Director: Marcelo Mosse

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Sempre tive um fascínio intenso pelo entardecer. Arrebata-me o vermelho-amarelado espalhado pelo pôr sol, na zona onde, por limitação de óptica, o céu parece terminar. Toda aquela grandiosidade faz-me acreditar em novas auroras. Também porque é ao fenecer do dia que os cânticos dos pássaros retumbam, deixando-nos com a sensação de que é possível recomeçar depois das derrotas.

 

O Presidente Nyusi disse-me, ao telefone, que a entrevista – há muito desejada - podia ser feita ao fim da tarde de Domingo, na Ponta Vermelha, e eu saltei de alegria, não propriamente porque finalmente iria ser recebido pelo Chefe de Estado, mas porque o encontro vai acontecer ao fim da tarde. Ainda por cima de domingo, depois de me apetrechar com a Palavra de Deus.

 

Foram buscar-me no Hotel Radison Blu, onde estava hospedado com todas as despesas pagas, suponho eu, pelo herário público. Do meu bolso seria impensável sustentar aquele fausto, onde na casa de banho os chuveiros funcionam com sensores, e há uma garrafa de champanhe aqui na banheira, embutida num pequeno balde com gelo.

 

Alguém ligou para o meu celular e disse assim, o senhor está a ver um carro preto da marca Toyota Prado aqui na entrada? Eu disse que sim. E ele voltou a rosnar, “venha até aqui”. É daquelas máquinas que chamam a atenção pela pintura luzidia e os vidros escuros que não nos deixam ver absolutamente nada lá dentro.

 

Cheguei perto e a porta da traz abriu-se. Tremi. Pensei por uns instantes em desistir, por medo, porém não podia  fugir porque o Presidente da República, inteiro, está a minha espera. E de um Presidente não se foge. Ou seja, eu já tinha entrado na rede de emalhar, e as probabilidades de sair dalí eram por demais ténues. Mas quando me lembrei que era final da tarde, o meu coração ora descompassado, estabilizou-se. Entrei e sentei-me no lugar onde estaria acomodado, em passeio discreto,  o próprio Nyusi. Senti-me presidente da República, um posto que nunca almejei por todas as consequências que isso acarreta, incluíndo levar um balázio dos próprios guarda-costas.

 

Deslizamos suavemente pela marginal, num percurso que me permitia desfrutar da espectacular paisagem que incluiu as Ilhas Xefina e Inhaca, e ainda a Ilha dos portugueses. Mesmo assim senti-me um prisioneiro nas mandímbulas de um corcodilo, que me vai levar pela última vez a apreciar a beleza da terra, antes de me puxar  para a sinistra toca onde vai-me executar. Mas é fim de tarde, e eu vou ser protegido por esta muralha que já se tornou meu amuleto.

 

“Fizemos” a rotunda da Praça Robert Mugabe e subimos na marcha derradeira para a Ponta Vermelha, onde me espera um homem vulgar, agora investido de poderes invulgares. Não tenho medo dele, mas a Lei obriga-me a respeitá-lo como símbolo do poder. Nyusi é o nosso Presidente, “querendo como não”.

 

A primeira diferença que notei ao entrar no sumptuoso lugar que acolhe o alto magistrado da Nação, é que os pavões estimados pelo ex-chefe de Estado Armando Guebuza, já não estão lá. Foram substituídos por rolas e pombos brancos que esvoaçam livres pelas árvores frondosas, e poisam levemente por sobre a relva cuidada, que expõe um verde brilhante.

 

Permaneci dentro do carro, estacionado de forma aparentemente negligente,  à espera que me dessem instruções. Desceu o homem que ia à frente, ao lado do motorista. Logo a seguir saíu o condutor, ambos indivíduos rudes. Fiquei sozinho. Tranquilo. Porque é final de tarde. Ainda por cima de um domingo que começara da melhor forma.

 

Vejo o Presidente Nyusi a vir na minha direcção, naquele seu estilo meio cambaio, talhado não exactamente para dançar mapiko, mas para qualquer coisa indecifrável, sabido que homem baixinho é imprevisível. Traja um fato de treino vermelho e pareceu-me que acabava de fazer a barba, por isso estava com o rosto fresco. Jovial.

 

Ele próprio abriu a “minha” porta e disse-me assim, naquele sotaque misturado entre o ximaconde e swahili, seja bem vindo irmão! Desci para saudá-lo. Apertei-lhe a mão e senti que ele treimia. Eu não! Puxou-me para debaixo de uma sombra onde nos sentamos, “tête a tête”, o Presidente e eu, ouvindo a música das rolas e dos pombos.

 

Nyusi disse assim, depois de beber um gole da água mineral importada da Birmânia, não é bonito ouvir o cântico das rolas e dos pombos? E eu perguntei-lhe assim, senhor Presidente, por que é que nós os moçambicanos não cantamos assim, em uníssomo, como estes pássaros?

 

* Texto imaginário

quarta-feira, 12 fevereiro 2020 09:18

E nunca mais vi Marcelino no Chamanculo...

O carro parava, uma senhora abria uma das portas e Marcelino surgia pouco a pouco como uma semente brotando da terra. Primeiro pingava o pé direito metido em uma meia preta e depois a esquerda, as mãos, o tronco e o corpo de Marcelino completava-se fora do carro. Às vezes, antes dos pedaços de Marcelino saírem, a senhora entulhava a blusa no antebraço e estendia o braço a Marcelino para usá-lo como corrimão dos dois degraus da viatura.

 

Marcelino descia do carro, olhava para os lados e levantava-nos a mão. E nós gritávamos "vovô Marcelino du Santo". E ele sumia-se pela porta da casa da mãe. Marcelino já tinha a coluna meio curvada e na cabeça a calvície já era regada por pingos de cabelos brancos.

 

Uma empregada com um avental igual ao lenço que trazia na cabeça abria a porta a Marcelino; e ele sumia-se aos pedaços. A mãe de Marcelino era uma velha mulata que passava as tardes na varanda. Encostada na sua cadeira de rede, com as veias do pescoço desenhando-se a cada respirar e com os pés enterrados num manto xadrez. De quando em quando entravam, naquela casa, senhoras com bacias de frutas. Ora era o homem da electricidade que batia duas vezes na porta e enfiava, da folga da porta e do chão, a factura mensal. E há vezes que a casa enchia-se de jovens mulatos e todos parecidos com a velha.

 

Talvez Marcelino chegava à mãe, chorava nos seus braços e uma vez mais deitava-se no seu peito como uma criança. As mães são almofadas com um tecido que não se gasta. Quanto mais envelhecem mais macias ficam. Tenho a certeza que a velha passava a mão sobre cabeça calva de Marcelino e tornava-lhe uma vez mais um menino.

 

Depois a mãe de Marcelino morreu. A rua da sua casa ficou cheia de folhas secas na porta, nunca mais fomos ver Marcelino e a cadeira de descanso na varanda ficou vazia. Passo por lá, todos dias, e espreito para ver um mínimo sinal da mãe de Marcelino; mas a varanda contorce-se de vazio e a poeira dos cantos das paredes tem teias de aranhas que caçam moscas, a voz de Marcelino chorando no peito da mãe e a velha mulata do manto xadrez.

 

E nunca mais vi Marcelino no Chamanculo. Vi-lhe pela última vez arrastando passos num andador de alumínio, parecia um bailarino exausto e prestes a fazer a vénia a plateia; Marcelino a cada passo abria os seus braços como se quisesse, uma vez mais, regressar a Chamanculo correndo e abraçar a sua mãe guardada na gaveta sem chave da morte.

terça-feira, 11 fevereiro 2020 07:40

Quando o Estado o faz chorar

Espero que o leitor  não chore no final do texto. E já adianto que o assunto não são os impostos e muito menos os últimos acontecimentos políticos do país. Aí vai:  guardo lembranças  da luta cívica do Reverendo  Desmond Tutu ,  o primeiro Arcebispo negro  da Igreja Anglicana da cidade sul-africana  de Cabo.  Ainda guardo de outras  do tempo em que ele - também  Prémio Nobel da Paz em 1984 -  chefiara  no período pós-apartheid a Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul. Nesta comissão o relatado pelos agentes ao serviço do Estado sul-africano e respectivas vítimas na época do apartheid, levara com que  Desmond Tutu  chorasse. Abaixo volto ao assunto depois de contar dois episódios intramuros.    

 

O primeiro: um dia e na temporada da revolução dei de caras com uns polícias no cruzamento da Vladimir Lenine com a Rua da Rádio. Foi do lado do Jardim Tunduru. Não portava comigo  o BI e como alternativa o polícia procurou saber onde eu  morava. Apoiado com um  caniço de uns 50 centímetros indiquei a direcção de casa que  por coincidência foi na exacta direcção do brasão da república cravado no  chapéu do polícia. Foi  um 31 cujo desfecho foi graças a uma   intervenção solidária  de solícitos  transeuntes. Não me recordo dos argumentos do polícia, mas creio que o único mal tenha  sido a “coincidência” dos aposentos: o meu e O do Estado. Do episódio  retenho a lembrança da choradeira de menino em direcção à casa. 

 

O segundo: há uns dias contei o episódio acima  a um amigo de Nampula. E este disse que tal não foi nada e que o polícia apenas  excedera no zelo. Segundo ele, muito grave  e desagradável foi o dia em que ele vira um polícia, em Nampula, a exceder  na falta de zelo e sentido de estado. Um 31 de avesso: um 13  da sexta de Agosto em pessoa. Nesse dia e numa  acção rotineira (de saque) de um  polícia este interpela um cidadão estrangeiro – a partida oriundo da África ocidental ou dos Grandes Lagos -  que farto de ser interpelado pela polícia e quiçá pelo mesmo polícia desobedece a ordem de paragem e continua a sua caminhada. O polícia insiste e o forasteiro, uns bons metros distante , vira e com elevado desprezo  atira ao ar uma moeda, provavelmente de cinco meticais, caindo a bons passos de distância do polícia.  

 

 - O que fará o polícia? cutucava curioso o meu amigo. Em seguida o polícia – imbuído com as insígnias do Estado -  caminha lastimosamente em direcção do local da queda da moeda e  agacha  vergonhosamente para apanhá-la.  Segundo o meu amigo:  foi horrível e arrepiante ver o Estado moçambicano  (território, poder político e população)   a ser vulgarmente humilhado e espezinhado em praça pública por conta de  uns  míseros cinco meticais jogados ao ar  e com altivo desdenho.  Nem  que o polícia tivesse tirado o chapéu – como o fazem ao entrar num bar -  ou que fossem milhões  de dólares atirados à rua  tal acto é inaceitável e imperdoável para a dignidade de um  Estado que se preze e queira ser  respeitado.

 

Enquanto o meu amigo  contava o episódio fúnebre  à rodos decolavam lágrimas nos nossos olhos. E aqui aterra de regresso o Reverendo  Desmond Tutu. Sobre ele é contado que no tempo da Comissão de Verdade e Reconciliação a dada altura ele  fizera questão de reservar uma bacia no gabinete anexo ao de trabalho.  E cada vez que ele ouvisse um relato funesto dos  tempos do Apartheid era em tal gabinete em  anexo que se refugiava  e chorava aos prantos. Consta que a bacia chegara até a transbordar de tanta lágrima.

 

Aposto que se a mesma ou semelhante bacia estivesse diante de nós   –  do meu amigo e eu no dia do relato das exéquias do Estado  e  hoje, adicionando o leitor depois da leitura deste texto - transbordaria do mesmo jeito  que transbordara com Desmond Tutu.

segunda-feira, 10 fevereiro 2020 05:53

O boato patriótico

As dívidas ocultas também começaram como um boato. Houve comunicados e conferências de imprensa aqui e acolá. Houve entrevistas. Houve "exclarações". Chopstick - o próprio catequista dos gatunos - deu a melhor justificação que se tem memória sobre o assunto. O então Governador do Banco Central jurou de pés juntos que nunca tinha ouvido falar do tal dinheiro. Era tudo boato e a ordem do dia era "fiquem tranquilos".

 

Era tudo boato até ao dia em que malta Nhangumele & Ndambi foi presa e Guebuza decidiu acabar com a epopeia e brindar-nos com aulas gratuitas de exaltação patriótica em plena praça dos heróis. Depois que nos ensinaram a assaltar... digo, exaltar a pátria, o antigo boato virou agora uma verdade... uma verdade empoeirada. Muito empoeirada mesmo! E ainda estamos nessa lenga-lenga de poeiras e pudins fosfóricos.

 

Era tudo boato quando desconhecidos atacaram, incendiaram aldeias e decapitaram pessoas em Cabo Delgado. Até jornalistas foram presos por promoverem esses boatos. Por causa desses boatos um helicóptero aterrou de emergência de pernas para o ar no mato. Era tudo boato até ao dia em que, de repente, os atacantes viraram insurgentes. Era tudo boato até ao dia em que os russos cansaram de ser trucidados e se renderam. Onde é que podemos encontrar a verdade sobre os misteriosos ataques "jihadistas" de Cabo Delgado que já fizeram 350 mortos e milhares de refugiados nos últimos dois anos? No "boato" das redes sociais, é claro.

 

Era tudo boato o recenseamento eleitoral de Gaza. Houve comunicados e conferências de imprensa para justificar. Na senda de justificar, o "doutor Apriorístico" levou porrada com o puto Venâncio em plena tê-vê. Era tudo boato até ao dia em que o Rosário Fernandes - qual capim alto - colocou Gaza em 2040. Até ali era tudo boato.

 

Também era tudo boato os esquadrões da morte. Era tudo boato até ao dia em que os espíritos do irmão Anastácio Matavele deram um "baaasta!" nesse crime asqueroso. Até a premiação dos criminosos era tudo boato. As "massagens" na Circular de Maputo eram boato. As valas comuns eram boato. Os sequestros eram boato. Para a nossa infelicidade, hoje todos sabemos que é tudo verdade.

 

Feliz ou infelizmente, estamos habituados a parir verdades a partir de boatos. O boato de hoje será verdade amanhã. A verdade de hoje era o boato de ontem. Aqui os boatos têm prazos de validade até serem verdades. Esse é o cerne da questão. É a partir daqui que eu quero discutir. Um pai que não diz verdades à sua família não se deve admirar quando esta for buscar as suas verdades na rua.

 

Vamos "desboatizar" as mentes. A verdade nua e crua é que, se um governo se sustenta com mentiras, o seu povo vai se sustentar com boatos. Se o governo não fala verdades, o povo irá inventar as suas próprias verdades. Se da fonte legítima não sai a verdade, o povo irá buscá-la em algum lugar. É o método da auto-defesa natural. Uma espécie de Mito da Caverna de Platão. Às vezes o boato é apenas um forma de encontrar uma explicação dos fenómenos que não têm explicação oficial.

 

Nunca nos dão uma verdade logo de primeira. Não sabemos o que é ter uma verdade genuína. É tudo pela força do boato. Foi a partir da mídia internacional e das redes sociais que ficamos a saber das dívidas ocultas, das valas comuns, etecetera, e agora, dos ataques no Norte. Então, há razões para o povo ir buscar verdades na rua. É na rua que o povo está habituado a obter as suas verdades.

 

Talvez o nosso boato seja mais filosófico do que impostor. Podíamos chamar de boato metódico ou boato cartesiano. O boato como instrumento metodológico para chegar à prova da existência da verdade, assim como é a dúvida para Descartes. Então, no fundo no fundo, o nosso boato é patriótico também. É esse boato que nos une.

 

Não basta que o governo lance comunicados e conferências de imprensa de desmentidos. Não basta contra-atacar. Antes de mais, é preciso atacar com verdades. Ser autêntico.

 

- Co'licença!

sexta-feira, 07 fevereiro 2020 06:46

A deselegância de Pio Matos

Pio Matos pode ter lá as suas razões, mas não ter ido à abertura do ano judicial pode ser considerado uma descortesia para com quem o convidou, ou seja, o poder judicial, que não tem culpa do imbróglio criado por outrem. 

 

Há-de ter tido a delicadeza de dar uma satisfação pela  sua ausência a quem o convidou, por deferência com os cidadãos da província que representa. Como todos os zambezianos bem educados costumam fazer.

 

Se não o tiver feito, dará lugar à interpretação legítima de que não foi à cerimónia por birra, acabando por fazer uma desfeita a quem até tem a consideração devida pelo Governador eleito da Zambézia.

quinta-feira, 06 fevereiro 2020 06:41

A primeira recaída

"Não fui por vontade própria... O estado estava lá" - tio Pio, o futuro ex-governador da Zambézia.

 

Agora que o cota Pio descobriu que foi enganado com pasta de "gover" está a levantar poeira. E, diga-se, muita poeira. Dizem que o velhote marimbou para a cerimónia de abertura do ano judicial. Não quis levar desaforo para casa. Como todos sabem, o tio Pio pode alegar não bater bem da "head". Pode dizer que está a ter uma recaída.

 

O mais engraçado nisso tudo é que os seus camaradas têm consciência de que o velhote não tem preguiça de entornar o caldo. Já fez no passado e pode fazer de novo, se lhe irritarem os miolos. Sabem que o velhote pode mandar um manguito para essa porra e bazar. E com razão. É muito abuso.

 

Sujou geral na banda. Ninguém tem dúvida do que o cota Pio é capaz quando está f*dido. E agora, o que vamos fazer!? Remédio de lua vai ajudar!? Levarmos o velhote aos ritos de iniciação!? Ao Infulene!? Ao Onório Cutane!? Darmos uns chambocos!? Ou vamos deixar acalmar-se sozinho!?

 

O cota Pio é uma espécie de político "kamikazi". Age como se não tivesse nada a perder. Lava roupa suja no rio, ao relento. Tá nem aí. Cagou para todo o mundo. A qualquer momento pode bater a sua última beata e escangalhar essa porra. Está pouco se marimbando pra a malta.

 

Já dizíamos, quando ainda era cabeça de lista, que tio Pio devia apresentar Junta Médica, mas não nos deram ouvido. Agora é tarde. O cota deve ter tido uma recaída e deve ter activado o "f*da-se!". Os médicos podem dizer que trata-se de uma reincidência. O futuro está cada vez mais incerto na zona dos Bons Sinais. Natural não treme... pior quando é eleito.

 

Literalmente, o cota disse: fí-lo porque quí-lo. Um dia "As Recaídas do Tio Pio" pode ser um grande capítulo de um livro de História Universal. Quem viver verá. "Muana mutxuabo ka-nkala burutu".

 

- Co'licença!