Ontem recordei-me que, quando essa ponte informal entre Nyusi e Dhlakama se ergueu no firmamento concreto do calar das armas, ela foi amplamente elogiada. A informalidade tinha aproximado irmãos desavindos com sangue de permeio. Era uma coisa que nos ufanava. Lembrei-me de Mandela e De Klerk, que enterraram o “Apartheid” num aperto de mãos sem diplomata ocidental intrometendo na pose seu nariz paternal. Afinal, os moçambicanos eram capazes de dar saltos hercúleos para a paz na base da informalidade, presumi. Ontem, quando ouvi Mtumuke agitando o acordo com Dhlakama, notei que minha presunção era também mentirosa.
Dhlakama morreu em Maio e, de lá para cá, a informalidade original foi trocada por um acordo estruturado em papel, para comprometer as partes. Os fundamentos do acordo informal tinham sido reduzidos a um Memorando assinado pelo Presidente Nyusi e pelo Chefe Interino da Renamo, Ossufo Momade, rubricado por ambos. O Memorando estabelece claramente que o número de oficiais da Renamo a enquadrar no exército é de 14. Designadamente 10+4. O documento é claro: 10 oficiais para enquadrar nas FADM e 4 para ocupar cargos de chefes nos Estados Maiores das brigadas de Cuamba e Chókwè e nos batalhões independentes do Songo e Chimoio. O Memorando foi assinado por Ossufo Momade em Gorongosa a 3 de Agosto e pelo PR Filipe Nyusi em Maputo a 1 de Agosto. Ontem, este acordo foi rasgado pelo Ministro da Defesa. Ele tornou ostensivamente irrelevante um acordo assinado pelo Presidente da República na plenitude das suas capacidades.
Salvador Mtumuke, que tem uma ascendência tutelar sobre Filipe Nyusi, prefere agora o acordo com Dhlakama. Mas ele não existe no papel. Foi um acordo informal que apenas lançou as bases e os princípios que deram expressão a um documento de caráter operacional, assinado pelas duas partes, e cuja divulgação em Agosto teve origem no gabinete do Presidente da República e, por isso, é completamente incompreensível que dele se queira já fazer agora letra morta, empurrando mais uma vez a Renamo para sua recorrente linguagem bélica e colocando outra vez os moçambicanos sob a umbrela de uma retórica de violência e o abominável fantasma da paz podre.. É óbvio que esta fricção vai tornar o Natal infernal.
Mas é um filme recorrente em Moçambique. Um drama surreal de mau gosto. A Renamo virá esganiçar, com Ossufo Momade levantando sua voz lá do cimo das montanhas. O embaixador Mirko Manzone, da Suíça, terá uma oportunidade para aparecer e reivindicar seus galões de pacificador. E o PR surgirá como o grande salvador, baixando a bola, e dizendo que sim...o Memorando é válido e tem de ser cumprido. À entrada de um ano eleitoralmente decisivo para ele, Filipe Nyusi surgirá mais uma vez como o primeiro interessado na paz. Um enredo previsível, desgastante.
O memorando Nyusi-Dhakama já é letra morta? Não. Salvador Mtumuke estava apenas a cumprir um roteiro acordado no restrito círculo do poder em Moçambique. Espero!