada, surge et ambula!
Nunca tenho as malas feitas, sou um barco fundeado. O que me safa é que as minhas amarras e a âncora, estão sempre prontas a moverem-se na dança de uma nova canção temporária, não sou prisioneiro, nem de mim. Viajar com Mónica Fungayi será uma dança vertiginosa, e quem vai cantar essa canção somos nós os dois. Falaremos, na nossa paródia cíclica, do Fela Kuti, do Hugh Masekela, dos Beatles, do Ray Phiri, da Elis Regina, da Abete Masikini, do Marlon Brandon, do Francis Coppola, nossos ídolos de sempre.
Iremos contemplar a cordilheira de Catandica, na província de Manica. Do outro lado daqueles montes fica o Zimbabwe. Então chegará até às nossas memórias o odor de Thomas Mafume e Oliver Mtukuzi e Chiwoniso Maraire, nossos ídolos imortais. É tudo isso que me faz saltar da cama nesta manhã de chuviscos descontinuados. É a Mónica Fungayi que desenha, na minha solidão, a aurora para dissipar pensamentos pensamentos nefastos, é ela que repete sempre, sem se cansar, essa lírica: quem te disse que estás sozinho!
Daqui a pouco ela vai chegar, vinda de Maputo onde vive uma vida anarquista, vem levar-me para uma viagem de 1500 km, um empreendimento que pode ser a saga dos loucos, sem previsão de chegada, pois o tempo fica por conta da nossa liberdade. Do gozo em si.
Enquanto Mónica Fungayi não chega, vou entregando-me à imaginação. Às lembraças de locais de Tete como Kwatchena Ku Nhartanda, Canongola, Matundo, Nhamabira, Chimadzi, locais que bem conheço na minha vida de ex-andarilho. Não nos faltará ainda a oportunidade – quando chegarmos - de procurar um lugar onde se vende pombe (cerveja dos aantepassados da Mónica). E aí atingiremos o auge de tudo.
A Raínha Elizabeth, em visita a um hospital público de Liverpool, numa manhã de chuva, virou-se para o seu segurança principal e disse, indicando ao mesmo tempo com os olhos para um bebé deitado no bercário: este menino é muito lindo! Olhou para a mãe, que sorria, orgulhosa pelo elogio e perguntou, como é que ele se chama?
Lá fora, relampeja com intensidade, troveja como se o fim do mundo estivesse à ilharga, e a chuva cai em catadupa, contrariando o dia que amanhecera solarento. Chove que chove, para gáudio da Raínha que não sai do berçário do menino negro deitado tranquilamente sob vigilância constante da mãe. A soberana venera a chuva, sobretudo quando cai em consonância com os trovões e os relâmpagos. Para ela, isso é sinal de que algo importante vai acontecer, agora ou nos próximos tempos.
A mãe do menino, uma mulher espampanante, transbordante de beleza em toda a sua estrutura, disse a rainha que o seu filho ainda não tem nome. E a raínha perguntou, posso escolher um nome para ele?
A sequência dos trovões não pára, os relâmpagos iluminam mais que a luz do dia, e a chuva está determinada, nem que tenha chegado para inundar toda a cidade dos Beatles. Ela - a chuva - cai em recebimento do bebé que continua sereno no pequeno leito, e ninguém sabe que esta criança que chega num dia de grandes enxurradas, é um sinal inequívoco dos tempos. Ninguém sabe, mas a raínha pressentiu, por isso voltou a abordar a parturiente: como é que se diz chuva na língua dos teus avôs?
- Diz-se mbvura
A raínha Elizabeth sorriu e disse, o teu filho chama-se Mbvura, vai ser, quando crescer, primeiro-ministro da Inglaterra! Ele será intenso como a chuva que cai lá fora!
Os jornais abriram as primeiras páginas com parangonas sobre o menino negro que será primeiro-ministro da Inglaterra. As televisões e as Rádios inundaram espaços inteiros com a premonição da raínha. Há um choque profundo nos ingleses que nunca acreditaram na possibilidade de o globo terrestre parar repentinamente e um negro elegido cair para cima, sem perder a humildade.
Quem é esse bebé?! A pergunta é feita em cascata. É preciso matá-lo antes que vitupere a nossa raça! A raínha Elizabeth está louca por velhice! Outros diziam que a raínha está mais lúcida do que nunca. Ela fala a verdade! Esse menino vai ser o nosso primeiro-ministro! Vamos lhe dar o nosso apoio! Viva, Mbvuraaaaaaa! Vivaaaaaa!
Mbvura é um estudante da elite, na Universidade de Oxford, onde se tornou no centro das atenções dos colegas e dos professores. Discute com argumentos sólidos, sem o recurso aos estereótipos. O seu discurso não é de reivindicação, é de catapulta. Tudo o que ele diz nas conversas com os amigos e colegas, ou em lugares de circunstância, torna-se uma palestra pela forma brilhante e esclarecida como coloca os dados. Mbvura já atingiu o palanque, onde nunca quis estar, mas eis que é elevado. Fala da vida no sentido de que a vida é uma seara para todos, e que todos podem ser felizes, cada um com a sua foice para o mesmo campo. Para a mesma fartura.
Toda a Inglaterra - desde que Mbvura se transformou no centro da convergência - tornou-se a própria aurora, e já ninguém tem dúvidas de que ele é o primeiro-ministro de que se espera!
*Texto imaginário
Vi a miúda agachando-se com leveza e apanhou um caco que sobrou de uma garrafa partida na rua de pavet que sai da Fonte Azul à Escola Primária 1º de Maio. Havia outros pequenos pedaços de vidro espalhados no chão, e a menina recolheu tudo, com as mãos nuas. Tirou da pasta um caderno de onde rasgou uma folha e juntou nela os fragmentos, depois caminhou em direcção ao depósito de lixo que serve o mercado ali perto, e atirou delicadamente o embrulho.
Deve ter por aí nove/dez anos, é por isso que aquele gesto comoveu-me. Fiquei mais sentido ainda porque a menina, pelas características, provavelmente vem de uma família pobre, deduzi isso pelos chinelos de borracha que usava, velhos, segurados por arames em ambos os pés. Outro detalhe que notei nela é a camisa de uniforme, remendada, e a saia azul desbotada, com a baínha mal feita.
Faz frio por estes dias e a menina não está agasalhada, segura a pasta apertada ao peito para aquecer os pulmões, e naquela posição parece um um jogador de rugby que corre. Ao encontro da luz. A pele dela não brilha, então pode estar a passar privações em alimentação e sobre isso eu não tenho a menor dúvida. Mas mais do que todas essas contrariedades, podemos estar perante o samaritano que atrasou a sua ida à Igreja para salvar um homem bêbado ferido pelos bandidos. E esta menina atrasa à escola para retirar cacos da rua.
Invadiu-me a vontade de persegui-la, mas ela corria, alegre, com os livros sobre o peito, e vi-a depois encaixada no cacho dos colegas que também corriam ao chamamento do sino. Era assim que começava a minha manhã, desvancendo-me os pensamentos de que não vale a pena lutar porque o sinal está fechado para nós. Afinal vale a pena! Tudo a vale a pena quando a alma não é pequena, como a desta menina que caminha por cima de todos os cactos, com os pés nus, sem ser ferida.
Passado um tempo volto a vê-la no mesmo lugar, a voltar da escola, meu coração perdeu o compasso. Em vez de chama-la ao ponto onde eu estava, fui ter com ela, mesmo assim com medo de que as minhas palavras fossem inconsequentes.
- Olá, menina!
- Olá.
- Tudo bem?
- Estou bem, obrigada.
- Como é que te chamas?
- Dorotéia.
Perguntei-a se se lembrava do dia em que ali mesmo retirou cacos de vidro espalhados no chão, e ela disse que não. Não se lembrava. E é isso mesmo, quem faz o bem com toda a alma, não faz para se recordar, nem para ser visto!
- És uma menina abençoada.
- Porquê?
Se eu a dissesse que Dorotéia significa “Dádiva Divina”, eventualmente a miúda podia não entender. Mas eu entendi que Dorotéia é uma menina profunda. Tem um rio abundante por dentro, e uma enorme albufeira nos olhos-
Nhambuli está cansada de viver aqui, no seu próprio país, onde as pessoas, segundo ela diz, correm todos os dias e não chegam a lugar nenhum. Fumam cannabis sem parar, nas calçadas, na tentativa vã de atingir a felicidade na alucinação, e o que se vê é a contínua degradação do tecido da carne e do espírito. O pior é que nunca mais amanhece, para se concrectizar a poesia de Jorge Rebelo, “Não importa que seja longa a noite/a verdade é que há-de amanhecer.
De que vale eu ter todos estes bens que alimentam a minha carcaça – desabafa Nhambuli – se aqui mesmo ao lado há crianças que dormem sem comer! De que vale toda a bebida refinada de que me disponho, se aqui mesmo as mulheres são violadas diante de toda a gente, as cerianças estupradas! De que vale tudo isso se as hienas não esperam que a gente morra para nos degustarem! De que vale viver!
Nhambuli é uma mulher de finos cristais por dentro, onde bate descompassado – mas firme - um coração de ouro puro filtrado pelo fogo. Admiro-a, sobretudo pela serenidade transmitida pela voz profunda, e pelo olhar perturbador. Também noto sem muito esforço que apesar de melancólica, ainda mantém a lanterna nas mãos - no lugar das armas - a procura de outros caminhos que a possam levar a novas auroras.
Nhambuli venera o silêncio, por isso leva-me frequentemente – no seu carro - à praia de Guinjata, onde ficamos longas horas a ouvir a música ora tranquila, ora retumbante, interpretada pelas ondas do Índico. Neste paraíso nós somos meros mirones sexagenários, não propriamente frustrados, mas sem muita esperança. É por isso que Nhambuli diz repetidamente sem se cansar, vou abandonar este país!
Nhambuli nunca saíu de Inhambane, provavelmente seja por isso que de dentro dela nunca nascem farpas. Dentro dela há harpas que soam nas palavras e no olhar. Os olhos de Nhambuli cantam, ou ao pestanejar ou ao fixarem-se sobre algo como agora que contempla o Índico, agradecendo toda esta dádiva de estarmos aqui, quando muitos neste belo Moçambique, definham no desespero, sem nada para comer. É injusto!
Mas há uma orca dentro da Nhambuli, e Nhambuli não quer que essa orca sobreviva. Então, o melhor é fugir daqui – segundo diz nos intervalos dos goles de scotch - no barco de Gilberto Gil, “vamos fugir deste lugar baby/Estou cansado de esperar que você me carregue”. Ela canta sempre essa poesia do Gil, sem celebração nos olhos, nem na alma, implantada na voz. Nhambuli é a rola que deseja ardentemente voar para outro horizonte, e deixar para trás esta noite que nunca mais amanhece.
O meu interesse por Luísa Diogo não será movido propriamente por uma obsessão, mas por um sentimento de que ela é um farol de outra luz, é isso que eu sinto. A minha relação com esta mulher não passa de um amor platónico, é por isso que mantenho a expectativa encandescente de vê-la no cume. Na verdade ela está lá, mas há quem a quer fazer passar por uma simples lamparina colocada por debaixo da mesa, Luísa nasceu para luzir, e muitos têm medo desse foco intenso de luz.
Em 2010, à caminho de Cabora-Bassa, passei por um lugarejo chamado Nhabulebule, e disseram-me que é ali onde nasceu essa manhúngwè, sem que os seus pais soubessem que estavam dando à luz um astro que brilharia na turbulência das nuvens. Luísa significa “guerreira gloriosa”, “combatente famosa” ou “célebre nas batalhas”. Então, com este nome, o bebé que nascia não tinha outro caminho que não fosse o das montanhas de pedra, onde vai cintilar com um cajado invisível, mas que existe. Nas nas suas mãos.
Os algozes da Luísa Diogo têm em mente que é preciso barrá-la antes que faça estragos. Também sabem que a uma “guerreira gloriosa” não se demove, não há qualquer possibilidade nesse sentido, é por isso que não dormem quando pensam nela. O pior é que Luísa está pronta a sorrir em todos os momentos, mesmo estando no cadafalso, é isso que lhes atemoriza. Nunca veio cá fora pedir seja o que for, “combatente famosa” não pede, pois sabe que ainda não chegou o tempo da última passada. A passada crucial!
Em Nhabulebule não há nyau (dança contestatária dos povos shewa), Luísa Diogo não contesta, usa as asas de águia que trás por dentro para se manter nas alturas onde os pequenos jamais chegarão. Ela será para sempre o paradigma dos nyúngwès e de todos os povos de Tete e de todos os moçambicanos que defendem essa utopia de um novo amanhecer. No coração da Luísa, todas as dores vão esbater-se.
Mas eu falo de tudo isto pelo amor platónico que nos liga, a mim e a Luísa, e ela nem sabe que a amo. Nunca me importei que ela saiba ou não, o que conta é que neste meu devaneio, veja essa mulher com sorriso escancarado, planando como a própria águia de Nhabulebule. É essa a minha imaginação.
Tenho um vizinho que entra todos os dias na minha casa e pede um copo de água gelada. Nunca me pediu comida, jamais mostrou qualquer interesse nesse sentido, mesmo que me encontre à mesa, na varanda, onde gosto de estar sozinho, em silêncio, olhando para a natureza e a degustar de alguma iguaria. É um homem resoluto que tem sempre a bíblia debaixo do braço onde quer que esteja, com certeza o livro Divino será o talismã desta figura a quem todos chamam Barrabás.
É um celibatário como eu, porém não há nada de profundo que nos liga para além da proximidade geográfica e do ritual do copo de água, somos muito diferentes e ele deve ter percebido que não tenho capacidade de levitar na órbita em que ele gravita, por isso não me dá cavaco. Já conversamos em poucos momentos, mas esses encontros eram afinal um ensaio que acabou não dando em em nada, Barrabás desistiu da minha companhia.
Barrabás fala em parábolas, busca incessantemente os sentidos escondidos do Génesis ao Apocalipse, passando pelos Provérbios onde a Sabedoria de Deus eleva-se e depois espalha-se sem perder fulgor, por todos os rios abudantes da bíblia. E toda esta avalanche parece, aos olhos da sociedade, ser o motivo da louura deste indivíduo com verbo afinado e infinito vocabulário. Diz-se em todo o lado que Barrabás é um demente, eu nunca acreditei nessa afirmação sem qualquer base científica.
Chamam Barrabás ao meu vizinho, eu também o chamo assim, pois em momentos de aparente raiva, ele cerra os punhos e grita, libertem Barrabás! Grita assim também quando entra na minha casa, e eu adoro ouvir esse refrão que me dá um terramoto por dentro, libertem Barrabás!
Posso estar no quarto a descansar, mas quando oiço o grito de guerra do personagem que mora aqui ao lado, salto logo da cama porque Barrabás quer um copo de água geleda para matar a sede. Nunca o recusei e jamais quis imaginar o que aconteceria se um dia eu dissesse a ele que estou cansado de te dar de beber. Se calhar nesse dia estaria a perder um guia.
Provavelmente esteja na casa dos sessenta, transborda saúde. O cabelo, revolto com o de Sansão em fúria, não está propriamente limpo. Ele também não é uma pessoa propriamente cuidada, contudo, no seu interior, existe uma alma ardente, acesa por cima de extensas fogueiras. Há quem diz que não, que Barrabás está apagado por dentro, ele é a sobra das cinzas, senão não gritaria com raiva ordenando a libertação de um ladrão perigoso que é o próprio Barrabás.
O real Barrabás já esteve na eminência da morte, pendurado na cruz ao lado de Jesus Cristo que era vaiado, humilhado. E uma voz ressurgiu perguntando, destes dois aqui, um será libertado, qual deles é que vós quereis que seja poupado? E a multidão respondeu, libertem Barrabás! Libertem Barrabás! Libertem Barrabás!
E hoje o meu vizinho não se cansa de repetir aquele turbilhão de vozes, libertem Barrabás! Libertem Barrabás! Libertem Barrabás! Faz isso nas ruas, nos labirintos dos subúrbios onde vive, e também quando vem à minha casa pedir um copo de água gelada, num gesto que ultrapassa todo o meu entendimento.
Já antes de pairar por aqui a Covid-19 eu era uma mulher sem esperança, não acreditava no futuro, nem meu nem da minha cidade. Há sinais que me chegavam de vários lados com a mensagem de que do outro lado da porta não há nada, e eu levei tempo a perceber isso. Houve insistência por via de acontecimentos nefastos, testemunhados pelo silêncio que afinal vem dos tempos, para me fazerem entrender as parábolas, então acabei sentindo que ao final do dia não haverá flores para colher.
Nasci aqui há mais de 70 anos e nunca vi nada de extraordinário a acontecer. A princípio virava-me contra aqueles que saíam e não voltavam mais, eu sempre pensei que aqui fosse um paraíso. Por isso era incompreensível que alguém abandonasse um paraíso, era assim como eu pensava. Mas agora percebo esse êxodo dos filhos da dita “Terra da boa gente”, têm medo de voltar. Temem sucumbir como eu, que na verdade estou em estado vegetativo.
Um amigo meu, cuja intimidade vem dos tempos de infância, apareceu na minha cidade vindo da Europa, depois de longos anos de ausência e disse assim, Nhambuli, quero construir um complexo de lazer para divertir a juventude aos fins-de-semana, e o lugar escolhido é um bairro que fica a cerca de cinco quilómetros em direcção à praia do Tofo, saíndo do centro da urbe.
Delirei ao ouvir aquilo que me parecia uma música afinada em grandes conservatórios. O sonho em si era lindo, capaz de atrair o belo, porém a realidade veio mostrar que o homem que acabava de desembarcar com um projecto daqueles no regaço, não conhecia com profundeza o terreno que pisava, afinal movediço. Ergueu as infraestruturas que incluiam uma piscina para o público. Fez publicidade. Conquistou de facto a juventude que foi em avalanche. Badalou-se o complexo em terras outras. Vieram músicos de renome para noites de festa, em catadupa, mas pouco tempo depois a casa fechou as portas e o jovem regressou à Europa. Deixando seu sangue vertido no chão. Em vão.
Eu acreditava no sonho do meu amigo. Ia lá sempre passar o tempo e beber a minha cachaça e queimar o tempo num lugar retirado e tranquilo, e chegava mesmo a mergulhar na piscina sem qualquer complexo de mostrar o meu corpo envelhecido e enrugado, eu vibro por dentro mesmo assim. Mas o sol não demorou a cair no ocaso e deixou aquelas ruinas que ainda hoje me flagelam o espírito.
Não era a primeira vez que eu chegava a um limite doloroso como este, mas agora o meu cepticismo quanto ao futuro da minha cidade, que entrou em decadência, contrariando os tempos de euforia da juventude, aumentou. Não acredito no amanhã, e o que me resta é ruminar as dores sem poder fazer nada. Absolutamente nada! A não ser passar o tempo a beber cachaça e ouvir a música de Elizeth Cardoso, “Eu bebo sim”, sem esperança porém, de que o sol vai nascer outra vez na minha cidade.
Se calhar já cheguei ao ponto em que devo parar e prescrutar os últimos sinais do abismo. Sinto isso na minha incapacidade de socialização. Tento inventar novas palavras mas vejo que estou metido num beco sem saída, e o meu poço está seco, nem lama tem. Nas intervenções que tenho feito para as pedras existentes dentro de mim, a percepção é de que estou a plagiar-me em cada sílaba, e a plagiar os outros. O eco que volta dessas pedras interiores raspa-me dolorosamente a profundeza do coração, que deixou de ritmar ao compasso da juventude.
Sentado sozinho na minha varanda onde fumo lhamba sem parar, vejo tudo a metamorfosear-se em meu redor, e chego a conclusão que na verdade estou no limite, então o melhor é não trazer à memória as incongruências que comandam a minha vida desde o início. É melhor assim, até porque estou no palanque falando para a opacidade, ninguém me ouve, nem eu próprio me oiço. Não oiço nada, senão as mesmas palavras cansadas de mim de tanto repeti-las até a náusea.
Mas este silêncio que outrora debruava o paraíso da minha luta pelo amor, transformou-se em sismo, abala tremendamente a minha alma. Nem posso chorar, a Zabeli não está aqui para enxugar meu rosto. Ligo para ela.... nada, não atende! Envio mensagens atabalhoadas pedindo perdão... também nada, não responde! Ameaço-a dizendo que vou-me suicidar se ela não voltar, e a resposta, desta vez, vem da gargalhada dos mabecos.
Sou o fósforo inteiro sem glória, pronto a arder e queimar-me todo, deixando a cinza que voará aos pés dos sabujos. Estou à espera da faúlha que vem devagar para este limite onde me rigozijo por ainda poder tirar algumas palavras do meu poço sem água nem lama no fundo. São as mesmas palavras, eu sei, recusadas por todos de tanto serem repetitivas até se tornarem supérfluas. Desprezíveis.
O que me reconforta é que vou morrer fumando lhamba enrolada em papel arrancado dos meus livros que nunguém compra. Então estou a fumar as palavras que eu próprio escrevi em noites de solidão, num quarto onde ainda sinto o perfume da Zabeli. Embevece-me fumar as palavras buriladas ora com sentimento mais profundo, ora com gozo.
É este o lado belo da loucura, quando a gente chega ao limite e dá conta de que perdemos a capacidade de inventar novas palavras, novo futuro, e só nos resta fumar profusamente a lhamba enrolada em papel arrancado dos livros que nós mesmos escrevemos. Livros que ninguém compra, e se ninguém os compra é porque ninguém os lê. Nem a Zabeli, que vai-me matando aos pedaços.