Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
Nando Menete

Nando Menete

segunda-feira, 23 setembro 2019 12:45

Samora e Eu

Tenho medo dos meses de Setembro e de Outubro. Temo que Samora Machel, o saudoso 1º presidente da pérola do índico, venha à minha casa e como sempre a altas horas. Da última vez em que bateu a minha porta foi no dia 19 de Outubro de 2016, data da sua partida em 1986. Abaixo uma transcrição considerável (e com alguns arranjos) de um texto (“a propósito de mais um 19 de Outubro”) que publiquei num dos semanários da praça. Depois volto aos meus temores.   

 

“Dia 19 de Outubro de 2016!De dez em dez anos, Samora Machel bate a minha porta. O som da batida é já do meu domínio, embora desta vez fosse menos sonoro, mas mais incisivo. Abro! Samora esboça um sorriso diferente, enquanto entra e caminha militarmente pela casa. Faço um compasso de espera e fecho lentamente a porta. Feito o reconhecimento, Samora conclui que estou só. Vou ao encontro dele para a saudação e, já próximo, ignora-me. Entre rodopios e assobios, vai andando pela casa dentro. Era a terceira visita de Samora. Bem ao estilo da ofensiva política e organizacional.

 

Isto está nublado. Penso. O que terá acontecido desde a última visita há dez anos (2006)? Pergunto aos meus botões. Silêncio total. Decido que o melhor é sentar e relaxar ao som das melodias revolucionárias e do sapateado das botas russas, calculo. De rompante, Samora interrompe a orquestra e com o indicador em riste pergunta:

 

 - Então! O Livro?

 

- Que livro? Respondo, dissimulando que não me lembrava.

 

Nessa última visita, a segunda, tinha-lhe prometido que escreveria finalmente o livro, retratando a “nossa amizade” com o título “Samora e Eu”, cujo prefácio (na verdade um postufácio) seria escrito por ele, conforme ficou combinado. Passam já dez anos.

 

A primeira visita (1996) foi depois de eu ter participado numa palestra ou algo semelhante orientada pela viúva (de Samora) Graça Machel, no Sindicato Nacional dos Jornalistas. Nesse dia, já madrugada, Samora encontrou-me a escrever os primeiros rabiscos, inspirado na palestra e num texto (redacção/composição) que escrevi num teste de língua portuguesa, anos antes, em que o mote tinha sido um artigo publicado, salvo erro, no jornal electrónico media-fax. No artigo, o autor referia-se a Samora como um homem amado por uns e odiado por outros.

 

A conversa foi tanta e prolongou-se até ao amanhecer. Confessei os 11 anos da “nossa amizade”. Na verdade, narrei factos e momentos vivenciados ou acompanhados por mim durante o seu consulado, desde o primeiro dia em que o avistei até ao dia em que me zanguei e cortei unilateralmente a amizade, observando uma trégua no período da sua morte. No livro de condolências, recordo-me de ter registado: Samora. Para os amigos, o amigo. Para os inimigos, o inimigo!

 

Na despedida, já com o sol a raiar, ocasião em que brindamos o reatamento da “nossa amizade”, Samora pediu que eu acrescentasse aos factos as minhas reflexões e pensamentos de forma imparcial. O desafio estava lançado. Acredito que esse desafio não seja só para mim e tão pouco para os que privaram directamente com Samora quer no seu dia-a-dia, quer no processo de libertação e governação do país.

 

-O Livro? Insiste Samora. E com um olhar de quem diz “daqui não saio, daqui ninguém me tira”, anota que no lugar de visitas periódicas de década em década, estará de olho todos os dias.” (fim da transcrição)

 

Por “ de olhos todos os dias” entendi que ele não iria esperar mais dez anos (2026) para voltar a bater a minha porta (a altas horas) e exigir o livro. Feliz ou infelizmente Samora ainda não me visitou desde o “encontro” de 19 de Outubro de 2016. Presumo que esteja ocupado com dossiers dos últimos desenvolvimentos do país. O facto de ele não ter vindo foi óptimo para mim, pois ainda não tenho o Livro ou algo que se pareça. E já passam dois anos. 

 

Hoje é dia 22 de Setembro. Dentro de seis, sete dias será a data do seu 86º aniversário natalício. Temo que ele venha por estes dias. Sinais não faltam. Tenho ouvido passos nocturnos com a cadência típica dos de Samora Machel. Se não for por estes dias de Setembro ainda resta o mês de Outubro que está à porta.

 

Já é madrugada. Estou diante do computador. Na secretaria o manuscrito - já com cor de ganga de caqui - em que repousam as primeiras notas, escritas na altura da primeira visita. Um trecho do manuscrito diz: “o que sinto por ele (Samora Machel) é uma miscelânea de amizade e animosidade. Em conversa com amigos uma vezes defendo-o e outras ataca-o veementemente”.

 

Seja como for tenho que apresentar alguma coisa caso ele apareça. Enquanto cogito, cochilo em busca de inspiração. Em seguida um silêncio. Um frio na barriga. De repente oiço a porta a bater de forma insistente. Será Samora Machel?

segunda-feira, 16 setembro 2019 06:45

O Futebol Sou Eu

Nos idos e revolucionários anos oitenta e bem antes de eu ouvir falar da figura de agente de jogadores (de futebol) conheci um na escola primária de nome Artur Roubão. O sobrenome sobrevinha das suas exímias qualidades de subtracção de bens alheios. Ele era o mais velho da turma e fazia valer o posto a quem ousasse contrariá-lo ou que o troçasse por uma “gafe” fora ou na aula. Algumas vezes o professor condicionava a saída da turma à uma resposta correcta do Artur Roubão. Debalde. E sempre que chamado a responder olhava de esguelha à caça de quem se atrevesse a zombar das suas debilidades.
 
 
O Artur Roubão era praticamente o “dono” da equipe de futebol de uma das turmas da segunda classe formada por um quinteto (Nando, Messias, Abdul, Abreu e Nicolau) que impunha respeito nos jogos inter-turmas. Um outro colega (Nené) era o responsável pela torcida feminina e assessor desportivo das funções de dirigente do Artur Roubão. Na confusão infantil das escaramuças diárias quer as dos jogos, quer as do fecho das aulas o quinteto e todo o corpo técnico e logístico estavam sob protecção do também treinador, o temido Artur Roubão. 
 
 
A sua costela de agente de jogadores adveio do facto de ter reprovado e o quinteto transitado de classe o que implicava que os últimos jogariam pela nova turma da terceira classe. Mas assim não foi porque o Artur Roubão alegara que detinha os direitos dos jogadores do quinteto. E estes continuaram a jogar na equipe da segunda classe. Fora e mais o agenciamento de jogadores o Artur Roubão ainda actuava como federação (organização dos jogos) e tribunal desportivo. Nas repreensões de justiceiro recorria à pancada e, no limite, erradicava o visado da prática desportiva no recinto escolar e espaços adjacentes. 
 
 
Assim aconteceu até ao dia em que o Artur Roubão rescindiu unilateralmente a sua ligação com a escola e automaticamente o contracto colectivo que o vinculava ao quinteto. De certeza que nos tempos que correm o Artur Roubão seria um respeitado Agente-FIFA e de alto gabarito internacional. 
 
 
A única vez em que a turma (turno da tarde) esteve de castigo e o Artur Roubão não teve nada a ver foi numa sexta-feira. Esse dia a pena (cárcere privado) durou até a hora do jantar e foi sustada graças a intervenção dos pais. O famoso e sonoro “ADEUS SENHOR PROFESSOR E ATÉ NA SEGUNDA SE DEUS QUISER” foi o dito crime que levara o professor a encarcerar a turma de petizes. Estes não sabiam que por essa altura histórica o todo-poderoso (DEUS) estava suspenso/banido da terra da Pérola do Índico. 
 
 
Desses áureos tempos da revolução socialista não tenho memória oficial de um agente de jogadores ao estilo capitalista como existe e pululam actualmente. Contudo, fica a indelével memória do Modus Operandi do multifacetado Artur Roubão que era bem ao estilo da época e à luz do não menos famoso monarca francês, Luís XIV: O ESTADO SOU EU!
quarta-feira, 11 setembro 2019 13:44

Mendigos à solta

Um dos sinais citadinos de que a “sexta chegou” é o movimento de pessoas - na sua maioria da terceira idade - pelas lojas da cidade em busca de doações, vulgo esmola. Há uns anos e numa dessas sextas fui interpelado por uma “cota-mendiga” que já era uma familiar de vista e de tantas sextas anteriores. Um dos “doadores” dela era um estabelecimento nas proximidades do meu domicílio na altura.  Nesse dia e de tanto calor eu estava sentado no degrau que dá acesso ao portão de casa à sombra de uma acácia (que deus a tenha) danificada por “manuelinos” (os que bebem num bar e de nome próximo). Falando nestes e pelos danos ambientais só favorável a uma “taxa-acácia” no preço de cada unidade de álcool. O valor seria usado na reposição de árvores pela cidade. Acredito que Maputo voltaria a ser a cidade das acácias.  

 

Voltando ao que contava: a velha aproximou e cumprimentou-me de forma amável e sorridente. Em seguida pediu uma garrafa de água gelada para levar. Perante o meu semblante de dúvida a cota estrategicamente reforçou o sorriso. Não resisti e num ápice respondi ao pedido. Depois de sorver o primeiro gole da água agradeceu e seguiu com a rotina.   

 

Por algum motivo fiquei algum tempo sem botar a vista nela. Até que numa outra sexta de intenso calor sucede o mesmo cenário que contei acima. Tentei fingir que não lhe tinha visto. Mas já era tarde. Desta vez e para a minha surpresa a cota não me pediu uma garrafa de água. Apenas pediu um singelo abraço de amizade. Depois do fraterno abraço a cota pergunta olhos nos olhos: “lembras de mim? “Respondi que sim acenando a cabeça. Nesse instante reparei que ela lacrimejava.  Enquanto ela limpava o rosto – denunciando certo constrangimento por estar aos prantos - voltou a agradecer a garrafa de água que lhe havia oferecido da última vez em que nos avistamos. “Deus lhe abençoe, meu filho”. Assim despediu a cota, deixando-me sem chão. 

      

Por estes dias tenho recordado deste episódio. Razões não faltam: tenho visto tanto mendigo à solta na rua. É uma azáfama diária de mendigos-extraordinários de todas as cores, idades e extracto social. Não são tão diferentes dos habituais das sextas-feiras, os mendigos- ordinários. O que lhes diferencia é o tamanho e implicações do pedido. Os mendigos-ordinários suplicam por uma fatia de pão para aguentarem a sexta-feira. Os mendigos-extraordinários imploram para que o pão seja de borla durante cinco anos.

 

Desde 1994 - ano das primeiras eleições multipartidárias em Moçambique – que é sempre assim de cinco em cinco anos. E no próximo dia 15 de Outubro corrente será o mesmo: ficar na bicha para escolheres a quem vais pagar o mata-bicho durante cinco anos. Em 2024 eles voltarão e o refrão será o pão de sempre. Por estas alturas eleitorais tenho saudades da nobreza da “cota- mendiga”.   

sexta-feira, 06 setembro 2019 13:23

Pedidos de demissão

Cresci com a mensagem de que pedir demissão é um acto fora dos costumes africanos. Entre portas, amiúde oiço que a figura de pedido de demissão embarcou com os portugueses quando estes partiram em massa no contexto do processo de independência de Moçambique. Talvez por aqui a explicação da razão do alarido social e do destaque noticioso das vezes em que um pedido de demissão é feito por um compatriota. Foi assim com o recente pedido de Rosário Fernandes do cargo de presidente do Instituo Nacional de Estatísticas (INE). E deste pedido não vou falar, mas de outros (três) que conheço. Confesso que tenho dificuldades de encontrar cinco exemplos. Apenas encontro quatro pedidos: os três que abaixo partilho e o do Rosário Fernandes.

 

Um meu chefe de turma foi o protagonista do primeiro pedido de demissão que acompanhei na vida. Corria a segunda metade dos anos oitenta e em tempos de partido único. O segundo foi nos anos noventa e em tempos de democracia multipartidária. O pedido foi de Brazão Mazula que pedira demissão do cargo de reitor da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). O terceiro foi em 2018. Desta vez por uma protagonista de palmo e meio e das funções de chefe-adjunta de uma turma da 4ª classe. 

 

O primeiro pedido: em plena reunião de turma (7ªclasse), uma quarta-feira, o chefe de turma pediu a palavra no início da reunião. Se não me engano foi um ponto de ordem. O director de turma, um dos professores, consentiu e perante a sua estupefacção ouviu um categórico “Peço demissão, Senhor Director!”. Em seguida o chefe de turma fundamentou a sua decisão na usurpação de competências, sobretudo as adstritas ao controle do lanche que era fornecido pela cantina. Acontecia que os colegas mais velhos, na maioria bi-repetentes, utilizando artimanhas e ameaças, desviavam o lanche e faziam a respectiva distribuição baseada em critérios femininos (gratuitamente) e desportivos (preço bonificado). 

 

O segundo pedido: no contexto de uma greve de estudantes bolseiros da UEM, o reitor Brazão Mazula sacudiu a pressão pondo o seu cargo à disposição. Salvo melhor informação, o então presidente moçambicano (Joaquim Chissano) não anuiu. De todas as maneiras, creio que este foi o primeiro pedido de demissão depois da independência. Se não, no mínimo, acredito que tenha sido o primeiro na era multipartidária. Sublinho que me refiro aos pedidos de demissão de cargos públicos e que tenham sido veiculados pela imprensa. 

 

O terceiro pedido: conforme dito foi o de uma menina de palmo e meio e aluna da 4ª classe. Na habitual reunião semestral de pais e encarregados de educação o director de turma partilhou o pedido e explicou que a demissionária deixou o cargo de chefe-adjunta, alegando que o cargo não tinha nenhuma utilidade. Em defesa da sua decisão a petiz apontou que o colega e chefe de turma concentrava, abusava e tinha funções em excesso, não delegava nenhuma das funções, não faltava, não atrasava e nem adoecia. Foi o máximo. Da reunião ficaram lições e sinais de esperança e vitalidade para a democracia moçambicana.  

 

Por coincidência o primeiro pedido de demissão foi no ano anterior (1987) à vinda do Papa João Paulo II (1988) ao país e o terceiro pedido no ano anterior (2018) à vinda do Papa Francisco (2019). Depois da visita de João Paulo II foi necessário passar oito anos para presenciar um outro pedido de demissão (o segundo). Espero e havendo circunstâncias – no mínimo as que ditaram as três demissões e a do Rosário Fernandes (a quarta) - que eu não tenha que aguardar outros oito anos para ouvir o próximo pedido de demissão. E assim não será por obra de Rosário Fernandes que tratou de contrariar os dados, apresentando a sua demissão no mesmo ano da visita do Papa Francisco. O próximo?

 

PS. Perante circunstâncias que suscitem um pedido de demissão e tal não aconteça a comissão de ética devia agir. No mínimo o visado que fosse notificado sobre as lesões causadas à saúde pública e na própria dignidade do visado, seus colegas, família e amigos por tamanha e vergonhosa falta de atitude e brio profissional. Que o visado não espere pela acção da comissão de ética e nem que lhe seja recordado o nobre exemplo da menina de palmo e meio, chefe-adjunta de uma turma da 4ª classe, em circunstâncias análogas, incluindo as de outros pedidos. Não faltam exemplos para o quinto pedido de demissão. Por enquanto: Atenção a chamada!

Há dias acompanhei - num dos canais de televisão da praça - uma reportagem sobre o elevado custo (160.00Mts) da portagem da ponte “Maputo - KaTembe”. O mote foi uma petição de residentes da Katembe, sobretudo de potenciais automobilistas/utentes frequentes da ponte. A reclamação-mor era a redução do valor da portagem para um nível comportável e semelhante ao valor (35.00Mts) da portagem da Matola. Outra reclamação recaia sobre os riscos da alternativa usada: estacionar os carros (sem nenhuma segurança) nas proximidades da portagem e viajar de transporte público/chapa (excesso tempo de espera e condições de viagem). 

 

Por onde alinho? Pela manutenção ou redução do valor praticado na portagem da ponte? Em benefício de mudanças na mobilidade (redução de congestionamento) e na saúde pública (redução da poluição do ar e sonora) alinho do lado que não estimule o uso de carros particulares. Dito de outro modo: alinho por políticas/medidas que restrinjam a circulação de carros particulares na cidade. E para o caso o valor da portagem funciona como meio de restrição.  

 

Também alinho por tais políticas/medidas por uma questão de justiça/democracia: os carros particulares ocupam a maior parte do espaço público (circulação e estacionamento) e transportam menos pessoas em detrimento de outros modos (transporte colectivo, pedonal e bicicleta) que ocupam menos espaço urbano e são responsáveis pela maioria das deslocações dos cidadãos. Logo: reduzir a circulação de carros particulares (reclama a minoria) melhora a mobilidade dos restantes modos de transporte (aplaude a maioria) e ainda melhora a saúde pública (beneficia a todos).    

 

Neste contexto e nas actuais (péssimas) condições de mobilidade em Maputo o foco da solução é óbvio: transporte colectivo, pedonal e de bicicleta. E uma aposta na qualidade e articulação/integração destes modos devia ser a base do conteúdo de campanhas de advocacia e da própria resposta do estado, autarquias e do sector privado. Felizmente e na área metropolitana de Maputo já existem sinais encorajadores nesse sentido (Agência Metropolitana de Transportes de Maputo e o projecto Metrobus do Grupo Sir Motors). 

 

No mesmo sentido - para o caso em apreço da petição em marcha - a melhoria das condições da alternativa usada para a travessia da “Ponte Maputo – KaTembe” - estacionar o carro e apanhar o transporte colectivo - devia ser o foco da petição dos potenciais automobilistas/utentes frequentes da ponte. O que vale atravessar a ponte no seu (confortável) veículo - mesmo que seja grátis - e ficar parado/engarrafado nos acessos da mesma?

 

PS (i). Trouxe à mesa este assunto como contributo e antevisão do debate no quadro da campanha eleitoral que se avizinha. A mobilidade urbana será de certeza um dos temas de destaque. O que os partidos esperam fazer nesta área? Como fazer? Os custos e fontes de financiamento? Não faço ideia. E por esta razão: antes de confiar (o voto) confira (o manifesto). O provérbio “confie, mas confira” é russo e foi mundialmente cunhado por Ronald Reagan, 40º presidente norte-americano (mandato 1981-1989). Assim devia ter sido no processo de concepção e construção da ponte “Maputo-Katembe”. O presente pode estar envenenado.

Um senhor de família que sempre passava pela zona, na época de férias escolares, decidiu parar para as perguntas habituais - de mais velho – a um grupo de miúdos sentados num muro. Um dos miúdos era eu. O “tio” - depois do papo protocolar - quis oferecer um bolo que lhe sobrara. O modo sugerido foi o de fazer uma pergunta e fê-lo questionando quem sabia o nome do presidente dos Estados Unidos da América (EUA). Respondi com toda a certeza do mundo: Ronald Reagan (06/02/11 - 05/06/04). Corria o ano de 1985 e Reagan acabava de tomar posse do seu 2º mandato como o 40º presidente dos EUA.  
 
Veio-me à memória esta cena depois de rever um vídeo de um encontro em 1985 – em solo americano - entre Reagan e Samora Machel (1º presidente de Moçambique). Os dois foram na altura os meus presidentes. Samora Machel (e depois Joaquim Chissano) por razões óbvias e Reagan porque era o presidente dos meus ídolos (do cinema, desporto e música) e da terra das boas coisas (“jeans”, “sapas” óculos e chapéus) logo era o meu presidente. Guardo algumas lembranças dos dois. As da “amizade” com Samora Machel conto em outro momento. Neste texto apenas partilho algumas com R. Reagan. 
 
Na altura da pergunta eu já era “amigo” de Reagan. A amizade foi selada pouco antes. Foi pela TV em Novembro do ano anterior na data do anúncio da sua vitória para o 2º mandato. Desde esse dia a administração Reagan foi parte da minha agenda infanto-juvenil. Até conhecia de cor todos os escândalos e os principais secretários e subsecretários de estado americanos. No mesmo diapasão até o nome e a morada do Director da CIA conhecia (risos). 
 
Por conta desta amizade e da Guerra-Fria tive alguns dissabores. Um deles foi na 5ª 21 (Escola Secundária da Maxaquene). O "Bloco Soviético" ou "Ala do Leste" da turma liderado por um colega mais velho bloqueou o meu acesso ao lanche: sempre que chegasse a minha vez, na fila do lanche, este esgotava. Era algo como a reedição do "Bloqueio de Berlim" (fecho do acesso ferroviário, rodoviário e hidroviário à Cidade de Berlim Ocidental) feito pelos soviéticos contra os Aliados, liderados pelos EUA, que obrigou os últimos a abastecerem Berlim através de uma ponte aérea de Junho de 1948 a Maio de 1949. O mesmo com o meu lanche: durante um ano tive que usar meios alternativos, recorrendo a pontes subterrâneas com amigos da 6ª classe. Mais tarde fiquei a saber que tudo era orquestrado entre "Moscovo" e os seus agentes infiltrados no refeitório da escola.  Era o auge da Guerra-Fria (risos).  
 
As notícias por cá eram aterradoras em relação aos EUA: os imperialistas americanos. Salvo erro Moçambique boicotou a sua presença num campeonato mundial de Hóquei, que participaria os EUA, em protesto contra o imperialismo americano. Outros tempos. Quando Samora visitou os EUA fiquei confuso: como assim? Ir ao encontro e em casa do inimigo? Só mais tarde percebi que na arena internacional e entre os estados “não existe amizade, mas sim interesses”. O discurso de Samora foi claro: “queremos uma parceria de longo prazo”. Demorou, mas trinta e poucos anos depois e por outros tantos e indefinidos anos cá estão os americanos de pedra e cal. 
 
Fui crescendo com o "feeling" de um dia estar ao vivo com Reagan. Na primeira metade dos anos 90 ele anunciou que padecia de Alzheimer e a hipótese de estar com ele ao vivo adoecia à medida que ele ia despedindo. Em conversa com amigos eu dizia que iria ao funeral de Reagan.
 
Em 2004 fui convidado por uns amigos do Brasil para visitar a terra do samba e do futebol. Na manhã do dia 06 de Junho parti com destino à cidade de Porto Alegre. Logo que entrei no táxi, a caminho do aeroporto, pedi ao taxista que sintonizasse a rádio e uma voz bem audível diz: " morreu ontem Ronald Reagan, antigo presidente americano ". Fiquei estarrecido. Parecia que estivesse a receber a notícia da morte de um amigo ou de um familiar próximo. O taxista não entendeu a minha repentina tristeza. O que me confrontou foi o facto de estar a viajar ao continente americano. Estaria próximo de Reagan. 
 
Já em Porto Alegre tive que mudar os planos, pois o meu amigo e hospedeiro ia passar uns dias numa cidade do interior e voltaria depois do dia 12 de Junho, o dia dos Namorados no Brasil. Ele ia bem acompanhado e recusei o convite para segurar a velinha. Já estava triste e outra tristeza não iria aguentar, não! Como alternativa teria que fazer algo para cobrir os dias em branco. A cidade do Rio de Janeiro foi a escolha. Não fazia ideia de que a decisão foi um impulso que me levou ao "encontro" de Ronald Reagan: no Rio, Baía da Guanabara, estava ancorado o porta-aviões nuclear USS Ronald Reagan. 
 
Em 11 de Junho de 2004 foi o funeral de estado de Ronald Reagan. O Presidente George Bush (filho) declarou que seria um dia de luto nacional. Na data e por todo o mundo foram feitas homenagens. No Rio foi no porta-aviões Ronald Reagan. Presenciei a singela e sentida homenagem – dirigida pelo capitão Andres Brugal, segundo na linha de comando do navio - com outros fãs e mirones. 
 
“Cremos firmemente no que Ronald Reagan acreditava: paz, paz através da força e isso é o que representamos como seu legado, levando o nome de Ronald Reagan” disse o capitão, no fim da breve homenagem, conforme noticiado pela agência Reuters no mesmo dia. Na minha despedida, enquanto atravessava a ponte de Niterói, acenei para o “Ronald Reagan”: um Herói dos tempos infanto-juvenil. 
 
PS (i). Para o actual contexto em que se encontra a política moçambicana nada melhor que partilhar uma frase de Ronald Reagan sobre a política: “Eu achava que a política era a segunda profissão mais antiga. Hoje vejo que ela se parece muito com a primeira”. Outra: “ A política é como o show business: você desliza por algum tempo e termina num inferno.”
 
PS (ii). Não tanto a propósito do texto: conhecemos tão bem a Casa Branca, palácio presidencial dos EUA, em detalhe (exterior e interior), incluindo a famosa sala oval, mas não conhecemos a nossa Ponta Vermelha, palácio presidencial. Será isto um detalhe ou indicador do nível democrático (de transparência) de cada país?
Tenho a viva recordação de um empresário da praça a defender que a escolha de Armando Emílio Guebuza (AEG) para ser o Presidente da República foi acertada e mais ainda: AEG era da área ou tinha interesses empresariais que lhe conferia credenciais para catapultar a actividade económica do país, apostando nas reformas necessárias que AEG muito bem conhecia e que a CTA (Associação das Confederações Económicas de Moçambique) na altura reivindicava. Era "o homem certo para o lugar certo e no tempo certo" conforme dito pelo referido empresário. 
 
Corria o ano de 2003 e de tantos ouvi a mesma e efusiva opinião e acredito que muitos outros concordavam com o empresário que o país tomaria outros e melhores rumos. Que eu saiba a única voz que alinhou contra e deu a conhecer publicamente (anos antes) foi o Jornalista Carlos Cardoso. À favor ou não, a verdade é que AEG ficou dois mandatos na presidência e o balanço cabe a cada um fazer. 
 
Na altura que o empresário da praça falou da sua aposta em AEG dei por mim a pensar sobre o que eu conhecia de AEG. Lembro que me veio à cabeça várias coisas sobre ele fora a vertente empresarial e os cargos ministeriais. Recordara o facto de AEG ser considerado um político nato (talvez por conta de ter sido o comissário político-mor), o "Enfant terrible" de Samora Machel (que o nomeou Ministro Sem Pasta), o "24/20" (suposta medida tomada por ele contra os portugueses e estes tinham 24 horas e direito a 20 quilos de bagagem para abandonarem o país), um grande negociador (incluindo a negociação da Paz) e um "investigador", atendendo que chefiou a comissão de inquérito para apurar as causas do acidente de Mbuzini que vitimou Samora Machel e outros membros da sua comitiva. 
 
Neste texto vou debruçar sobre um percurso imaginário de AEG no caminho da presidência e quiçá ao encontro das expectativas do empresário da praça que apostou em AEG para a Ponta Vermelha, o palácio presidencial. A imaginação parte do princípio que AEG tem faro empresarial e que quis sempre ser Presidente (ninguém foi ter com ele a sugerir essa possibilidade). Acredito que para tal e no momento em que saiu do Parlamento (2000) iniciou a sua preparação efectiva e quando assumiu o cargo de Secretário-geral da Frelimo (2002) a preparação definitiva. (Temos que actualizar a linguagem que o vocabulário do processo de paz proporciona). 
 
Na minha imaginação ele iniciou tarde e pela via errada. No sonho que tive foi mais ou menos assim: AEG inicia a sua preparação efectiva para a Ponta Vermelha no dia 04 de Outubro de 1992 quando o Governo e a RENAMO assinaram o Acordo Geral de Paz, uma obra que teve a sua assinatura como chefe da equipe de negociação governamental. No intervalo entre o AGP e as primeiras eleições (1994) AEG escreveu e lançou dois livros: um sobre a arte de negociar a paz e como o fez até ao dia da assinatura em Roma. E o outro sobre a sua visão do que o país devia fazer para ser pujante e relevante no concerto das nações, em particular a nível regional. Ter sido Ministro dos Transportes e Comunicações constituía uma mais-valia.
 
Em Janeiro de 1995, na data (20) do seu aniversário, AEG convocou uma conferência de imprensa para anunciar que abandonava a política e que passava a dedicar 100% do seu tempo ao mundo empresarial. Na conferência anuncia também que se candidataria para presidir a CTA. No mesmo ano assume os destinos da CTA (início da preparação definitiva a caminho da presidência), deixando o cargo quando assume o de Presidente da República de Moçambique em Fevereiro de 2005. O mesmo ano e real em que assumiu o cargo. 
 
Nos dez anos em que esteve ao leme da CTA, AEG granjeou simpatia e respeito da classe empresarial nacional e internacional e dos moçambicanos, em geral, por conta dos resultados do seu trabalho quer a nível da CTA quer das suas empresas que se distribuíam por todo o território nacional, empregando milhares de moçambicanos. Em pouco tempo e para um país que acabava de sair de uma guerra o nível da actividade económica era mais do que satisfatório. Nem o Banco Mundial (BM) conseguiu na altura desregulamentar o sector do caju por conta da defesa enérgica de AEG, salvando milhares de empregos e das vilas/cidades que dependiam totalmente (ou quase) da indústria do caju. 
 
Por ter livrado a indústria nacional do caju das garras neoliberais do BM e o precedente criado tornaram AEG numa referência e premiado a nível internacional em reconhecimento da sua luta e defesa pelos interesses económicos dos países considerados pobres e em desenvolvimento. Na altura e a nível nacional os níveis de popularidade de AEG superavam aos de Samora Machel e aos da voz de João de Sousa (jornalista e relator desportivo, sobretudo futebol, da Rádio Moçambique). Foi mais ou menos neste quadro que AEG, em Janeiro de 2004, volta à vida política para concorrer ao cargo de Presidente da República pelo seu partido. Em Dezembro de 2004 AEG ganha as eleições e foi felicitado e desejado boa sorte pelo Presidente da RENAMO que até reconheceu que as eleições foram credíveis, justas e transparentes. 
 
A bagagem dos dez anos fora da vida activa partidária, parlamentar e governamental trouxeram reformas e inovadoras abordagens para esses espaços. O símbolo das mudanças foi a composição do novo Conselho de Ministros (CM): estava no CM a nata do que o país tinha do melhor e o critério partidário e das quotas não foi tido e nem achado. Ficou célebre uma frase dele numa sessão do Comité Central quando foram questionadas as suas escolhas para o governo: " Não se fazem omeletes sem ovos e os melhores ovos são sempre os do vizinho". 
 
Para AEG os objectivos do manifesto do seu partido ultrapassavam a dimensão partidária e persegui-los só com os melhores do país, incluindo os melhores do seu partido. Nos dois mandatos de AEG o país passou para o nível de desenvolvimento médio. Por isto e justamente Moçambique foi considerado a Pérola do Índico.  
 
Tempos depois de passar o testemunho ao novo presidente, AEG anunciou - numa conferência de imprensa convocada a propósito - a sua saída irrevogável da vida política. Nessa ocasião lançou um outro livro com o título "Pensei, fiz e não sei se consegui" que era praticamente uma resposta ao seu livro anterior sobre a sua visão do que o país devia fazer depois do alcance da paz em 1992 e da realização das primeiras eleições em 1994. 
 
AEG ainda aproveitou a conferência de imprensa para anunciar a criação de uma fundação com o seu nome cujo core-business era a descoberta e apoio de jovens "Enfant terrible", pois ele acreditava que são estes que mudam e dão rumo digno ao país. E assim foi o fim de um outro e imaginário percurso de AEG no caminho da presidência.
 
PS: para quem estiver a questionar o que foi feito do empresário da praça que falei no início do texto segue a resposta: ele foi quem substituiu AEG nos destinos da CTA e também na Presidência da República, concorrendo como independente e com o apoio declarado do seu antecessor. Eram novos e democráticos tempos por obra do percurso imaginário de AEG. E como sabemos não foi o percurso seguido por AEG para chegar ao cargo mais alto do país. Por ventura o resultado da sua presidência, incluindo o seu sucessor e a proliferação de lobistas no lugar de empresários responde aos meandros do percurso real por ele seguido.
sexta-feira, 09 agosto 2019 07:20

A Caneta

- O que te mete mais medo? 


A pergunta era para mim. Ignorei. Era noite. A guerra dos 16 anos ainda ecoava na cabine do camião Scania que me levava ao distrito de Massingir, província de Gaza. Foi no período entre o Acordo Geral de Paz (1992) e as primeiras eleições (1994). Um papo com o Motorista e o Ajudante sobre os horrores da guerra tornava o eco mais presente. E sempre que passássemos de um local conhecido por alguma atrocidade durante a guerra eu sentia saudades da cidade capital.  


- A resposta? Insistiu o Ajudante. 


Continuei calado. Confesso que estava com medo de uma emboscada. Era tempo de paz, mas ainda uma incógnita. Perante o meu silêncio restava o Motorista. Este respondeu que não tinha medo de nada, pois os longos anos de estrada e de guerra haviam congelado os seus sentimentos. Uns segundos depois da resposta ele teve que aplicar todos os dotes de condução para imobilizar o camião diante de um repentino corte da estrada. Um senhor corte. Era o início de outros e tantos cortes até poucos quilómetros antes da Vila de Massingir. “Quem fez isto estava muito zangado". Anotou o Motorista. 


Depois da lenta travessia pelos sucessivos cortes o Motorista disse que testemunhara cortes semelhantes na zona de Chibabava, província de Sofala. Em seguida cada um foi arrolando histórias reais da guerra dos 16 anos. Umas distantes e outras próximas. O Ajudante mostrou marcas de balas no seu corpo. Eram marcas profundas de combates travados quando esteve incorporado no exército governamental. De tanto ouvir episódios de bravura do Ajudante acabei por achar que estava protegido e já não me ocorria uma possível emboscada durante a viagem. 


- E tu? De que tens medo? Era o Motorista que questionava ao Ajudante. 


- Tenho medo de caneta. Respondeu prontamente o Ajudante. 


- Caneta? Insistiu o Motorista, espantado com a resposta. 


-Eu quando vejo uma caneta tremo. Fico com muito medo. Repisou o Ajudante.


Para ilustrar o âmago da sua resposta o Ajudante pegou uma caneta e pediu que respondêssemos quem era mais forte. Pelo tamanho não havia nenhuma dúvida de que era ele, o Ajudante. A caneta mal se via na sua mão. "Só pode ser feitiço". Concluiu o Ajudante enquanto - respeitosamente - guardava a caneta no porta-luvas. Não cabia na cabeça dele de que uma caneta tão longe – em Roma, Itália – fosse capaz de parar a guerra em Moçambique que durante 16 anos a força dos homens e das armas não conseguiram. 


"Que a paz seja eterna!”. Foram as preces do "tchim-tchim" pela paz e em nome da caneta que a trouxe e também pelo momento da matinal entrada na Vila de Massingir. 


PS: Veio-me à memória este episódio porque esta semana também passei a ter medo de caneta, sobretudo a que foi usada na assinatura do Acordo da Paz Definitiva no passado dia 06 de Agosto: temo que seja a mesma das assinaturas do Acordo Geral de Paz (1992) e do de Cessação de Hostilidades (2014).

É expectável que uma obra tenha ou comece por um projecto de arquitectura de acordo com os termos de referência do promotor e que cumpra as fases posteriores (projectos complementares - estabilidade, hidráulica- electricidade - e o projecto executivo), incluindo a contratação de um fiscal e do empreiteiro. A obra - depois de aprovada pelas autoridades competentes - inicia e desenrola em ritmo ditado pelas condições existentes (financeiras, materiais, tecnológicas e humanas). É suposto que assim aconteça com o processo de construção das nações. Contudo, nem sempre uma obra é feita de acordo com os ditames dos manuais. E o caso de Moçambique? 


“O país é uma obra que nasceu de um projecto concebido - em 1962 - por Eduardo Mondlane (e outros), o primeiro Presidente da FRELIMO, cujo desiderato era a liberdade, a prosperidade e a união de todos (unidade nacional) num imponente edifício que se chama Moçambique. Por razões conhecidas o arquitecto do projecto, Eduardo Mondlane, não esteve na data do seu lançamento (7 de Setembro de 1974, Acordos de Lusaka) e na data do início da obra (25 de Junho de 1975, Independência Nacional). 


Hoje, volvidos 44 anos de avanços e recuos no processo de construção, existe a forte percepção de que a obra que se esperava uma empreitada (de acordo com os manuais) descambou para uma típica autoconstrução (fora dos manuais) à boa maneira da pérola do índico. Nada confirmado, mas para o indispensável esclarecimento uma auditoria preliminar foi encomendada em resposta à seguinte questão: até que ponto foram observados todos os procedimentos e empregues os recursos adequados para uma construção sólida e duradoura de Moçambique? 


O objectivo central da auditoria passa por obter a opinião profissional e independente da análise dos dados do projecto e dos da sua execução de modo a reflectir o estado da obra e o respectivo risco a 31 de Dezembro de 2019. Prevê-se que do trabalho saia um relatório e a competente carta de recomendações. Estes documentos serão publicados no próximo ano por ocasião dos 45 anos da independência do país. Em 2023/24 será feita uma auditoria completa (final) cujos resultados serão publicados no contexto das bodas de ouro da independência nacional (2025). Uma auditoria forense - havendo razões - será equacionada nos termos a serem acordados.” 


Estava a transcrever parte de um documento elaborado pelo conceituado e multidisciplinar turbo-consultor Doutor Fofa. Por coincidência um amigo e o garganta-funda (informador secreto) de alguns dos textos publicados e de certeza de outros que advirão. O nome FOFA (Forças, Oportunidades, Fraquezas e Ameaças) foi-lhe atribuído nas andanças das consultorias e de intervenções em conferências e na media, pois sempre que ele inicie ou termine uma análise recorre ao já famoso “nos termos da abordagem FOFA”. Esta frase passou a ser a sua marca. A marca do Doutor Fofa: uma figura eminente e incontornável dos meandros da luta pelo (sub)desenvolvimento sustentável do país. 


Coube a este turbo-consultor a empreitada de levar acabo a auditoria. Para tal cobrou (e foi aceite) 10% do Orçamento do Estado (OE) do ano em exercício. Uma pimba de massa como se diz na gíria popular. Na prática um outro ministério. Os argumentos de que o Estado não busca o lucro mas o interesse público e de que um consultor que se preze carece do adequado conforto para estar imune a outras percentagens foram demolidores e favoráveis para a decisão tomada. 


Para o pagamento da auditoria foi decidido que a fonte do dinheiro seria directamente do bolso dos moçambicanos. O valor por cidadão, o mecanismo para a sua colecta e a gestão do fundo seriam estudados, apresentados e operacionalizados a tempo do fecho da auditoria no presente ano e prorrogável por mais três meses. Para “um documento soberano, dinheiro soberano” foi a frase de ordem que abriu, dominou e encerrou o debate do “Consórcio Governo-Sociedade Civil” (ainda sem nome), encarregue para gerir o processo da auditoria. Porventura, o início de outros e novos tempos. 


Pela primeira vez, em três décadas e poucos anos de carreira de consultadoria, o Doutor Fofa seria pago pelo dinheiro do povo moçambicano. Todavia, o encaixe financeiro e o seu semblante não se encaixotavam com o gostinho da satisfação. Algo do tipo “o que o novo patrão implica como responsabilidade?” passava pela sua cabeça. Uma expressão adaptada da emblemática “o que a liberdade comporta como responsabilidade” - dita (por um afro-americano) a respeito e na altura da aprovação da lei que proibia a escravatura na América - que Severino Ngoenha, filósofo moçambicano, tem-se socorrido em outros contextos e sempre que necessário.  


Uma outra e possível razão (de contenção da satisfação) fosse - supostamente - o facto do Doutor Fofa achar que é o 13º da lista dos cidadãos a serem abatidos no âmbito da “Revolta dos Beneficiários”. Para mais informação desta sublevação - a revolta do eterno grupo-alvo do combate contra a pobreza cuja arena são as unidades hoteleiras - o leitor terá que ler o texto https://cartamz.com/index.php/opiniao/carta-de-opiniao/item/2163-a-revolta-dos-beneficiarios do mesmo nome. Para quem leu o Doutor Fofa é o amigo que passou a ter medo de assinar a lista de presenças de batalhas de combate a pobreza. 


Para o início do trabalho de auditoria o consultor sugeriu e como parte da metodologia – inclusiva e participativa – um processo de auscultação aos donos da obra (o cidadão/povo). Deste exercício o Doutor Fofa espera recolher contribuições sobre o objecto em pauta. Os dados serão a posterior sistematizados de acordo com a análise FOFA ou SWOT, na língua inglesa, quando se pretende marcar a diferença. 


E sem marcar diferença termino o texto ciente de que cada moçambicano está em condições de conduzir a sua própria auditoria/avaliação e emitir uma opinião independente quanto ao facto da “obra Moçambique” ser uma empreitada ou autoconstrução bem como em relação ao estado e risco da mesma a 31 de Dezembro de 2019. Mãos ao cérebro. Saravá! 


PS (i): uma obra do estimado leitor (acabada ou em construção) pode servir de ponto de partida para a sua opinião. Aliás, acredito que este final de semana (ou um outro recente) tenha por lá passado com um sobrinho - recém-graduado em área afim - para a devida apreciação (técnica). Aposto que o sensato sobrinho não emitiu a real opinião por culpa do abarrotado “coleman”, penosamente castigado de tanto ser usado como anexo enquanto é o conteúdo principal das visitas à obra. Ademais, caso o sobrinho não tenha pedido o contacto do mestre/pedreiro ou tenha questionado com desdém “quem fez/está a fazer?” aconselho ao “mano” que fique preocupado quanto ao estado e risco da sua obra.  


PS (ii): seria recomendável que o fim de um mandato fosse acompanhado por um relatório de auditoria/avaliação independente da governação e a respectiva carta de recomendações. Estes documentos seriam uma ferramenta útil de (a) avaliação do desempenho e adequação ao contexto dos principais órgãos do estado, (b) estruturação do governo e (c) eleição/indicação de titulares de acordo com o perfil do e para o cargo. Para começar o acesso aos termos de referência seria importante. Ou melhor, a consulta pública deveria sempre iniciar pelos termos de referência do trabalho a ser executado. Não foi assim com o Doutor Fofa, mas fica a proposta para ser equacionada no futuro.

Este texto é escrito a respeito da febre de enchimentos que grassa o país. Todo o mundo quer encher alguma coisa: os lábios, os glúteos, os seios, os bicípites e outros músculos, incluindo o músculo que está a pensar. Isto a nível do corpo humano. Por outras esferas: os bolsos, as estatísticas, as facturas, o “chapa”, as urnas de votação, a lista das “marandzas” e por ai em diante. Uma autêntica e veloz corrida aos enchimentos. Na senda, partilho abaixo um episódio interessante (acho) de um dos empolamentos mais procurados da florescente indústria de enchimentos em Moçambique. 

 

Há uns anos um grupo de quatro funcionários de uma instituição da capital do país esteve em Lichinga, província de Niassa, numa jornada laboral. Um bónus de um final de semana pelo meio - intencionalmente encaixado para uns dias extras de ajudas de custo e de lazer com as contas pagas – foi aproveitado pelos viajantes para uma merecida tarde de sossego no Lago Niassa. E já agora: encherem a lista de locais visitados e as redes sociais com as melhores imagens (fotos e vídeos). 

 

Chegados ao Lago e devidamente instalados numa sombra de pau-a-pique os colegas foram passando a tarde na companhia de líquidos nacionais e do delicioso peixe local que é uma das atracções da bela praia do Lago. O ambiente estava agradável e o papo seguia a mesma onda. Cada um foi descrevendo peripécias de viagens anteriores em trabalho e o devido aproveitamento para uns dias de turismo. Um deles contou que certa vez conseguiu enquadrar a família numa dessas viagens de trabalho. Um outro colega disse que fez o mesmo com a diferença de ter enquadrado uma “Emília” e não a família. Em fim, outros enchimentos e com as contas pagas.  

 

A dada altura, um senhor de idade - que por ali zanzava com um saco e ares de quem estivesse em actividades de pesquisa - tomou a direcção dos “vientes” (não da terra/província). Depois de anunciar a entrada, pousou o saco e cumprimentou o grupo com honras militares. Uns minutos depois já estava palavreando sobre a sua vida, ressaltando na fala a troca do “r” pelo “l”. Na sua trajectória sobressai o facto de ter sido, no tempo do governo de Salazar, um marinheiro da armada naval portuguesa. E para quem quisesse tirar a prova dos nove o velho prometeu mostrar a farda e o álbum de fotografias. 

 

Depois de algum tempo a entreter o grupo com a sua história – uma estratégia de “marketing” – o velho exibiu o conteúdo do saco: um suposto produto que tornava resiliente o membro masculino. Segundo as palavras do velho “o membro enchia e não caia” (pressupondo a queda em combate), ditas enquanto mostrava e descrevia outras maravilhas do mágico produto. E para dar mais crédito recorreu da própria experiência, anotando que mantinha a sua mulher – bonita e muito jovem - graças ao produto e por nenhum outro motivo. A-propósito: o nome do tal produto foi ocultado para não influenciar as vendas e o potencial risco de alguns indicadores do sector da saúde sofreram uma subida negativa e considerável. 

 

Encerrada a sessão de “marketing” passou a de certificação do produto. Para tal cada um ligou para familiares e amigos a nível nacional. Muitas chamadas foram para Tete e Sofala, províncias com fama no tipo de produto em causa. Aliás e para recordar, numa das recentes edições da Facim, a principal feira de negócios de Moçambique, foi um produto semelhante – e de uma das duas províncias – que foi o mais procurado, tendo esgotado nos primeiros dias quando não nas primeiras horas. 

 

Concluído o “due diligence” o resultado favoreceu as finanças do velho. Com a aquisição os quatro colegas - animados com o produto e encorajados com o respectivo “no objection” popular - delineiam os respectivos planos e o “casting” para a necessária estreia. Pelo desfecho do “casting” o produto não se destinaria ao consumo caseiro, contrariando a experiência do velho quanto as vantagens do seu uso doméstico. Contudo, as duas abordagens concorriam para o mesmo objectivo: a manutenção.   

 

Cumprido o objectivo da ida ao Lago Niassa e na efusiva solenidade de despedida do velho marinheiro – pela companhia e pelo mágico produto - este fez questão de fazer um aviso à navegação quanto ao uso do produto adquirido. A advertência foi clara e sombria: o produto apenas funciona para situações de complemento (reanimação) e não de falecimento (ressuscitação) do ente querido. (Se) “Molleu, Molleu!”: foram as fulminantes palavras do velho marinheiro enquanto batia em retirada. Uns passos depois, notando que o grupo estava com sérias dificuldades de digestão e para que não ficasse nenhuma réstia de dúvidas, o velho - em tom jocoso e bem audível - enfatizou: Molleu, Molleu!  

 

PS (i): o recurso a certos sectores da florescente indústria de enchimentos pode ser satisfatório em curto prazo e estar a ocultar situações que possivelmente careçam de outro tipo de intervenção e para outro tipo de resultados em médio e longo prazo. Apostar em soluções de ressuscitação talvez fosse melhor e sustentável do que as de reanimação. E pelos vistos ninguém/o país não se dá ao trabalho de investir (não se enche de ideias) para criar as condições necessárias nesse sentido, incluindo o velho marinheiro do Lago Niassa. 

 

PS (ii): num texto anterior e a reboque de eleições que se avizinham, mormente quanto aos polémicos dados e ditos empolados da província de Gaza sugeri, a título de ajuda, aos gestores das eleições (CNE/STAE) que declarassem a inclusão, no recenseamento eleitoral, de dados da Faixa de Gaza (médio-oriente),quiçá, uma extensão ultramarina – e por reivindicar - do antigo Império Nguni (de Gaza). Na sexta-feira passada, a CNE veio a terreiro confirmar os dados de Gaza. Na prática a CNE reiterou a posição inicial que entra (pelo que se consta) em colisão com os dados/previsões do INE, Instituto Nacional de Estatísticas. Resumindo: Tudo na mesma. E na mesma continua também a minha sugestão.

 

Pág. 21 de 23