No fim-de-semana passado voltei a equacionar uma ida ao Major: Major Araújo. O nome antigo de uma rua boémia da baixa da Cidade de Maputo, outrora Lourenço Marques. Enquanto a decisão tardava aproveitei e recuei no tempo da última aparição. Na altura, fui ao local com a viva lembrança de uma afamada sedutora e esbelta trigueira que depenara – o bolso e o físico - de um amigo em troca de um misterioso “bigodinho”. E também influenciado pelo sugestivo cartaz da noite. Na realidade fui com uma dupla missão: O “bigodinho” (a principal) e o cartaz (a tempestiva). Já conto.
No local, cumprida a formalidade de segurança, entrei e a esbelta trigueira – que não passava despercebida - estava cintilante num canto. Fingi que não a vi. Durante a noite – estrategicamente - optei pela missão do cartaz. Uma prioridade - com justeza - a de muitos. A sala estava abarrotadíssima e oscilou, tal abalo sísmico, no momento do anúncio do último “show” de “striptease”. Era o cartaz da noite: uma dominicana e das mais cotadas “stripper”. A primeira vez em África. Na prática um regresso. O tom dos relevos que lhe esboçavam o corpo sinalizava as suas origens. Eram 3h23 da manhã de um domingo. Não me esqueço da hora porque guardo o “print” da conta que paguei pouco antes da entrada da dominicana.
Nesse dia estava confiante. Chegar, ver e vencer. Para tal estava em boa companhia norte-americana: Benjamin Franklin, Ulysses Grant e Abraham Lincoln. Amigos que não me embaraçariam na hora dos custos do “bigodinho” ou de um bom domingo dominicano que seria uma ímpar e boa oportunidade para passar à limpo uma velha curiosidade suscitada por um amigo – o Gabarolas, Gabo para os próximos – a propósito de umas férias passadas na República Dominicana.
Das férias do Gabo e do contado por ele – ao grupo confidente de amigos – retenho a descrição forense do que ele apelidou de “atracção turística”. Adianto já que o cartaz da ““stripper” - hoje a capa do meu álbum-baú de posters - até que podia servir de elemento de prova. Uma outra atracção, desta vez artística, foi o semblante do Gabo, carregado de uma “maldade” sem precedentes, enquanto e apoiado com gestos, narrava - com detalhe cirúrgico – toda a anatomia do complexo turístico das dominicanas.
Solicitado que contasse se tinha apenas visto ou visitado alguma unidade hoteleira - que correspondesse ao descrito – Gabo respondeu que reconhecia a pertinência da questão, incluindo o gozo da partilha, mas que preferia o silêncio em assuntos de intimidades. A atitude gerou um burburinho no grupo. Foi considerada uma tamanha falta de respeito e o cúmulo da insensatez e do egoísmo. O mesmo que ficar num monólogo interminável e até ao túmulo depois de passar uma noite com a monumental Beyoncé, cantora e actriz norte-americana.
Voltando ao quartel do Major. A esbelta trigueira – que nunca disse o nome – diante da minha aposta num projecto internacional partiu para um compulsivo nacionalismo-consumista. Do tipo: primeiro o produto doméstico e o excedente - havendo – podia ser exportado. De repente e do nada, enquanto ela untava o meu corpo de fumo de cigarro que lhe saia pelos orifícios do vício, senti um apertão na baixa do regadio do Chókwè (conhecido pela produção de tomate). Em seguida um outro apertão. Preferi não denunciar a dor que se foi suavizando à medida que a sua voz, no meu ouvido, sussurrava: solte a ATM que te faço um “bigodinho” histórico. Foram as últimas palavras que me recordo desse dia.
No passado sábado, transcorrido o tempo de um mandato quinquenal, depois de hesitar face ao mau tempo que se avizinhava, decidi voltar ao quartel do Major. Chamei o táxi e o típico “estou a chegar” foi a resposta. Enquanto esperava senti uma fumada do néctar de palmeira do índico. Era do casaco (de tom militar) que só voltei a usar este sábado. Depois da última ida ao Major guardei-o com medo de que o aroma desvanecesse e eu ficasse sem referências físicas dela. Tinha a vaga esperança de um dia encontrá-la (a esbelta trigueira) e o casaco seria uma espécie de prova do crime.
Na quinta-feira anterior tinha recebido um suspeito correio electrónico que me levava a ela. Não me lembrava que a tivesse passado os meus contactos. Combinamos que passaríamos o sábado no mítico local e que a surpresa eu já sabia. No fim da mensagem ela assinou “b” que me remeteu ao “bigodinho”. Não me exaltei em nome do foco da nova missão: desvendar o célebre e misterioso “bigodinho”. Tinha prometido e que contaria aos meus amigos.
Voltei a ligar e o taxista não atendeu. Por sinal o mesmo da última ida ao Major. Não podia fazer nada. Tinha que esperar. É o meu “taxista da sacanagem”. Cada um tem o seu. Imaginem o estrago social de um megafone nas mãos dele. Oxalá – e cá eu não esteja – quando os taxistas descobrirem que podem fazer um extra com as editoras.
A madrugada já se fazia sentir. Fiz mais uma chamada de insistência. Desta vez nenhum sinal. Suspeitei que o taxista tenha feito um desvio de aplicação de uma entrega. Os taxistas também são de carne e osso. Para estragar o dia: uma chuva torrencial, um corte de energia e o telemóvel sem carga. Acabei dormindo, enquanto esperava que o taxista viesse conforme o código que tínhamos em caso das linhas estarem “off-line”. Despertei por volta das 6h30 e deitado, durante uma hora, passei o tempo a pensar no que diria aos meus amigos, ansiosos por novidades, sobre o mítico “bigodinho”.
O mau tempo passou e desabrochou uma manhã de um domingo solarengo. Uma solitária caminhada matinal e de seguida uma pausa no café de sempre. Pouco depois a esplanada estava entupida de amigos do costume e de outros, homens e mulheres - alertados pelos primeiros e assim sucessivamente - que se apressaram ao local. Em princípio nenhum – dos do costume - viria por conta de compromissos familiares. O repentino movimento migratório foi depois da promessa (um “fake news”) que fiz, via “whatssap”. A mensagem dizia: Esta madrugada estive com a esbelta trigueira. Aguardo a vossa chegada em 15 minutos para revelar os contornos do misterioso “bigodinho”. Estou no local habitual. Saravá!
PS (i): As televisões abriram os respectivos telejornais com a notícia de um engarrafamento nunca visto ao domingo e de manhã. Não foi pior porque os automobilistas foram notáveis e exemplares na organização da gestão do trânsito em direcção ao café. Foi ainda destacado, na notícia, a prontidão, a pontualidade e organização dos moçambicanos, qualidades que escasseiam quando se trate de outras matérias e vitais para o desenvolvimento do país.
PS (ii): As eleições estão à porta. É expectável que fossem aplicados – o tempo, a concentração e a curiosidade investidos na leitura do presente texto - nos manifestos dos partidos e grupos cívicos que tomarão parte nas eleições do próximo dia 15 de Outubro. A propósito de eleições – e quanto aos polémicos e empolados dados da província de Gaza – vai uma ajudinha aos gestores das eleições (CNE/STAE): declarem que incluíram, no recenseamento eleitoral, os dados da Faixa de Gaza (médio-oriente),quiçá, uma extensão ultramarina – e por reivindicar - do antigo Império Nguni (de Gaza).
É sabido que Samora Machel trouxe a independência. Joaquim Chissano a paz. Armando Guebuza o caminho para a conquista da riqueza. Infelizmente, o que os três antigos presidentes trouxeram, não deixaram “tal&qual” para o actual inquilino da Ponta Vermelha, a residência oficial do Presidente da República (PR), Filipe Nyusi. Às costas – do mandato (2015-2019) – de Nyusi o peso dos quarenta e poucos anos de Moçambique e de contas por saldar: restabelecer a dignidade de um país independente; materializar uma paz permanente; e concretizar as condições para um país rico/desenvolvido.
Suponho que o PR – no seu primeiro dia de governação – tenha perguntado: por onde começar? Do que se viu e pelos primeiros actos – dois encontros com Afonso Dhlakama, líder da Renamo, o partido-armado da oposição e arqui-rival da Frelimo, o partido-governo – a sinalização de que a paz seria o ponto de partida. E, no momento em que o PR se posicionava para definir o passo seguinte, cai o assunto das “dívidas ocultas”. No pacote, seguia um bónus de outras dívidas e por saldar: a transparência, a integridade e a prestação de contas.
Num contexto atípico, um início e decurso de um mandato também atípico e de difícil gestão. Acredito que não tenha sido fácil ao PR deixar – ou tomar – decisões sobre assuntos transitados de outros governos ou sobre os quais os mais entendidos e tarimbados colegas do seu governo e cercanias (partido, assessores, entre outros) tivessem outro entendimento. Mário Soares, falecido estadista português, contava – a propósito de discussões nas sessões do governo a que presidia (e em tempos de grandes dificuldades) – que tinha perdido a conta de noites de insónias cada vez que os ministros, alguns deles, segundo Soares, muito mais inteligentes e experientes, esperassem que ele tomasse a decisão.
O mandato de Nyusi – prestes a findar – herdou problemas (e outros nasceram) cujas soluções – havendo-as – ainda não geraram efeitos positivos no dia-a-dia do grosso dos cidadãos. E mesmo assim – para o espanto de alguns – o país não despencou. E abono que tenha o valioso contributo do PR para que o país não despencasse. Porventura, o melhor – que ele esperava – carecesse de outras condições que os seus antecessores não providenciaram, tanto é que o quarto andar do edifício que lhe competia dar continuidade não se encontrava à superfície: era o quarto piso dos andares do estacionamento ainda no subsolo. Outra provável razão do país não ter despencado.
E por horas de fecho do mandato antevejo que o PR, no seu último dia de governação, pergunte: por onde sair? Espero que uma voz por perto diga: por onde entrou, Senhor Presidente! Neste caso pelo discurso da cerimónia de tomada de posse proferido no dia 15 de Janeiro de 2015. Uma nova leitura em jeito de balanço - à NAÇÃO - é recomendável. Vamos recordar alguns trechos:
“Iniciamos hoje uma importante etapa do nosso percurso histórico como Povo e como Nação que levará Moçambique a um novo patamar de Harmonia e Desenvolvimento.”
“Como disse na minha campanha: o povo é o meu patrão. O meu compromisso é de servir o povo moçambicano como meu único e exclusivo patrão. O meu compromisso é o de respeitar e fazer respeitar a Constituição e as Leis de Moçambique. E eu estou pronto!”
“Lutarei para que os moçambicanos sejam os donos e a razão de ser da economia, assegurando uma crescente integração do conteúdo local e a participação efectiva dos moçambicanos nos projectos de Investimento, em especial na exploração de recursos naturais…”
“Promoverei uma governação participativa fundada numa cada vez maior confiança e num efectivo espírito de inclusão. Este espírito de inclusão só se conquista por via de um permanente e verdadeiro diálogo. Necessitamos de construir consensos, necessitamos de partilhar, sem receio, informação sobre as grandes decisões a serem tomadas pelo meu Governo.”
“Dentro de dias anunciarei a equipe governamental que a mim se irá juntar (…). Dois critérios básicos nortearão os órgãos da administração pública e da justiça: o mérito e o profissionalismo.”
“Asseguraremos que as instituições estatais e públicas sejam o espelho da integridade e transparência na gestão da coisa pública, de modo a inspirar maior confiança no cidadão. Queremos uma cultura de responsabilização e prestação de contas dos dirigentes para que a que conquistem o respeito profundo do seu povo…”
“Eu, cidadão Filipe Jacinto Nyusi, sou o Presidente de todos vós! Tudo o que fizer e tudo o que farei será para que cada moçambicano se sinta parte do processo de desenvolvimento nacional. Mais unidos, mais fortes e mais determinados construiremos uma nação que todos celebramos como uma pertença comum. Neste acto solene, reitero a todos vós, moçambicanas e moçambicanos, no país e na diáspora, que dentro do meu coração cabem todos os moçambicanos. Vamos, todos juntos, construir um país à medida dos nossos sonhos.”
Um dos sonhos – e bem à medida – é a transformação do discurso oficial de tomada de posse, acrescido do respectivo balanço das promessas feitas, em discurso de despedida do mandato. Deste e de outros mandatos. Tenho a convicção que o PR, na esteira do seu inquestionável compromisso com o povo moçambicano, realizará este sonho, inaugurando um precedente histórico.
Assim, no final do mandato, o PR deixaria o país à entrada do túnel (da transparência, da integridade e da prestação de contas) e com a viva e renovada esperança para uma caminhada conjunta em direcção à luz (independência, paz e riqueza) que se vê, piscando colorido, ao fundo. Em caso de concordância e assim proceder: estaremos no bom caminho, Senhor Presidente!
Para a História: um legado excepcional de um mandato atípico. Saravá!
A propósito do debate despoletado por conta do desempenho do Presidente da República (PR) de Moçambique, Filipe Nyusi, numa entrevista a canais portugueses de comunicação social (RTP-África e RDP-África) - na sua recente visita a Portugal - no fundo não se estava a avaliar o seu desempenho, na aludida entrevista, mas o que cada um pensa sobre o que devia ser o perfil adequado para o cargo de PR, para o caso, em Moçambique. Na verdade, um debate adiado e que urge, tomando o interesse público sobre o assunto.
Em função do perfil (barómetro para avaliação) que se pretende para um PR – e decisivo para a escolha do candidato a nível partidário – o interessado (e não necessariamente o interesse dos outros por ele) faria a sua auto-avaliação e daí - em caso de conclusão positiva – o início das devidas articulações para se apresentar como candidato. Nestas circunstâncias, em princípio, este candidato apresenta garantias e mais comprometimento na defesa e promoção do seu projecto político quer na mobilização para a sua eleição quer na respectiva implementação, em caso de vitória e até como oposição. Algo que se enquadra em parte nesta visão foi, entre nós, o exemplo de Carlos Tembe, o falecido edil da Matola. Ele partiu de um projecto pessoal (Matola no Coração) e conquistou o Partido e a Matola.
Voltando a entrevista. Não tomei nenhuma posição (favorável e nem contra). Considerando que o faça, acredito que partiria de uma abordagem comparativa com outros líderes mundiais, passados e actuais. Sobre isto, tenho em memória uma intervenção, em Maputo, numa Cimeira da CPLP - e de estreia internacional – de Kumba Yala (falecido), antigo PR da Guiné Bissau. Ele fez questão de anunciar que gostaria de ser como o então Primeiro-ministro português, Engº António Guterres, actual Secretário-geral das Nações Unidas: Um orador nato e com discurso (de improviso) coerente e eloquente. Para Kumba Yala, suponho, este seria um requisito fundamental para um chefe de Governo/Estado.
E para o caso interno e tendo a Frelimo como referência. Certa vez, e numa entrevista a uma televisão local, Marcelino dos Santos, membro sénior e histórico da Frelimo, referiu que a capacidade do Presidente Chissano “engolir sapos” - uma característica ímpar no seio dos presidenciáveis na altura - foi determinante para o contexto em que Joaquim Chissano foi Presidente, sobretudo na gestão dos processos de paz e de transição económica (aposta numa economia de mercado) e política (passagem para o multipartidarismo) do país. Depreende-se que para Marcelino dos Santos, a escolha de um PR depende do contexto e desafios em que esse Presidente exercerá as suas funções.
Por tabela, a escolha de Samora Machel para substituir Eduardo Mondlane, depois da morte deste em 1969, foi determinante a sua qualidade de liderança e comandante da força militar, combinando com os objectivos de intensificação da luta armada rumo a independência. Ademais um sinal de demonstração de força e vitalidade ao regime português sobre a clareza do que se pretendia com a escolha de Samora Machel. Em relação ao Presidente Armando Guebuza? Pelo acompanhado a sua visão económica, entre outras características e ideias própria sobre o que o país deveria fazer - depois da chamada transição - jogou a seu favor na mobilização da Frelimo e de outras franjas da sociedade.
E para a escolha do candidato para os mandatos 2015-2019/2020-2024? O que determinou? Da leitura pesam mais razões de deslocação geográfica do poder, simbolizado no cargo de Presidente. Dos candidatos do partido Frelimo que se apresentaram nas eleições internas, em 2014 (todos provenientes acima do rio Save), o voto maioritário foi para o candidato Nyusi, embora os outros candidatos tivessem mais anos de experiência e credenciais no exercício de cargos governamentais.
Em parte, o facto de Nyusi ser oriundo da província do oil&gas (Cabo Delgado) - o berço da libertação política do país e pelo que se consta, o da futura libertação económica - foi determinante na sua escolha. Nessa condição, entre outros, em melhor patamar para gerir politicamente o dossier – extractivo, em particular as expectativas locais (Cabo Delgado) e até regionais (outras províncias limítrofes). A ideia de que o Sul tomará de assalto os “Biliões de USD” provenientes do gás, não está em pauta por conta deste factor. Além disso, reforçado com um outro factor: O gestor- mor da “petrolífera moçambicana” é procedente das mesmas paragens.
Dentro da mesma lógica: as razões que ditaram a escolha de Filipe Nyusi para candidato da Frelimo - deslocação geográfica do centro de poder - será o mesmo critério para a escolha do candidato da Frelimo para as eleições dos mandatos 2025-2029 e 2030-2034 – deslocando o centro do poder do norte para o centro do país. Suponho que o candidato será da província que nesse tempo tiver maior ou expectante papel económico. Tenho a nítida impressão que assim será e que o assunto esta devidamente acomodado e fora da agenda como substância de debate partidário.
Nesta matéria - escolha do timoneiro para candidato a direcção da Nação - a realidade do que acontece na Frelimo não difere tanto a dos outros partidos, observando as respectivas especificidades. Deste modo, a discussão do Perfil do Presidente da República no quadro do que se avaliou em relação ao desempenho do actual PR, na entrevista referida, continuará adiada por mais quinze anos - a menos que fenómenos contrários ao curso normal da História façam a diferença.
PS (i): Uma vez que as próximas eleições estão à porta e como diz um amigo: Podemos começar a discutir a proposta dos Termos de Referência para a definição do Perfil-base do Presidente e com cenários de características específicas em função dos contextos em que a governação será exercida. Durante o próximo mandato (2020-2024) - continua o amigo - um debate nacional e o consentimento das forças partidárias e cívicas - e com ampla base de apoio e legitimidade popular - sobre o perfil acordado para um PR em Moçambique poderá ser um bom ponto de partida para influência legislativa e dos candidatos dos próximos mandatos, pós 2020-2024, sobretudo a nível das escolhas internas dos que submetem as candidaturas.
Corria um dos anos da segunda metade da década noventa do séc. XX. O Professor Severino Ngoenha - com ar de um futuro preocupante - irrompe o anfiteatro com um jornal na mão. Era um dos semanários da praça. Ele vinha da UEM pela Julius Nyerere. No trajecto passou pela embaixada da China (em construção) e pela então agência do Banco Fomento, actual BCI (em remodelação). No caminho ainda cruzou com as sonoras sirenes de comitivas dos órgãos de soberania.
O jornal, a imponente embaixada da China (em construção), a agência do banco português (em remodelação) e as barulhentas sirenes dos órgãos de soberania foram motivos para o início de mais uma palestra. Na verdade uma viagem ao temp(l)o do conhecimento.
Depois de certificar a presença de todos os passageiros o Professor, na verdade o Piloto, projecta o jornal para a secretária de forma a deixar o título visível aos olhos de todos. Em seguida pergunta aos passageiros - ávidos de conhecimentos – se tinham lido. A resposta foi um harmónico Não! Depois pergunta - e para reflexão - se os passageiros notaram algo de interesse nas construções da embaixada chinesa e do banco português. Idem: Não! E por fim, pergunta se tinham ouvido as sirenes do poder. Ibidem: Não!
Óptimo. Nada melhor que decolar ciente que todos estão na mesma classe (económica) da aeronave. Penso que assim cogitou o Professor-piloto. Em diante a turma embarcou para séculos anteriores - com escalas técnicas no séc. XV, XVIII e XIX - e, na volta, uma passagem - em voo rasante - pelo século XX, na altura, aterrando tempos depois no séc. XXI. Foram quase duas horas de uma alucinante viagem ao passado, presente e futuro. Depois da praxe habitual de despedida, o piloto deixa a sala de desembarque sob o olhar vertiginoso dos seus passageiros. Estes, depois de recuperados, tentam juntar as pontas que cada um foi segurando ao longo da viajem antecipada ao séc. XXI.
Para começar, as pontas sobre os motivos da viagem: um título do Jornal (arrisco o “Demos”) que dizia: “Parece Sina: Os portugueses de 500 em 500 anos descobrem Moçambique”. Isto porque na altura começava a registar a entrada massiva de portugueses (e para alguns o regresso). E, historicamente, onde chegam portugueses, outras nacionalidades - tal hienas - se abeiram para colmatarem as fragilidades caninas dos lusos.
O segundo motivo foi a observação feita pelo Professor-piloto sobre as duas obras. Na primeira obra (chinesa) anotou que viu chineses no chão a ordenarem aos moçambicanos que estavam nos andaimes. O mesmo na segunda obra (portuguesa). O terceiro motivo – sobre as sonoras sirenes do poder – a sinalização das benesses do poder. Os passageiros complementaram com outros exemplos de outros sectores, em particular estratégicos, e de outras situações, que não diferenciava ou assim tendia.
E para reflectir, as pontas sobre o destino da viagem: A necessidade do país definir e operacionalizar o que pretende ser nos próximos tempos dentro do quadro e desafios da globalização, onde, por um lado, estão os globalizadores, e por outro, os globalizados. E, para concluir, as pontas sobre as lições e aprendizagem da viagem: Na verdade - entendo agora - quando o Professor-piloto largou os seus passageiros no séc. XXI queria que eles soubessem, se nada fosse feito, a realidade do país duas décadas depois, partindo da data da palestra/viagem.
Hoje, duas décadas depois, quem passe pelas obras que pululam em Maputo e pelo país fora - e pegando como referencial a China e Portugal - vê chineses e portugueses no chão (base) a direccionarem o que deve ser feito e, nos andaimes (topo), outros chineses e portugueses a executarem as orientações. Os demais – com responsabilidades na edificação do país – estavam distraídos – a todos os níveis - na discussão sobre os direitos da poluição sonora.
Foi esta uma parte da realidade encontrada pelos passageiros da viagem antecipada ao séc. XXI: A economia e as finanças tomadas por alienígenas e os indígenas aos empurrões à caça do que ainda sobrava (e também dependente) - o controle do barulhento “tacho político”.
E sempre que o espaço do “tacho político” escasseia – porque, entre outros, a fila é cada vez enorme - alargam-no, ampliando a e(x)terna dependência de alienígenas.
PS (i): Quando a China decidiu construir no país a sua imponente embaixada foi um sinal claro que no séc. XXI Moçambique seria uma infinita prioridade. Quem passe pela Av. Marginal não lhe passa despercebido a imponente embaixada dos gingos (americanos) em construção. A História ensina – e exemplo local não falta - que quem constrói uma embaixada daquela dimensão é um sinal que por estes lados tão já não removerá o pé.
PS (ii): Perante estes e outros factos tão evidentes o país não se movimenta para arredar o pé do pedal de travão. Não se explica que se continue a desperdiçar o tempo a discutir a terminologia da paz que se segue e as condições para a ocupação de cargos. Desde os cargos do topo à base – dos mais sonoros e com carga apetitosa aos de menor sonoridade e apetência – e todos vitais na distribuição de benesses. E, infelizmente – para agravar – tais benesses são provenientes e no limite dos que fazem o business (e estes de certeza que não são os lobistas /prostitutos de negócio referidos pelo Presidente da República na recente visita à Portugal).
Em tempos li num texto - sobre a amizade – que um certo amigo disse ao outro que sempre que puder: abrace, telefone e convide. Abrace porque o abraço é a democracia do afecto. Telefone porque telefonar – nem que seja para dizer que está vivo – demonstra quanto a sua existência pode ser importante para os outros. Convide, porque convidar é o exercício da partilha. E partilhar não é o mesmo que dividir. É fazer dono de uma coisa vários.
Ainda o texto e citando um trecho: “Se eu tivesse ouvido esse amigo, talvez hoje pudéssemos sair, tomar uns copos, falar sobre coisas e a vida. Mas a verdade é que nesse momento ele deve estar em algum lugar do planeta a dizer o que pensa a alguém que mereça a sua companhia muito mais do que eu. Não sei se o perdi: Mas será que um dia voltarei a encontrá-lo?”
E se eu tivesse seguido à risca estes ensinamentos talvez não tivesse necessidade de contar o que abaixo e em breves linhas partilho. E faça-o na esperança de que cada um assuma a sua quota-parte de responsabilidades no que lhe disser respeito.
“Em África cada velho que morre, é uma biblioteca que arde!”. Este é um ditado notável e célebre do historiador africano, Hampâté Bâ, que ficou historicamente lavrado e lacrado de forma indelével. Imagine um dia amanhecer com o Arquivo Histórico de Moçambique em cinzas. Ou suponha que furtem o seu laptop que até então guardava todo o seu arquivo audiovisual entre outra e diversa informação relevante, incluindo a sua tese de doutoramento por submeter na noite do dia em que o larápio achou por bem e dolo que o laptop – por arrasto o conteúdo - não lhe pertencia.
O que lhe veio a cabeça é mais ou menos o meu caso por estes dias depois que o ditado de Hampâté Bâ bateu - no último sábado - uma porta muito próxima que é também minha. E numa semana bati mais vezes a porta da “Biblioteca” ardida - do que em décadas. No quintal, à sombra do limoeiro, logo à entrada, tenho tido dias - na mente - de intensas saudades do acervo oral – que sempre esteve disponível – e de que não me dei tempo para a devida consulta. Infelizmente, não estou sozinho.
Hoje reconheço que se eu tivesse escutado Hampâté Bâ teria visitado mais vezes a “Biblioteca” que se foi e com papel e caneta. E teria muito mais para partilhar, tornado as vastas prateleiras do seu acervo em património democrático de todos.
Infelizmente, por mais que cada um tenha ou compre mais tempo, não existirá tempo nenhum para a partilha do que ficou por absorver das “bibliotecas” africanas por conta de afazeres que se revestem - a partida - de importantíssimos e inadiáveis, deixando – a posterior - que a despedida seja de lamentação e não de celebração.
Contudo, acredito que reste uma réstia de consciência suficiente e perturbante e que a partir deste momento cada um - observando as devidas as excepções - possa iniciar e manter, a prazo infinito, um roteiro de visitas às respectivas “Bibliotecas”. A fórmula é simples: Abrace, telefone e convide sempre!
Não adie, ligue agora! Evite que o seu telefone toque primeiro e de outro lado da linha, uma voz trémula, fale que a “Biblioteca” – que teimas em visitar - ardeu. E no final da chamada, a voz tremente e já aos prantos, ainda revele: Na noite passada (a “Biblioteca”) perguntou por ti várias vezes.
Saravá “Bibliotecas” Africanas!
PS (i): Na passada segunda-feira, disse a adeus a uma “Biblioteca” da família e de amigos, em particular os do Bairro 25 de Junho (Chopal). Na despedia do Tio Dias (a biblioteca que partiu) – um homem de elevada cultura de cidadania - lembrei-me de um dia, em 2013/14, ele ter questionado a prioridade governamental em instalar uma linha o Metro de superfície como uma das soluções na ligação entre os municípios de Maputo e Matola. Com certa perplexidade perguntou a quem lhe ouvia – um deles era eu - se no Metro i) as Mamanas entrariam com a trouxa dos seus negócios, ii) se o Jovem entraria com o saco de cimento e a chapa de zinco, e iii) se os sacos das compras do mercado teriam espaço. Estes são apenas alguns dos exemplos. E como prioridade, no lugar do Metro, ele recomendou que se investisse num transporte misto de passageiros e carga. E pelo que me consta, cinco/seis anos depois, este tipo de transporte foi equacionado como prioridade pela recente criada Agência Metropolitana de Transportes de Maputo e já existem passos concretos dados. Para mim, concretizado o projecto do transporte misto, este será o “Tio Dias”, seja qual for o nome oficial ou informal. Saravá, Tio Dias!
A actual tensão no médio-oriente é ruim para o mundo mesmo que não resvale em guerra aberta. As consequências das tensões e guerras nesta região do globo são familiares. Algumas das consequências têm sido a reconfiguração territorial, as mudanças de correlação de forças e os realinhamentos de alianças estratégicas. Existe uma outra consequência não tão importante mas interessante: a reconfiguração do vocabulário.
Quando foi da segunda guerra do Iraque (2003) despoletou um debate ou a curiosidade em se saber se os americanos entrariam por ar ou terra em Bagdade, capital Iraquiana. Creio que um General americano - e a propósito da preocupação - tratou de esclarecer, referindo que “O Objectivo é Bagdade” e que não interessava se era por terra ou via aérea. E assim encerrou o assunto. Uma vez tomada a Cidade de Bagdade e o resto do Iraque, num (Tikrit) e outro local (Faluja) aconteciam alguns ataques dos iraquianos que os americanos apelidaram de “Bolsas de Resistência”.
A “Tribo Lazer” (grupo de confraternização) a que pertencia tratou na altura de acomodar os novos termos no vocabulário corrente, aliás no vocabulário líquido. Certo dia - desenrolava a preparação de um evento de pretexto para uns “Copos & Papo” – e um assunto aflige o “Grupo de Contacto (GC)”, equipe responsável pela organização da festa. Existia a dúvida se o GC compraria um barril de cerveja 2M ou de Laurentina Clara. Não havia dinheiro para dois barris. O impasse foi sanado quando um dos membros do GC disse “não interessa, seja Laurentina Clara ou 2M, o objectivo é Bagdade”.
No dia da festa, chovia na Matola (o local do evento). O mais próximo do GC da casa anfitriã - preocupado com a chuva, pois a estrutura e toda logística estava montada - ligou para um dos membros do GC, a manifestar alguma apreensão se a tribo iria comparecer. O anfitrião ficou descansado quando do outro lado da linha ouviu que ficasse relaxado que a chuva era apenas uma “Bolsa de Resistência” e que não atrapalharia o objectivo traçado e lacrado com a chancela de urgente e inadiável.
Vêem-me lágrimas de saudades só de lembrar as grandes batalhas cognominadas de “O Objectivo é Bagdade” ou “O Assalto à Bagdade”. Nesses tempos eu era polígamo - assim como tantos outros – e talvez a razão das saudades. Eu participava nas batalhas se as minhas três namoradas lá estivessem ou se permitissem que eu as levasse. Era inegociável: Os quatro ou ninguém.
Actualmente e por razões alheias a minha vontade não tenho marcado presença. Uma ou duas vezes ao ano participo em algumas cerimónias de exaltação de heróis anónimos de antigas batalhas (um dia conto algumas das batalhas mais emblemáticas). São cerimónias comparadas ou ao nível das realizadas por ocasião da celebração de mais um aniversário do “Desembarque da Normandia”, o famoso dia “D”, que determinou o final da 2ª Guerra Mundial.
A razão da ausência é uma e única: As minhas três namoradas ( e sem exclusividade) já não fazem parte deste mundo. Foram sumariamente executadas. Corre um inquérito para averiguar o “Modus Operandi” da execução e apurar responsabilidades. E também, em paralelo, corre um outro inquérito para se apurar a veracidade de informações que sustentam a possibilidade delas terem sido induzidas a uma situação de coma cerebral. Amiúde - nas redes sociais - circulam versões que defendem esta hipótese, pois nunca foi exibido a certidão de óbito das três e inesquecíveis namoradas: A Laura, Tina e a Clara. Até que tudo seja esclarecido, confesso: Tenho muitas saudades de ti, Laurentina Clara!
Por estes dias que Trump, presidente norte-americano, ora ameaça apertar o gatilho, ora decreta sanções ou diz que está aberto ao diálogo com Teerão ( capital do Irão), tenho pensando nas batalhas que se travam por cá por conta da entrada de um novo “player” no xadrez alcoólico da Pérola do Índico. E venho imaginando os Departamentos de Guerra (DGs) das duas companhias - eufemisticamente denominados “Departamentos de Marketing”- a traçarem os respectivos objectivos estratégicos com recurso a frases do tipo: “O Objectivo é Jardim” ou, para a contraparte, “O Objectivo é Bobole”.
A terminar, o apelo para que o vocabulário não seja actualizado por conta de uma nova guerra no médio-oriente: Que “O Objectivo é Bagdade” não necessite que passe para “ O Objectivo é Teerão” (e por arrasto, que as “Bolsas de Resistência” sejam de resiliência para outros desafios da humanidade); E no que estiver omisso, que esclareça ou decida o leitor.
Recordei e conto o episódio abaixo - verídico e passado há duas décadas - a propósito dos festejos pelo anúncio de 25 biliões de dólares americanos e a renda de dois “bis” anuais, a partir de 2025, resultantes do investimento da Anadarko na exploração do gás da Bacia do Rovuma, província de Cabo Delgado.
A festa de aniversário prometia. Dos que se deslocaram – comitivas de Maputo, Xai-Xai e Chocwe - fui o último – vindo da capital - a chegar à vila da Macia, província de Gaza. A partida não foi difícil constatar que as marcações ao dito sexo fraco já haviam sido feitas e para uns com antecedência postal. Estava frio e a medida que a madrugada caía exigia maior celeridade às intenções (implícitas) de cada um. Entre os convivas, o Adão e o Neco, procedentes de Maputo, acabaram os protagonistas da festa.
O Adão, da “terra do carvão”, saiu da capital com a ferramenta agitada tal era o desejo de estar com a dama com quem trocava cartas de amor e sonhos de uma Lua-de-mel nas margens do rio Zambeze. A sua missão: Chegar, triunfar e regressar com a dama. O Neco, da “terra da boa gente” e auto-intitulado “o charmoso”, trocou o conteúdo local por uma repentina presença americana em trabalho social por aquelas bandas. Ele jurou que cumpriria a sua (nova) missão: Mergulhar pelo Mississippi abaixo.
Por momentos um corte de energia junta as mulheres de um lado e os homens doutro. O Adão estava agastado e impaciente com a sua dama das águas do Limpopo. O seu requerimento ainda não tinha sido deferido. Ela alegava que eles precisavam de tempo, pois era a primeira vez que se viam, embora a correspondência postal fosse longínqua. O Neco, na mesma situação em relação ao deferimento, disse que a “state-girl” preferia uma chuva mais miudinha, agreste e ordinária. Um tchim-tchim encerra a reunião improvisada de feedback e o regresso da corrente eléctrica no exacto momento em que ancorava a 6ª garrafa de whisky entre protestos de uma excursão estudantil sem precedentes.
Eram seis horas quando a noite começou a despedir e a festa a despedaçar. A americana recolheu sem ter sido colhida. As outras, trocadas pelo whisky, rumaram ao “room”. Um amigo, Camito, foi sacudido ao tentar – na escuridão do quarto - uma incursão sem pré-aviso. O Acácio, a namorada aniversariante e uma amiga blindada, namorada de outro amigo que não se fez presente, tomaram os respectivos quartos. O Neco, reclamando da provocação biológica e da fala em vão, bateu em retirada. Do Adão, ninguém sabia. O resto prosseguia com mais uma garrafa e “bis” de doses de frango dados pelo gerente da Pensão em reconhecimento exaltado da volumosa capacidade ébria dos “vientes”.
O sol já se fazia presente e penetrava entre as grelhas do salão, ameigando os sobreviventes. Para o espanto destes, entre os raios de sol, ressurge o Adão em grande estilo, tal rei do Zambeze. Pergunto pela dama do Limpopo e ele - em pose majestática - tira do bolso do seu velho casaco azul um “Jeito” (preservativo) já sem jeito. E armado em laureado foi rodopiando o salão, exibindo o asqueroso troféu. Leve e jovial disse que desceu para ver o ambiente e saber se o resto do pessoal teve algum sucesso.
De regresso ao seu quarto e enquanto subia a escada o Adão para e faz um giro, ficando em posição frontal com os sobreviventes. Em seguida acena as mãos como quem solicita silêncio para dar a palavra a “sua alteza”. Feita a vontade, finge uma vénia e com ar petulante e aprumo triunfal, declara: Fiquem com os deliciosos “bis” de frango que eu deleitar-me-ei com outro tipo de “bis”! De seguida, volteou e continuou a subir em direcção ao quarto - ausente durante um quarto de hora – e onde, supostamente, a sua dama reestruturava as condições necessárias para o “bis” anunciado publicamente e com pompa.
-Nãooooo! Não! Nãããoooo...! Era o grito de desespero do Adão que de tão sonoro foi ouvido na Praia do Bilene. Num ápice os mais ágeis chegam a zona dos quartos e encontram-no completamente imóvel à entrada do quarto número quatro. Ele não compreendia e muito menos acreditava na roubalheira que acabava de presenciar: O Neco estava em pleno usufruto do que seria o seu difundido “bis”.
Hoje desadormeci com sequelas da comparência numa das badaladas casas de pasto da “cidade dos urinóis nas acácias” por ocasião comemorativa (e antecipada) de mais uma data da (in)dependência da Pérola do Índico. Um momento que serviu para rever amigos e botar a conversa em dia. O que acontece com as conclusões destas conversas é matéria restrita a cada um dos amigos.
Desta vez – na conversa - uma parte considerável dos presentes, e a propósito de uma discussão sobre as “dívidas ocultas”, tinha em comum o facto de terem participado numa sessão de formação - nos anos 2009/10 - sob o tema: “As partes Ocultas do Orçamento de Estado”. A ideia fundamental da formação consistia em dotar os participantes do necessário arcaboiço técnico para descortinar - no Orçamento de Estado (OE) - itens secretos (qualquer semelhança com “a nossa secreta” é mera coincidência) que à primeira vista não são detectáveis. Algo do tipo “gungu, apanhei-te” das saudosas brincadeiras de infância.
O principal resultado da formação foi o estabelecimento de uma brigada de activistas-observadores do OE determinada a detectar movimentos estranhos dentro e arredores do OE, uma vez que este havia passado a centralizar a divisão do Bolo Nacional e cada vez mais com (dis)sabor estrangeiro. E face a tudo o que se sabe sobre o dossier das “dívidas ocultas” - durante o debate - os membros desta brigada foram sumariamente vaiados acusados de falta de brio e entrega no exercício da magna e soberana tarefa. A discussão não desaguou em pancadaria graças ao elevado nível de urbanidade e a tradicional troca acalorada de ideias no seio da sociedade civil, uma característica que se recomenda.
Dentre os que vaiavam havia um estratega de assuntos de defesa orçamental que não poupou críticas ao desempenho da brigada. Não obstante, esclareceu que a brigada foi traída pela geografia e a proximidade geopolítica inter-institucional do local onde se localiza as instalações do OE. Argumentou que o facto do foco da terminologia do assunto da operação – “pescas-guerra-negócios-banco-mar”- encontrar-se dentro do perímetro do último anel de segurança do “Palácio dos Arcos”, o “Bunker” do OE, na baixa da capital do país, confundiu os códigos do sistema de controle montado pela brigada de activistas-observadores
Em sua defesa, a brigada justificou que tal proximidade é um facto e seria contornada. Assim não sucedeu porque a razão-mor foi a manifesta incompetência técnica e regimental que não permitiu agir e nem reagir, atendendo que i) os módulos do curso sobre as partes ocultas do OE não abarcaram matérias relacionadas com a detecção de movimentos ilegais, prévios e a posterior, e ii) nos termos da acusação da PGR, o destino íntimo dos valores de parte da dívida escapa a esfera da jurisdição da brigada.
Os motivos arrolados, entre vários de bradar aos copos e prontamente honrados pelo garçon ”… aqui nessa mesa de bar/…no bar todo o mundo é igual/Meu caso é mais um é banal/Mas preste atenção por favor/…/Quero tomar todas/Vou me embriagar/…/Se eu pegar no sono/Me deite no chão/…” que minha grande esperança deixou em pedaços minha soberania. Quando acabei de cantar todo o mundo, em deleite colérico, gritou uníssono: O que fazer, Reginando? Antes de responder o bar fechou.
No acerto das contas, sempre problemáticas, ficou no ar e por fonte reputada que um consórcio tripartido (Doadores, Governo e Sociedade Civil, incluindo o Sector Privado) decidiu e realizou um seminário de planificação de estratégias, concluindo que era necessário mais uma formação para acompanhar o actual contexto e as “ameaças” decorrentes dos propalados biliões do gás que engordarão o OE num futuro próximo.
Os Termos de Referência já foram elaborados, faltando a contratação de uma firma de consultoria a fim de ministrar um curso intensivo subordinado ao tema “As partes Íntimas do Orçamento de Estado” cuja finalidade é a formação de uma brigada de analistas-patrulha do OE. Esta brigada será devidamente apetrechada, incluindo dispositivos de gás lacrimogénio para rechaçar o olfacto dos apóstolos domésticos pelos biliões do gás do Bolo Nacional que terá cada vez menos (dis)sabor estrangeiro a partir de 2025.
PS (i): Oxalá a firma de consultoria não seja a ferragem da esquina e contratada por ajuste oculto de natureza íntima.
PS (ii): Se a brigada de analistas-patrulha não trouxer resultados é recomendável que o país aposte no que de melhor sabe fazer e comece a lucrar pelo mundo com a troca experiências e consultorias sobre “As Partes Carnudas do Orçamento de Estado”
Por razões privadas tenho ido com certa frequência a Matola. No início até que era agradável, pois ficava pouco tempo e voltava. Depois foi um tanto aborrecido. Fico mais tempo e com intervalos espaçosos entre dois compromissos. E para quebrar a rotina, no fim-de-semana passado, liguei a um amigo que se mudou para aquelas bandas já passa um mandato presidencial. Perguntei-o onde podia encontrar um café (não necessariamente um bar/tasca) e estar numa boa cavaqueira a debater o pulsar da Matola e do país. Resumindo: eu queria saber onde é que se debate a Matola e o país na Matola.
O meu interlocutor - um combatente da cidadania (aproveito reivindicar a inclusão desta categoria na tipologia dos combatentes em Moçambique) - denotando alguma estupefacção com a minha ignorância respondeu-me que na Matola estavam com uma outra abordagem: Os monólogos. Uma espécie de colóquios solitários. Repostei que era uma abordagem interessante. Desliguei e perguntei cá para meus botões: Agora o que faço? Enveredar pelo solilóquio? Apostar pelo bar mais próximo?
Antes da decisão fui reflectindo sobre a nova abordagem dos matolenses. Decidi começar pelo próprio termo: Monólogos. Lembro-me de duas ocasiões em que me confrontei com esta palavra. A primeira foi na escola secundária na aula de língua portuguesa. E a segunda foi através de uma peça de teatro, creio do Grupo de Teatro Mutumbela Gogo, cujo título era “ os Monólogos da Vagina”. A primeira hipótese, porque longínqua, descartei. A segunda apresentava sinais que se encaixavam com uma das bandeiras-estandarte da Matola: Os fóruns extra-conjuntural (ditos escondidinhos/hospedagem interina). Estes são os espaços de debate da Matola? afinal, tais monólogos são momentos de reflexões ou de flexões?
Animado pela cogitação e inspirando em Mário Soares, um falecido estadista português dos tempos contemporâneos, ponderei outras hipóteses. Soares, falando do balanço do seu percurso cívico-político (e dos companheiros) de luta pela democracia nos tempos da ditadura de Salazar, disse: “…Passados tantos anos, pode afirmar-se que raros, raríssimos, foram os que traíram. Muitos se acomodaram, cansados pela dureza da luta ou vergados às exigências do ganha-pão que…vem quase sempre acompanhado de abdicações”. Partindo de Soares, pensei: O meu ilustre amigo terá abdicado da sua luta? Se for verdade, terá sido pelo cansaço das exigências do exercício de cidadania? Foi nomeado um PCA de uma empresa pública? A opressão dos engarrafamentos e a sujeição de viver na principal camarata do país não estarão a perturbar os matolenses?
As interrogações continuaram. E porque ainda não me sentia confortável continuei a ponderar outras hipóteses. Debalde. Decidi ficar por onde estava e a sorver suculentas tangerinas. De repente e do nada, talvez impelido pelo suco das tangerinas que me agitou o cérebro, vêem-me a memória o saudoso poeta José Craveirinha, recentemente aniversariante. Na verdade, e a propósito dos monólogos dos matolenses, lembrei-me da pergunta “uma população que não fala não é um risco?” de um dos gomos (trechos) do poema “as saborosas tangerinas de Inhambane”. Ainda em transe filosófico, adicionalmente questiono: E os monólogos dos matolenses não são um risco?
Quando dei por mim já era um matolense: estava em pleno e total monólogo. Antes que me adoidasse pensei em ligar ao meu amigo. De certeza que depois de cada sessão solitária em algum momento existiria uma plenária. Duas ou mais insistências atendeu e disse que as plenárias também tinham outra abordagem: decorriam nas urnas e que a próxima plenária seria em meados de Outubro próximo. Ele terminou a chamada – não esperou que o remetente exercesse esse direito soberano – referindo que a última plenária foi no passado mês de Outubro de 2018.
Recuei no tempo e compulsei o relatório da dita última plenária da Matola. Depois de aturada leitura e avaliando os resultados e o ambiente sereno do pós-anúncio dos mesmos é caso para perguntar: Os monólogos dos matolenses constituem uma nova forma de participação política? Não tenho a resposta mas por enquanto e a quem interessar - antes que os monólogos sejam à escala nacional - o aviso à navegação já foi emitido.
Na portagem - de regresso a capital e em contramão com os matolenses - dei por findado o meu colóquio solitário, avocando e concluindo que o lema “A Matola Primeiro” já fazia algum sentido e a trazer resultados. Por enquanto e como ponto de partida: a Matola como pioneira em novas abordagens de intervenção nos processos eleitorais.
Elísio Macamo, sociólogo moçambicano, conta num dos seus livros que numa das aldeias da província de Gaza, uma senhora idosa perguntou – com ares de impaciência – quando é que a independência acabava tal era o estado de precariedade em que se viu metida – e já não vislumbrava saída alguma - desde 1975, o ano da independência do país. A senhora ainda perguntou sobre o que é feito e o impacto dos programas de combate a pobreza do Governo, ONGs e dos doadores em que ela é uma das potenciais beneficiárias. Esta última parte não consta no livro.
A pergunta da senhora idosa levou-me a um artigo publicado num dos jornais da praça. Nesse artigo eu contava que um certo amigo das lides do árduo combate contra a pobreza em Moçambique - cuja arena são as unidades hoteleiras e não as agrícolas – confessou o seu medo pela lista de presenças, vulgarmente tratada por lista dos participantes. O pavor é tal que ele já não assina a lista nas conferências em que participa ou até organiza e muito menos participa na sessão da foto de família. Arranja logo algum subterfúgio quando a lista chega às suas mãos quer à entrada, quer já aclimatado para mais uma espinhosa missão no combate a pobreza.
O amigo revelou que a fobia começou depois de um sonho tão real. O sonho Acontece em 2025, o último ano da AGENDA 2025, um documento orientador de longo prazo aprovado pela AR em 2003/4 nos tempos do presidente Chissano. Este documento traça as opções que Moçambique devia seguir rumo ao almejado desenvolvimento. Em outras palavras e no mínimo: um país sem pobreza.
Vamos ao sonho. Numa bela manhã de segunda-feira o país acordou com 11 pessoas assassinadas com requintes de malvadez, sendo uma em cada província, incluindo a Cidade de Maputo, e no hotel mais requintado de cada cidade capital. Foram 11 capitais, 11 hotéis, 11 mortes. Um horror. As vítimas – destacáveis combatentes do debate hoteleiro contra a pobreza – estavam penduradas de cabeça para baixo nos lastros dos sumptuosos candeeiros das principais salas de conferência de cada hotel. Na testa de cada uma das vítimas e na tela de cada sala estavam estampados em letras garrafais e com recurso ao sangue – ainda fresco - das vítimas: “R.B”.
O que significa R.B? Quem são? Porquê mataram? Quem são os que foram assassinados? São algumas das questões que dominaram o quotidiano e as reportagens da imprensa. A polícia entrou em acção no encalço dos presumíveis autores com as mesmas questões. Uma equipa composta por diversas especialidades foi formada e, em sete dias, devia apresentar um relatório pormenorizado sobre o crime. No oitavo dia o chefe da equipa de investigação anunciou os resultados numa concorrida conferência de imprensa.
Quais foram as conclusões? A polícia, depois de aturadas investigações nos locais de trabalho dos assassinados, descobriu que em todas as cópias dos relatórios dos seminários/workshops não se encontrava a última página ou um anexo, referente à relação dos nomes, endereços, contactos, local de trabalho e função do pessoal que participou no evento a que cada relatório fazia referência: era a famosa Lista de Participantes em falta.
Um outro dado revelado pela polícia foi um documento, designado confidencial, encontrado num dos hotéis onde ocorreram as mortes. Esse documento inclui uma lista longa, e por província, de nomes de pessoas a abater. A lista estava por ordem regressiva em relação ao número de vezes que cada um terá participado num seminário sobre o combate à pobreza ou que aqui desaguaria. Por coincidência, as 11 vítimas - destacados militantes da sociedade civil e da administração pública na luta contra a pobreza - eram as primeiras nas listas de cada província.
A polícia terminou a conferência de imprensa apelando a calma. E para evitar o pânico generalizado na sociedade e nas famílias dos visados na lista de cidadãos a abater, a polícia informou que não publicaria os nomes mas que começaria a tomar medidas para proteger os alistados. Sobre a sigla “R.B”, a polícia referiu ter apurado que a mesma significa: Revolta dos Beneficiários. O eterno grupo-alvo, incluindo a senhora idosa, do combate contra a pobreza. Uma agenda de barba branca e rija de entidades governamentais e não-governamentais, nacionais e internacionais.
-É por isso que eu tremo quando estou diante de uma lista de presenças para assinar. Temo constar da lista da Revolta dos Beneficiários que a polícia descobriu num dos hotéis. O pavor é tanto que chego a sonhar que tive acesso a lista completa. Com estas palavras o amigo terminou o relato da razão da sua fobia. Desde esse dia também passei a ter receio, optando algumas vezes em faltar aos eventos.
P.S: Conto isto porque depois de um longo interregno decidi matar as saudades e fui a um seminário na semana passada. Estava consciente que não iria assinar a lista de presenças e nem fazer parte da foto de família. Logo que cheguei ao local do evento notei que a metodologia continua a mesma. Fui interpelado pelo protocolo para assinar a lista. Felizmente não assinei, graças ao cumprimento efusivo de um outro participante. Não tive a mesma sorte quando já estava sentado. A moça – sempre escolhida a dedo - que me entregou a lista até estranhou a minha hesitação e o jeito trémulo ao assinar. E como sempre, o seminário abriu, decorreu e fechou dentro da normalidade e “gastromicamente” intercalado pelos nutritivos intervalos de café e almoço e no final, já noite, por um soberbo cocktail. Escuso dizer que o epílogo foi bem “à nossa e numa boa maneira”.