Uma das ferramentas de ética na esfera pública das democracias modernas é a declaração de bens. Titulares de cargos públicos são obrigados a declarar os bens que possuem na altura em que assumem uma nova função de carácter público. Essa lista é guardada em entidade relevante. No fim do mandato, o titular deverá submeter nova lista, revelando se seu património aumentou. E, se for o caso, uma justificação cabal para esse acréscimo patrimonial deve ser dada.
Há pouco mais de uma década, quando aprovámos a Lei da Probidade Pública, esse princípio foi inscrito, mas sua implementação é inconsequente, demasiado opaca, facultativa e até não fazendo dessa ferramenta um instrumento de transparência. A adopção do princípio foi para inglês ver. E então? Então é preciso cutucar a onça, para que ela ataque seu alvo. Como?
No recomeço de um ciclo político em que a anti-corrupção ganhou lugar cimeiro na retórica do novo Presidente Daniel Chapo, ele podia enfatizar a importância das declarações patrimoniais como um mecanismo contra enriquecimento ilícito. Mas ninguém se encarregou de lhe sugerir uma empreitada de conscientização como essa. Imagina o impacto mobilizador de um acto em que ele e os seus ministros fossem todos juntos, em fila indiana e sob cobertura mediática, depositar suas declarações patrimoniais? Seria um cometimento imbatível. Um acto para lá da retórica de embalar. E nem sequer estou a falar da publicação dessas declarações ou acesso público aos registos para efeitos de monitoria. Em Moçambique, esse acesso não é permitido. Chapo poderia lançar o debate de uma reforma legislativa sobre o assunto.
Mas seu discurso anti-corrupção tem um carácter minimalista. Para além da centralização do procurement público e da digitalização dos principais serviços da burocracia estatal, nada de novo senão uma retórica conveniente como esta aquando da tomada de posse dos seus ministros: “Tenham sempre em mente que o tempo da letargia, da burocracia exacerbada, do amiguismo, do nepotismo, do clientelismo, do lambebotismo, da corrupção e de outros males deve ser morto, incinerado e enterrado”.
Falar assim é bonito. Armando Guebuza e Filipe Nyusi, em seus discursos inaugurais, também exacerbaram uma retórica anti-corrupção, mas o efeito prático foi nulo. Muita parra pouca uva. A “tolerância zero” foi exacerbada, mas era apenas um fingimento. Com Guebuza, o calote atuneiro foi um acto perverso de grande corrupção, que se centrou na própria Presidência da República. Com Nyusi, seu filho Jacinto Nyusi governava na sombra decidindo negócios do Estado e colocação de seus pontas de lança em entidades públicas com o fim de controlar o procurement público. Exemplos recentes foram os casos do afastamento de Boavida Muhande da HCB e de Estêvão Pale da ENH.
O conteúdo anti-corrupção no discurso de Chapo tem aspectos curiosos que levantam atenção sobre as intenções do novo PR. A centralização do procurement público já está a provocar fissuras dentro do “Frelimistão”, com alguns tubarões de “colarinho branco” sugerindo que ele quer controlar pessoalmente as grandes boladas dos negócios do Estado. (Nyusi criou um cargo na Presidência para o ex-ministro Bacela, seu parceiro em negócios, visando esse controlo). Por outro lado, Chapo quer criar uma “Inspecção Geral do Estado” que vai ser supervisionada por ele, mas isso retira à priori a independência dessa instituição.
Seja como for, Chapo está cheio de boas intenções. No seu discurso de posse - uma “wishing list” que extravasa o manifesto eleitoral da Frelimo e recupera medidas que a sociedade já queria ver implementadas - ele disse isto:
“Falemos da corrupção. Essa doença que tem corroído o tecido do nosso Estado e do nosso Povo. O uso abusivo de bens públicos, os "funcionários fantasmas" que sugam os recursos do povo, os concursos simulados para favorecer amigos, os cartéis que enriquecem à custa do sofrimento do Povo – isto tem de acabar. Não há lugar neste governo”.
A questão central que fica para reflexão é perceber como é que este Governo vai levar a cabo sua reforma anti-corrupção. Como coordenar, como implementar com qualidade, como monitorar?
Em 2004, quando Mwai Kibaki ascendeu à Presidência do Quénia, ele nomeou um guru anti-corrupção local, o John Gitongo, para seu assessor de Ética e Anti-Corrupção. Isso permitiu estabelecer pontes entre os ministérios e os principais actores da reforma, que envolve reforma legislativa e políticas públicas.
Em Moçambique, esse arranjo institucional nunca foi pensado. Talvez chegou o momento!