Passei o final de semana numa celebração inusitada. Era o 30º aniversário do enlace matrimonial de um casal de amigos. O inusitado – para responder à curiosidade – estava no facto de ambos terem apenas 40 anos de idade e celebravam 30 anos de casados. A explicação não tardou e veio do celebrante ao referir, no final da sua intervenção, que a sua contagem iniciava no ano em que se avistara pela primeira vez com a celebrante e não no ano do casamento. Eis - para que não hajam dúvidas - as palavras finais do celebrante: “Uso o mesmo critério para a definição dos 500 anos de colonização portuguesa em Moçambique”. E assim a cerimónia ganhou um outro ímpeto com os diversos casais a recontarem os respectivos anos de casados. Foi interessante.
Na mesa em que me encontrava o debate passou a ser a idade dos assuntos e das instituições em Moçambique. Em relação a das instituições, foi dito, por exemplo, que para alguns a contagem da idade do partido Frelimo inicia a partir de 1977, o ano da transformação da FRELIMO, Frente de Libertação de Moçambique, em partido. Para outros tantos, o cálculo começa a partir da sua fundação, enquanto Frente, em 1962. Quanto à idade dos assuntos, foi largamente citado o exemplo dado pelo celebrante em que se atribui, à colonização portuguesa, a idade arredondada de 500 anos, contados a partir da chegada de Vasco da Gama em 1498 até 1975, com a independência nacional. Em contracorrente há quem atribua, à colonização portuguesa, menos de 100 anos, calculados a partir da Conferência de Berlim (1884/85) e/ou da queda do Império de Gaza em 1895, actos que simbolizaram o início da ocupação colonial efectiva que se prolongou até à proclamação da independência.
Outros e semelhantes exemplos foram citados e que, certamente, são do conhecimento do leitor. De forma breve, e para arrolar mais dois, seguem os casos da cidade de Inhambane e o da Rádio Moçambique (RM) versus Jornal Notícias (JN). Sobre a cidade de Inhambane, que recentemente (12 de Agosto) celebrou o seu aniversário, faz alguma confusão que um local secular (os edifícios falam por si) celebre os módicos 64 anos. No caso da RM versus JN, ambos do tempo colonial, anos 30 e 20 do séc. XIX, respectivamente, não se compreende, salvo melhor entendimento, a razão de em 2020, a RM celebrar 45 anos (já nos tempos da independência) e o JN celebrar 94 anos de idade (anterior aos tempos da independência).
Na linha do entendimento dominante, o dos 500 anos da colonização, será igualmente correcto questionar quem tenha resistido contra quem entre Portugal e o Império de Gaza, atendendo que a invasão colonial portuguesa é anterior à existência do Império/Estado de Gaza, este fundado em 1821, fruto de uma outra invasão, a Nguni. E, na senda da outra perspectiva, não é de admirar que o país não esteja independente, e tal só será possível com a independência efectiva. De toda a maneira, e em jeito de conclusão do debate, a recomendação dos membros da mesa, já com copos de vinho à mistura – por sinal um vinho de casta portuguesa -, foi a de que é preciso que o Estado aclare/padronize os critérios para a definição da idade dos assuntos e das instituições, mormente de âmbito estatal. Aliás, um desafio de um outro maior: o da necessidade da História ser reescrita.
Voltando à celebração do 30º aniversário do enlace matrimonial do casal amigo: por enquanto cola a ideia de que são de facto 30 anos de casados, contabilizados a partir do 1º encontro e, por tabela, 10 anos de “Casamento Efectivo”, calculados a partir do acto oficial e com o devido registo nos termos da lei. Para terminar, e por qualquer razão, talvez de analogia com o processo moçambicano de paz, já aguardo do casal o convite para a celebração do “Casamento Definitivo”.
Irmãos, que tal fazermos uma corrente beneficente a favor do camarada Raimundo Diomba?! Ele não pode sair da casa do Estado porque não tem onde morar. Não tem onde ir. Que tá-lé?! Vamo-nos unir em prol desta causa justa, pessoal!
O velhote merece a solidariedade do povo moçambicano do Rovuma ao Maputo, do Zumbi ao Índico. Vejam só: o velhote foi governador provincial durante 15 anos consecutivos sem descansar. É muito sofrimento isso! Quem de nós aceitaria ser governador provincial durante 3 mandatos consecutivos? Quem?! Quem aceitaria tal sacrifício?
Vamos a isso, pessoal! O camarada Diomba não tem casa. Precisa de um teto. Ele fez muito pelo povo moçambicano. Sacrificou-se. Aceitou sofrer. Ser governador provincial ninguém merece. Imagina, então, durante 15 anos ininterruptos!
Deux-tá-ver! Ajudar o próximo é muito bom! Então, ajudemos Sua Excelência Raimundo Diomba, antigo governador da província de Niassa, Gaza e Maputo e actual Secretário do Comité de Verificação do partido FRELIMO. O homem não teve oportunidade de construir uma casinha sequer. Estava preocupado em resolver os problemas do povo moçambicano. Não teve tempo.
Não me perguntem onde ele vivia antes de ser governador provincial durante 15 anos sem repouso. Não me perguntem isso. Talvez era um molowene, um mendigo, um vira-lata. Não sei. Só sei que ele se sacrificou em sair das ruas para ir viver num palácio com direito à escolta, segurança e sirenes durante uma década e meia. Esse é um acto de grande heroicidade para um marginal. Foi muito corajoso. Esses molowenes de hoje em dia - xiliquentos que são - não aceitariam um sacrifício desses. É preciso ter muita bondade no coração. Esses últimos 15 anos devem ter sido os piores da sua vida. Mas, também, este governo de Nyusi é muito insensível sabe!... querer tirar um 'madala' daqueles, pobre-coitado, do palácio mesmo!!!
Participe desta campanha de angariação de uma duplex tipo 5 com cozinha americana, garagem para 4 viaturas e piscina olímpica para o camarada Diomba! Envie a sua contribuição para o 'Eme-Pesa' de Nhangumele. Aqueles jovens que outrora receberam terrenos na Guiné, oferecidos pelo vereador da área de Autoestima Juvenil, também podem oferecer, querendo. Será um grande passo. Quem tiver um talhão em Mocimboa ou em Macomia, também pode oferecer. Em qualquer lugar... aí em Muxunguê idem... não tem problema. Vai ajudar muito.
Sejamos solidários, gentxi! Participemos efusivamente desta campanha de solidariedade 'Je Suis Diomba!' Façamos cartazes, dísticos, camisetes e bonés. Este camarada precisa de ter onde cair morto. Coitado!
- Co'licença!
O meu problema não é o governador Daniel Tchapo porque esse vai passar como passaram todos os outros que lhe antecederam. Estou preocupado com o palácio, uma obra de arte, um património tangível da cidade que pertence e orgulha a todos os manhambanas. É um foco de contemplação reservado igualmente aos turistas que vão passar por aqui. É por isso que na concepção desta obra, colocada numa duna estável no bairro de Balane, o arquitecto fez uma combinação perfeita, onde a baía será um complemento importante, demonstrando uma preocupação profunda em não ferir a natureza.
O palácio do governador de Inhambane era um edifício livre, soberbo em toda a dimensão, tornando assim impossível passar pela marginal sem observá-lo com paixão, sem ceder a sedução das suas linhas, aliás, a própria marginal ganhava outra aragem, era mais linda, agradecia por ter aquele complemento na sua paisagem, lembrando as palavras do poeta, “o belo atrai o belo”. Mas alguém apareceu e tirou-nos o direito de alimentarmos a alma ao passarmos por ali. Mandou, sem meias medidas, erguer um muro de vendação. Um muro monstruoso que sufoca um lugar privilegiado. O palácio foi escondido.
Eu já havia vindo a terreiro sublevar-me contra esta barbaridade, ainda na fase de construção, numa altura em que o governador de Inhambane (não o senhor Daniel Thchapo), criava cabritos no palácio, os quais eram amarrados na relva a vista de toda a gente. Falei até a exaustão mostrando a minha cotrariedade, porém ninguém me ouviu. E hoje está aí o muro que para além de ser desnecessário, descaracterizou a zona toda. Tiraram-nos uma atração que nos orgulhava.
A cidade de Inhambane não merece esta agressão, assim como não merece algumas obras que o Município está a desenvolver por aqui, com o edil Benedito Guimino na batuta. Há casos preocupantes de vias de acesso pavimentadas com qualidade muito duvidosa. Em vários troços dessas ruas recentemente inauguradas o pavet está a desfaze-se. Não há nivelamento em muitos lugares, e não precisamos de ser engenheiros para concluir que aquilo foi mal feito, e mesmo assim a empreitada foi entregue e recebida pela edilidade.
O presidente do Município tem facultado o número do seu celular aos interessados como forma de estar mais perto dos munícipes. Foi assim que, usando dessa prerrogativa, enviei mensagens ao ilustre Guimino para lhe chamar a atenção sobre um problema que está a agravar-se. Disse-lhe ainda que corre o risco de não se orgulhar de ter ficado dois mandatos (se não for indicado para o próximo) porque terá deixado obras destroçadas. Enviei várias sms com o meu nome assinado, alertando sobre a fraca qualidade dos trabalhos que estão sendo feitos, incluindo outros assuntos de interesse dos cidadãos, mas o senhor Benedito Guimino nunca me respondeu, embora conhecendo-me.
Não basta que o Presidente faça obras, é preciso que as faça bem, com garantia de qualidade, para que ao terminar o seu mandato, caminhe com orgulho pela cidade que terá ajudado a construir. Ganha ele e ganhamos todos nós. Aliás, no coração da cidade há gente que ergueu casas de pasto em jardins públicos, violando grosseiramente a postura camaráia, e o edil tem conhecimento disso. Então o nosso bom do Guimino tem que fazer qualquer coisa para remover aquilo e devolver nos a leveza na avenida, como estão fazendo, e muito bem, os seus homólogos de Maputo e Chimoio.
Muitos parabéns Inhambane, minha cidade maltratada, pelos 64 anos de existência !
É manchete um pouco por todo lado e é inclusivamente o tema mais candente do momento, e com maior incidência nas nossas redes sociais que com velocidade da luz espalham tudo o que é considerado matéria para internautas e consumidores e difusores acríticos de informação – o caso Matalane.
Foi noticiado que instruendas do curso de formação de polícias, terão sido abusadas sexualmente pelos respectivos instrutores e que pelo menos 15 delas se encontram grávidas. Este facto gerou uma onda enorme de consternação entre os mais sensíveis a questão do género, ética e deontologia e direitos humanos. Dois grupos de opiniões dominam os debates na imprensa, nas redes sociais e noutros fóruns: uns condenam veementemente as instruendas acusando-as de falta de carácter e de cultura, de ganho fácil e menor esforço durante os treinos. Outros atacam os instrutores considerando-os monstros que envergonham a corporação e o Estado moçambicano.
Nisto muita tinta corre e ainda não chegamos ao cerne da questão. As 15 instruendas não devem ser tratadas como números e na verdade não são números, mas entram na grande lista oculta de vítimas de forma silenciosa cede aos prazeres de quem acha que detém poder para atropelar a dignidade humana e subjugar os ditos fracos. A nossa indagação deve buscar as raízes destes comportamentos e tentar perceber o seu caminho para que se tenham fixado como parte da cultura institucional.
Este triste caso veio desvelar uma realidade ignorada por muitos. Irei chamar a essa realidade de promoção da mediocridade. Promoção da mediocridade colide com os esforços que há anos temos estado a lutar para construir instituições fortes, de direito, capazes e transparentes, instituições de respeito e de referência, mas que paradoxalmente caminham para uma gritante desumanização do Homem – no caso vertente este Homem é a mulher que ainda é vista como inferior e objecto de deleite e saciedade de prazer.
Não se pode ter instituições fortes quando existem homens fracos e medíocres que promovem o caos. São homens que colocam as relações de poder como base para tirar vantagem de outrem. Julgam-se acima da lei e dos princípios e que impelem a sociedade a aplaudir imoralidade, a coadunar com coisas erradas e a prostrar-se diante de actos abomináveis. As instituições que temos estado a construir são baseadas em leis e protocolos - essas leis e protocolos devem ser cumpridas por cada um de nós. Não se trata de falta de protocolos, nem de leis e muito menos de instrumentos reguladores. Trata-se de uma legitimação tácita e um atropelo sistemático acobertado por um grupo de pessoas que pretende perpetuar tais práticas e minar a imparcialidade a fortificação das instituições.
Numa organização que em princípio se guia por leis e procedimentos burocráticos torna a sua administração mais eficiente e eficaz e isso garante racionalidade no trabalho. É consabido que numa organização pública ou privada, o cumprimento normal e continuado dos deveres bem como o exercício de direitos correspondentes é assegurado por um sistema de normas e somente podem prestar serviços aquelas pessoas que segundo as regras gerais estão qualificadas para tal.
Estes traços remetem-nos as principais características da teoria da burocracia, cujo fundador foi Max Weber. De acordo com Weber a administração segue princípios baseados em documentos escritos como por exemplo a hierarquia de cargos, as competências de cada funcionário bem como a situação do funcionário de escalão inferior (subordinado). Os funcionários inferiores são controlados pelos funcionários superiores sem que isso constitua “chance” para os superiores se aproveitarem da situação do funcionário de escalão inferior. Max Weber defende ainda que as actividades exercidas pelo subordinado são garantidas por normas estabelecidas num Código de Penal que o defende dentre várias infrações os insultos, maus tratos, assédio sexual e etc.
A nossa indignação não pode se cingir apenas a Matalane, Munguine ou a outros centros de formação, mas sim a vários outros sectores da nossa sociedade como ministérios, escolas, universidades, bancos, e outras instituições públicas e privadas. Os abusos perpetrados pelos instrutores são uma réplica dos abusos que são igualmente praticados contra centenas de mulheres e raparigas nas escolas e universidades apenas a título de exemplo. O pretenso poder que o formador, instrutor e professor tem sobre os formandos faz com que se crie a cultura sexista na nossa sociedade – uma cultura que oprime, humilha e retira valor a mulher e a rapariga.
Mais preocupante ainda nessa relação de falso poder e falsa supremacia é a falta de cultura de denúncia e de responsabilização acompanhadas pelo medo exacerbado. Quando essa lucidez e coragem existe, os prevaricadores são protegidos pelos sistemas e em escala a impunidade cresce e a descrença sobre o real aumenta enfraquecendo assim o poder e valor das instituições. Não se trata de falta de aporte legal, muito menos de falta de instrumentos reguladores. Trata-se sim de uma mentalidade promíscua, pequena e oportunista que cria pequenos monstros que criam horrores contra inocentes.
Como sociedade somos chamados a reflectir sobre o valor e lugar da moralidade, da ética e da deontologia e sobre limites da concupiscência. Somos chamados a demandar por justiça e exemplar postura das instituições de justiça.
Hoje de viva voz, por um lado condenamos e por outro aplaudimos aquilo que julgamos ser politicamente correcto e socialmente aceitável. Sequer nos demos tempo para ficar no lugar do outro e tentar sentir a dor do outro, a dor daquela mulher que procurou formação e foi abusada por aqueles a quem confiou sua formação; a dor daquela mulher que depois de grávida a sociedade lhe chama nomes, isola e exclui. É preciso pensar e agir para que isto não aconteça de novo e que não levemos ao de leve algo tão profundo.
Na construção daquilo que queremos como sociedade, estamos a permitir que práticas condenáveis e desprezíveis entrem no nosso modus operandi. O nosso silêncio e consentimento pelo atropelo a lei é uma arma que mata milhares de mulheres e raparigas no nosso país e deixa marcas psicológicas que se manifestarão nas gerações que estão por vir.
O Moçambique do amanhã é e está dependente do que fazemos hoje. As mães abusadas, os filhos renegados e as mulheres violadas são a expressão mais sublime daquilo que consentimos com as 15 mulheres de Matalane e com os milhares de raparigas e mulheres espalhadas por todo o país que por conta da realidade adversa não dão rosto aos abusos sofridos.
Hélio Guiliche (Filósofo)
Hoje, em meio à pandemia, continuamos ligados à leitura. Lemos de tudo um pouco. Da ficção à falsidade, da política ao desporto e do humor à genialidade. Lemos em diferentes formatos, desde o livro físico ao digital, do audiolivro às mensagens. Ainda assim, os entendidos ajuízam ausência de leituras. Lemos cada vez menos, argumentam.
Redes sociais parecem ter libertado vozes que não encontravam canal de expressão, em outras circunstâncias. São os clamores contra as limitações impostas por editoras, periódicos e jornais. Esses canais sociais vão construindo estes espaços democráticos e menos excludentes.
Mãe Janet Rae Johnson Mondlane, no topo das suas 86 primaveras, continua leitora assídua, tradicional e cibernética. Ao longo do dia, devora centenas de páginas e outras tantas mensagens. Por vezes, ainda encontra espaço para redigir breves comentários. Exorciza seu passado, suas leituras e, amiúde, continua activa, seguindo a essência do planeta e da nossa terra. No centenário de Mondlane, ela poderia e deveria ter sido mais referenciada e mais ouvida. Afinal, a maior companheira de Mondlane, sua confidente e amor eterno, continua com a sua mente lúcida e imaculada.
No passado, pela sua caneta e punhos, publicou O eco da tua voz, que retracta as longas conversas que manteve com Eduardo Mondlane. Quem os conheceu, e com o casal conviveu, sabe das milhares de cartas trocadas, no período de aproximação sentimental e, igualmente, depois de casados e, ainda, durante a luta armada. Eram, particularmente, obstinados por ler e escrever. Passamos, ainda, a conhecer a sua biografia, da autoria de Nadja Manghezi, O meu coração está nas mãos de um negro, aliás, referência obrigatória para os jovens que se interessam pelos contornos da luta de libertação de Moçambique.
No grupo WhatsApp em que ela participa, talvez num conjunto de outros grupos, os membros decidiram iniciar um processo de identificação. Uma forma de ajudar a mãe Janet a reconhecer, de entre familiares e amigos, gente próxima ou distante, aqueles cujos nomes ela ainda poderia associar. Neste exercício, os nomes viraram complementos, na descrição e narrativa, pois, as fotografias, se transformam em sujeitos e predicados. Esta foi uma oportunidade para rever o passado que, para ela, será indefinidamente presente. Um exercício que permite a matriarca do grupo saber com quem fala e responder a todos, simultaneamente.
Entrincheirados nesta quarentena coronária, tem sido um enorme prazer desfrutar dessa mulher missionária, conhecedora de tantas facetas e episódios da luta de libertação nacional, e alguém que teve a responsabilidade de fazer de Eduardo Mondlane, essa figura que a todo mundo impressiona e instiga a pesquisá-lo.
A mãe Janet Mondlane, na modernidade dos algoritmos, nos pregou uma boa rasteira. Estes grupos não costumam ser flor que se cheire. Por lá, circulam centenas de fake news. Até dou razão ao Yuval Noah Harari, pois a conectividade não escolhe idades e, muito menos, gerações, nem selecciona ou distingue o essencial. Mas, a presença da mãe Janet, ajuda a manter algum decoro.
Mas, este exercício foi para lá de sui generis. Tento, numa única foto, expressar minha identidade. Falar da matrilinearidade e dos montes Namúli. Expressar o quanto as nossas escolas carecem dos apoios do Instituto de Moçambique; que as bibliotecas andam despidas do essencial, livros. Nesta foto, também, queria poder falar das jovens mulheres que sentem na pele os desmandos e abusos de quem as deveria proteger. A fotografia precisaria minimizar tudo o que o Covid-19 destapou e revelou, a dureza da carência e da pobreza.
Igualmente, dizer que conheço o quilómetro zero e, que realizamos uma intensa jornada de comícios e visitas históricas a Nwadjahane. Nessa circunstância, ainda me recordo, foram sacrificados bois, para se manterem as tradições. Nesta foto, que também enviei, queria tanto dizer que num dos comícios, quando foi necessário fazer apresentação pública da comitiva, a Nyeleti Mondlane, sua caçula, estava ocupadíssima preparando as iguarias e cozinhados. Chamada para o palco e, sem que tivéssemos dado conta da sua ausência, alguém, bem-humorado, a meio do público, gritou: - “a Cda Vice-ministra está na cozinha”. Uma gargalhada sem limites. Assim será, sempre, esse pequeno lugar, que foi a escola de vida de Eduardo Mondlane.
Neste centenário de Eduardo Mondlane, que não deveria terminar, cada uma das fotos deveria expressar sua gratidão para com o arquitecto, mas, acima de tudo, entender a sua grandiosidade e re-significar a sua morte prematura. Quem sabe, teria sido oportuna a revelação dos contornos do seu assassinato e da perícia policial que determinaria o fatídico 3 de Fevereiro de 1969. Só se passaram 51 anos e parece que a nossa memória colectiva esquece, com facilidade, que a história precisa de ser reescrita.
Com o busto debruçado no parapeito de sua varanda no sexto andar, dona Mafalda vestia uma blusa de linho com alças e uma capulana amarrada à cintura cobria-lhe a parte inferior, toda esta vestimenta era por conta do calor tropical que assaltava a cidade.
Da sua varanda ia caçando uma aragem que não passava enquanto divisava um e outro quadro do filme que a cidade transmitia, carros atolados no asfalto ensopado ou com os capões abertos e radiadores fumegantes, meninas seminuas, sombreiros tentando amortecer os raios solares e proteger seus proprietários.
Olhava ali, via acolá, observava este e aquele entrosando-se com o dia soalheiro esperando que a temperatura logo amainasse.
De relance viu, não acreditou, socorreu-se dos binóculos que guardava na cabeceira e direccionou para a varanda do andar inferior direito, regulou a focagem e viu, o ser que observava movimentou-se. Continuou com os olhos arregalados colados aos binóculos, enrugou mais a testa envelhecida e segurou firme com as mãos caquéticas os binóculos até ter a certeza do que mirava.
-Mamanouu! – gritou ela buscando socorro.
Largou os binóculos que caíram para o chão da varanda.
- Carlos, Carlos – gritou pelo empregado doméstico que prontamente chegou, este levou os binóculos e deu a sua mirada para o ponto que a dona Mafalda indicava.
Depois de uma breve e atenta observação rematou convicto:
- É uma cobra grande sinhora . – conferiu – Muito grande mesmo. – Enfatizou assustado.
Despoletou-se um alarido doméstico comandado pela dona Mafalda e coadjuvado por Carlos que se alastrou pela vizinhança. Moradores mais próximos acudiram aos gritos e logo tomaram conhecimento da existência do inquilino reptil que se refrescava na varanda da casa de Susana.
Um rebuliço arrebatava o prédio e alguns moradores curiosos testemunharam a presença do animal na varada do quinto andar do apartamento ocupado pela dona Susana e sua filhota.
O mais prestativo dos moradores do prédio Monte & Silva, localizado na avenida 24 de Julho em Maputo, tratou logo de usar o seu telemóvel e fazer uma chamada para os serviços de bombeiros.
Os demais desceram e reuniram-se no átrio principal de acesso ao prédio e iniciaram pequenas conferências protagonizado pelos mais loquazes que especulavam sobre o aparecimento do animal.
O bulício ficou momentaneamente suspenso quando a sirene dos serviços dos bombeiros se fez ouvir.
Os bombeiros acompanhados de um especialista veterinário fizeram-se prontamente ao local onde o bicho se encontrava, procuram a todo o custo imobilizar e capturar o animal, mas sem sucesso, acabaram por abatê-la.
Silvino sentiu o segundo baque sacudir-lhe o peito com a chamada que Susana acabara de fazer a propósito do sucedido, o primeiro sentira horas antes.
- Arrumas todas tuas coisas e vai para a casa da tua mãe. – afirmou autoritário Silvino, o seu parceiro.
Susana era a segunda mulher de Silvino, que a sua esposa desconhecia e ele muitas vezes simulava viagens de trabalho para juntos alcovitarem-se no apartamento que alugara para ela. Já tinham uma filha de cinco anos.
Dias depois todos os pertences de Susana foram-na entregues e o apartamento abandonado por completo.
Ela continuava estupefacta e abalada com o sucedido. Vino, como ela tratava o seu parceiro, deixou de dar sinal nem sequer respondia as suas chamadas telefónicas.
Silvino, empresário bem-sucedido da praça, procurava efectuar este e aquele negócio, mas já não era bem-sucedido. Em uma semana os prejuízos acumulados eram na ordem de milhões, teve que se desfazer de alguns bens para suprir despesas pontuais.
A sua depreciação social era já comentada em círculos que ele já não frequentava.
Depois de uma certa ponderação e reflexão, ele decidiu conferenciar telefonicamente com o seu guia espiritual e fornecedor da cobra.
“ Mataram Ansuane” – alertou Silvino
“Já sabia” – conferiu relaxado o inhamessoro. – “Sabes das consequências para voltares aos negócios” – afirmou sereno o homem de contactos sobrenaturais.
Vinculado pela vontade arrebatadora de recuperar seu estatuto social, Silvino vingou o seu desejo e rumou para a terra do macangueiro.
Embarcou num machibombo, depois outro, saindo do sul para o norte do país, chegou finalmente ao destino levado por uma táxi-mota, era já meio da tarde.
No quintal da casa do inhamessoro, uma galinha debicava o chão duro, um bezerro chuchava o seio da progenitora, um galo cantou, Silvino encaminhou-se ao encontro de uma mulher que se abeirava do fogo e mexia uma panela de barro.
“Ele saiu, mas disse para esperar” – conferiu a mulher, oferendo uma cadeira de palha.
Tempos depois a mulher chegou oferendo uma toalha e indicando-o a casa de banho.
“Pode ir tomar banho” – rematou humildemente.
O sol já se tinha posto quando finalmente o dono da casa chegou, cumprimentou o hóspede e desenvolveram um breve paleio informal. Depois este retirou-se para a cabana dos espíritos onde efectuava os rituais. Uma hora se passou quando Silvino foi convidado a preparar-se para entrar.
O inhamessoro estava indumentado a preceito, uma batina de pele de zebra, uma tiara de pele de crocodilo reluzia na sua testa, um grande colar de missangas abraçava-lhe o pescoço.
Quando o cliente entrou encontrou-o sentada na esteira, este mandou tirar a capulana que envolvia seu corpo, ficando Silvino completamente nu. Espargiu-lhe com uma mistura usando um objecto feita na base da cauda de um animal.
Uma hora passou-se entre contactos com falas mediúnicas e interpretações de ossículos e conchas que terminaram com psicografia com os ditos que Silvino devia seguir. A noite já se adentrava quando o ritual terminou.
“ Vais tomar um banho com esta mistura, e depois dormiras aqui nesta cabana” – conferiu por fim o feiticeiro, dando por terminada o ritual.
Já alvorecia quando o galo quebrou o silêncio, uma brisa matinal oferecia frescura e a cacimba afrouxava a visibilidade.
“O táxi já chegou para te levar à paragem, nesta sacola esta o irmão mais novo de “Ansuane””
Ainda meio ensonado Silvino recebeu a encomenda e tratou imediatamente de se preparar para empreender a viagem de regresso.
“Muito obrigado” – afirmou Silvino subindo para o táxi-mota. Não esperou muito para embarcar num autocarro ido de Nampula com destino à Maputo.
Já acomodado no seu assento deu uma vista ao telemóvel e descobriu que estava sem cobertura, logo que se restabeleceu a transmissão com a torre celular, mensagens foram entrando com destaque para a sms de Susana com o seguinte teor “liga urgente” por isso Silvino tratou logo de ligar.
“ Olá tudo bem?” – questionou ele enaltecendo o timbre de voz para superar o som do motor do machibombo.
Ela demorou a responder, soluçou antes de prantear profusamente e quando reuniu forças disse:
“Per, per, demos nossa menina, é é ela se foi” – gaguejou sofridamente
“Tens que ser muito forte Susana” – rematou ele solidário e logo depois o contacto com a torre voltou a perde-se.
Quando entraram nas redondezas da vila da Massinga, o telemóvel voltou a readquirir o sinal e então outras mensagens entram com destaque para uma que dizia:
“ Podemos fechar aquele negócio”
Sorriu e olhou para o saco que o “inhamessoro” o havia entregue, este remexeu-se momentaneamente.