Director: Marcelo Mosse

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sexta-feira, 31 janeiro 2020 06:49

Praias de Maputo: quando limpar é sujar

Um grupo de assaltantes de bancos depois de uma das suas incursões -  das mais ousadas e lucrativas  - delibera que a divisão do dinheiro  seria feita no dia seguinte logo que soubessem do valor através da imprensa. Para eles não havia necessidade para tanta massada, pois alguém faria por eles. O mesmo raciocínio para a limpeza que é feita nas praias do Conselho Autárquico da Cidade de Maputo (CACM), sobretudo  as situadas na Av. Marginal: porquê deixar limpa se alguém (associações/voluntários)  virá limpar?  

 

Num texto recente e sobre a cidade defendi que não se consegue  combater os males e lutar pelo desenvolvimento da cidade  sem a participação activa dos seus munícipes e visitantes. E de que uma “cidade bela, limpa, próspera e empreendedora” ( a visão do CACM) só seria possível ser alcançada quando os próprios munícipes (e visitantes)  se apropriarem da cidade e no caso das suas praias.

 

O intróito foi a propósito  da realização (30 de Janeiro) da primeira  auscultação pública da proposta de postura sobre a protecção, gestão e utilização  da costa de Maputo e em particular  das jornadas regulares/sistemáticas e pontuais de educação cívica e de limpeza que são feitas tendo como epicentro as praias de Maputo. Pelo que se consta o resultado não difere do da Ajuda Pública ao Desenvolvimento: os respectivos destinatários resistem veementemente  aos esforços  empreendidos por quem quer ajudar.  Alguma coisa não está a bater bem.  O que será?

 

Creio que a abordagem que é feita devia ser alterada.  A boa vontade e os recursos existentes deviam ser reorientados/centrados na capacidade municipal de encaixe e recolha do lixo (recipientes e transporte)  nos pontos previamente definidos.  Quanto a limpeza ao longo das praias que ficasse uma responsabilidade cívica  dos seus utentes. Estes - na sua maioria frequentadores cativos -  seriam os próprios protagonistas e fiscais do asseio da praia.

 

Em resumo e uma dica para a postura em elaboração: recolher apenas o lixo depositado nos pontos definidos e o resto deixar ao critério dos utentes. Do caos pode emergir a ordem. Mboralá experimentar!

quarta-feira, 29 janeiro 2020 07:23

Ouvindo música debaixo da árvore

Comprei uma recarga de dez meticais da Movitel e converti  o valor em megabyts. O resultado desta operação permite-me ir ao Youtub e ficar lá durante três horas a ouvir música. A assistir, em deferido, a  memoráveis espectáculos dos meus ídolos, que ainda são os mesmos. Três horas de viagem consecutiva, embalado numa nave espacial que levita na órbita do espírito, é verdadeiramente uma catarse. E eu, por mais que o desejasse, não teria outra escolha que não fosse  entregar-me todo,  por inteiro, ao apelo inegável da música. Da boa música.

 

A minha casa está implantada num enorme quintal onde disponta um pequeno pomar de quatro laranjeiras. Tenho ainda duas mangueiras, dois limoeiros, uma toranjeira e um desabrochamento de plantas de camomila. Aqui reina o silêncio, poucas vezes interrompido pela comunicação entre mim e a senhora dona que está aqui para me dar algum azimute. De resto tenho a liberdade total para fazer as minhas coisas, e uma dessas coisas que gosto de fazer, é ouvir música. E ver shows que a memória jamais apagará.

 

Já perdi o hábito de estar na sala a ver televião. Este lugar para mim tornou-se um claustro, ou seja,  quando estou aqui a sensação que tenho é de que os meus pulmões degeneraram. Falta-me ar. É por isso que que busco recorrentemente a sombra das minhas árvores, onde me sento na cadeira de palha a ouvir, ou a música dos pássaros, ou vomitada pelos pequenos alfitalantes do meu computador, ou ainda a própria música do coração.

 

Acho tudo isto muito admirável. Nas manhãs são as tuta-negras que me acordam quando o dia ainda é uma aurora, e no final da tarde são as rolas que me avisam, no seu recolher, arrulhando melancolias, sobre a chegada lenta da noite. As aves aproveitam a copa das minhas árvores, e poisam irrequiestas para agradecerm a Deus, cantando canções que oiço todos os dias sem me cansar. Amiúde descem e pisam a terra com as frágeis patas, procurando algo para debicar sem  medo de mim.

 

Mas hoje estou com o computador ligado debaixo desta mangueira. Quero ouvir a música dos meus ídolos, aproveitando os “megas” convertidos dos dez meticais. Sinto-me feliz. Livre. E sem saber porquê, comecei por um rock-blues, bem içado pelas mãos de uma panóplia de ouro, Buddy Guy, Eric Clapton, John Winter, Robert Cray, Humbert Sumlin. Eles tocam “Sweet home Chicago”, uma verdadeira catarata de guitarras tocadas por gente auspiciosa. Fazem parte do meu tempo, porém isso não me basta. Não me saceia.

 

Procurei Louis Armstrong, nascido antes da Segunda Guerra Mundial (1901), e o que eu queria ouvir dele era Hello Dolly e What a Wonderful World. Senti-me elevado. Mesmo assim não podia esgotar a minha conta sem ver e ouvir Fela Kuti e o inevitável Hugh Masekela, que me levou para sempre na apresentação que fez em Lugano, em 2009, cantando o inultrapassável “Stimela”. Foi aqui onde percebi tudo, Hugh nasceu para cantar. E tocar trompeta. No cume.

 

Sigo este ritual de forma quase religiosa, e este imenso verde que me cerca, e ajuda na regulação do gás carbónico na atmosfera, é mais do que isso. É uma  importante plateia que me leva a vastidão do mundo da música, onde o coração transborda e outorga a paz. Na verdade, este verde leve dá-me isso. De graça.   

segunda-feira, 27 janeiro 2020 07:01

Embarquei Mulatinho, desembarquei Neguinho

Em tempos  infanto-juvenil o Brasil – o país do futebol, da mulata e do samba -  representava, no meu imaginário,  uma terra que também era minha. O colorido da sua miscigenação era o íman e  o “verde e amarelo” da  bandeira a marca identitária. Na verdade e à distância do olhar do tempo: o Brasil era o país  para um provável  pedido de Asilo Político - “instituição jurídica que visa a protecção a qualquer cidadão estrangeiro que se encontre perseguido em seu território por delitos políticos, convicções religiosas ou situações raciais”. 

 

À  época - anos 80 - era normal que  as querelas do bairro desembocassem em palavreado hostil  sobre o tom da  pele de cada um. A mim e a outros com o tom de pele semelhante era dirigido o inevitável: Mulato não tem bandeira/não tem pátria. E a resposta era automática: a nossa bandeira/pátria é  “verde e amarelo”.

 

Anos depois - no início do actual século - tive a oportunidade de viajar ao Brasil. Afortunadamente por nenhuma das razões que justificasse um pedido de asilo. Mas e por outras razões afins/contrárias, nomeadamente: as de combate à ordem mundial (então e ainda prevalecente) que criam e alimentam  as condições para que os  pedidos de asilo continuem na ordem do dia.  

 

No dia da partida - depois da praxe das despedidas caseiras e cercanias  - fui ao aeroporto no limite do tempo. Desço do táxi e um bagageiro - notando a minha aflição - pergunta: “Mulatinho, posso carregar a pasta?”. Ainda não lhe tinha respondido, lá tratou de fazê-la chegar ao ponto do  “check-in”.  Na despedida e com o peso da amável gorjeta o bagageiro sorriu e dedicou uma  “boa viagem mulatinho”, terminando com a típica (e enciumada) recomendação (que é sempre dada  à quem vai ao Brasil):   não se distraía só com o futebol e o samba.  É preciso completar a tríade. 

 

No Brasil , concretamente na cidade de Porto-alegre,  fui convidado a uma “peladinha”  de basquetebol. Em pleno jogo eu fui  ouvindo, entre outros, “corta ai, Neguinho”  e “cuidado com o Negão”.  Depois de um certo tempo – e até então  não entendera nenhuma jogada - é que me apercebo que o “Neguinho” era eu e o “Negão” , um cara adversário e bem corpulento  que  para as minhas lentes do índico era  mais para branco do que para mulato ou negro. De “Negão” apenas delatado por algumas características físicas no rosto que lhe expediam (os brasileiros)  para a África.

 

No avião e de regresso à Perola do Índico   veio-me à memória as brigas que  sempre  - na ausência de argumentos - culminavam no tom da pele. Assim foi até ao dia em que Mia Couto,  escritor moçambicano, deu outro sentido ao debate, escrevinhando: “Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça…” .  

 

segunda-feira, 27 janeiro 2020 06:10

A ingrata missão de lamber

No ofício de puxar-saco as coisas não seguem a lógica natural ou societal. No mundo do beija-mão, quando você é competente demais, você pode ser promovido para uma posição de relevo como forma de reconhecimento do seu trabalho. Mas, ao mesmo tempo, você corre o risco de permanecer no mesmo lugar eternamente. É que um gajo que lambe competentemente não se encontra em qualquer esquina. Porque é um ganha-pão que não se aprende na escola. É nato. Lambe-botas não se faz, nasce-se.

 

Um bom advogado, um bom sapateiro, um bom engenheiro, um bom pedreiro, um bom historiador, um bom alfaiate, um bom sociólogo, etecetera, faz-se com formação e experiência. Mas um bom lambedor, não. Esse não se planta. Emerge inesperadamente. Revela-se sozinho. E é raro. Parece que não, mas é. Muitos acham que é facil (e até desejam ser), mas bons nunca serão, se não nasceram com essa predisposição. Então, muitas são as vezes que o lambido não quer se desfazer do seu lambedor porque o lambido sabe que não é fácil encontrar um cara-de-pau despudorado e desavergonhadamente disposto a trabalhar.

 

Por isso, puxar saco demasiadamente bem pode ser mau para quem pensa em construir uma carreira na área. É muito provável que o tiro saia pela culatra. É uma profissão de carreira curta porque lambedor de não se herda. Normalmente, os lambidos não usam os lamdedores dos seus antecessores. Quando entra um novo chefe, a probabilidade do puxa-saco dançar a música do autoclismo é quase de cem por cento.

 

Outra crueldade do ofício de bajular é a perda total de confiança das suas próprias capacidades. Ou seja, mesmo que você suba de cargo por critério de competência técnica, você não acredita nisso. Você não vê e não reconhece essas qualidades. Você vai dando graças à graxa. E com razão: o lambido nunca exalta as verdadeiras qualidades técnico-profissionais do seu lambedor. Mas também porque não é do interesse do lambido tirar proveito da inteligência genuína do seu lambedor. A ele lhe interessa apenas a língua.

 

Então, vamos entender o que alguns dos nossos compatriotas estão a passar. É um "miksi" de expectativas: ser nomeado por ter lambido demais, mas também não ser nomeado pelas mesmas razões. Um ofício ingrato. Daí esse nervosismo todo que foi desaguar na juventude do pai de Samito. Até parece uma greve.

 

- Co'licença!

quinta-feira, 23 janeiro 2020 06:09

Governador sem pasta

Assim estamos felizes com este pacote de descentralização? É esta descentralização que tanto desejávamos? Governador "dele" que tanto fizemos barulho para elegermos é esse mesmo? Está bom assim?

 

Facto curioso é que os próprios deputados da RENAMO que tanto "barulho" fizeram pela descentralização não conhecem o pacote. Queriam um Governador de Província eleito, mas não dominam as suas atribuições e os seus termos de referência. Para eles, basta ser eleito. Daí que temos o tal Governador que é um autêntico "panhonho". Uma figura política sem poder nenhum. Um fardo ao erário público. Um peso desnecessário.

 

Custa acreditar, mas é esse "nada" que a RENAMO conseguiu negociar: um Governador sem pasta. Um Governador de uma província que não interfere nos assuntos de terra, recursos minerais, energia, segurança, etecetera, do seu próprio território. Um Governador da Província que é, em abono da verdade, um convidado do Secretário de Estado da Província - uma figura "estranha" indicada pelo Presidente da República. No espírito deste pacote, o Secretário de Estado pode mandar chamboquear o Governador, querendo. O Comandante Provincial da Polícia é subordinado à essa figura "estranha". Se você não pode gerir as fruteiras, nem mandar nos trabalhadores da tua própria quinta, e ainda com risco de um dia desses o guarda te dar umas boas porradas - se tiver um pouco de azar, então alguma coisa não está bem.

 

É isso que conseguimos negociar. Na verdade, esse Governador é como aquele espantalho que se coloca na machamba para afugentar animais. Aquilo só assusta passarinho. Macaco - que de parvo não tem nada - descobre logo no primeiro dia que aquilo é boneco. Macaco sabe que o dono da machamba não depende de ventania para se movimentar.

 

Essa figura de Governador é uma grande piada. A nossa sorte é termos o Governador e o Secretário de Estado todos da FRELIMO. Se tivéssemos um Governador da RENAMO na Zambézia, por exemplo, eu já teria comprado e montado uma pipoqueira na sala. O filme seria muito longo e dramático.

 

Assim estamos contentes? Estamos democraticamente realizados? Estamos a curtir a nossa democracia?

 

- Co'licença!

terça-feira, 21 janeiro 2020 13:05

O homem treme como a própria terra

Já haviamos combinado que a entrevista decorreria na esplanada do Hotel Tofo-Mar, e eu cheguei uma hora antes. Às nove. Estava bem disposto, inspirado para explorar ao máximo um homem invulgar. Um personagem. No fundo será uma ousadia, pois como se diz, se quiseres enfrentar um monstro, tens que ser um monstro, e eu não sou. É por isso que fui buscar vários reforços para encará-lo, de frente. E uma das vigas que vou usar para cingir o meu lombo, é o poder da imaginação.

 

A maré esta a vazar, e as ondas vão perdendo fulgor. Daqui onde estou a paisagem é linda, e tudo isto dá-me uma sensação indescritível de liberdade. Vejo, de longe, em pleno Oceano Índico, um barco passando em direcção ao sul, e um dos trabalhadores do hotel apressou-se a dizer que está alí um cruzeiro. Na verdade este  é um ponto privilegiado de contemplação. É um lugar que mesmo assim está na iminência de ceder ao mar, que vai “comendo”, aos poucos e poucos, a terra que já não se pode gabar da sua firmeza.

 

Tenho à minha mesa uma pequena garrafa de água, da marca Vumba. Vou bebendo gole a gole enquanto espero por uma pessoa que nunca vi em carne, a não ser em livros. Estou ansioso. Há um terramoto que se anuncia dentro de mim, e esse sentimento pode abalar a minha alma e destruir-me por inteiro. Desde que estou aqui, há quarenta minutos, o meu telefone ainda não tocou, não sei se isso é bom. O silêncio, agora mais do que nunca, ruge a minha volta, parecendo que eu próprio sou o actor principal de um filme de terror.

 

São dez horas. O garçon aproxima-se e pergunta-me se vai mais uma água, uma vez que a garrafinha já não tinha conteúdo. Eu disse-lhe que sim, vocalizando suavemente uma palavra comprometedora, ou seja, o “sim” é de uma grande responsabilidade. E o que vou fazer na esplanada do hotel Tofo-Mar não é nenhuma brincadeira. Quer dizer, convoquei um homem inteiro que vai deixar os seus afazeres, para ser interrogado por mim.

 

Não páro de olhar para a entrada que dá acesso a tranquila esplanada onde estou sentado, esperando por um enigma. Pode ser que não faça, por incapacidade, as  perguntas apropriadas. Eventualmente ele também irá me colocar questões, e  não terei sabedoria para ir ao encontro das suas expectativas. Há um maremoto que me devasta mais o coração do que exactamente o cérebro. A minha pressão arterial deve estar perto dos duzentos, ou um pouco para além disso, e nestas condições o médico não vai levar-me, concerteza, à sala da cirurgia.

 

São onze e vinte. Vejo um homem muito entrado na idade (um ancião), dirigindo-se resolutamente a minha mesa, apoiado num cajado que suporta o lombo cansado. Parece dançar com as ancas descompensadas, ao estilo das hienas, animais com a dentadura mais feroz da selva. Ele sorri para mim, e não tive quaisquer dúvidas de que era ele. Levantei-me, sorrindo também, e fui ao seu encontro.

 

Abraçamo-nos efusivamente, e eu senti o corpo do homem tremendo como a terra flagelada pelos sismos. Também tremi. E nós os dois passamos a dançar a música dos nossos corações. Era uma espécie de transmutação, porque este momento trouxe-me a serenidade que precisava para entrevistar este mamute. Mas a entrevista não se materializou. Ele pediu – depois de nos sentarmos - um duplo de “scotch” e disse-me assim, amigo, desculpa, vamos conversar amanhã, hoje deixa-me contemplar esta maravilha do Índico. Fica comigo, por favor, conta-me a tua vida.