Caro Dr. Carlos Martins
Bastonário da Ordem dos Advogados
Saúdo em primeiro lugar as posições adoptadas pela Ordem dos advogados de Moçambique face ao processo eleitoral em curso no nosso país. Saúdo a vossa independência face ao poder político e a defesa da constituição da República e do Estado de Direito. É raro, mas muito promissor, a existência de uma instituição profissional que se distancia da narrativa política e se pauta apenas no respeito e cumprimento da lei.
Solicito que voltem a público para que, com o peso da vossa instituição, contribuam para a normalização da vida do nosso país. Melhor do que ninguém vocês sabem que o Estado de Direito não depende apenas do rigor da contagem dos votos, mas do respeito pelas leis vigentes e pela Constituição da República. E as leis do nosso país salvaguardam o direito à greve e à manifestação. Mas definem também os deveres e as regras para o exercício desses direitos. É assim no nosso país. É assim em todos os países democráticos. Estas normas servem para proteger as pessoas e a vida pública. Por essa razão, os organizadores das manifestações e as autoridades policiais devem assegurar em conjunto o direito à manifestação sem que estes eventos sejam aproveitados por oportunistas que desvirtuam os propósitos das mesmas. As manifestações devem também garantir o livre acesso das vias públicas para as pessoas e os bens poderem circular. Se uns têm o direito a se manifestar, outros têm o direito a manter o seu dia-a-dia. Por muito que os manifestantes clamem “que o país é deles”, isso não anula o respeito pelos outros que parecem ser demitidos do seu direito de também pertencerem a Moçambique. Ajudem a esclarecer que, pelo simples facto de se anunciarem “pacíficas” as manifestações não se tornam imediatamente legais. Por mais que sejam justas as greves precisam de serem organizadas de acordo com o que está estabelecido pela lei.
Peço-vos que, com a mesma coragem e isenção com que vieram a público condenar as irregularidades eleitorais, compareçam agora e com urgência para ajudar a informar sobre as regras que a lei define. Sendo cumpridas, elas podem prevenir a ocorrência de excessos quer dos manifestantes quer das forças da lei e evitar vítimas humanas e prejuízos materiais elevados.
Publiquei no passado sábado um texto nas redes sociais encorajando os jovens a perpetuar a memória do cantor Azagaia. Alertei sobre a necessidade de se protegerem contra o aproveitamento oportunista de partidos políticos. Enviei esse texto para a Carta de Moçambique quando as forças polícias começavam a reprimir violentamente a manifestação de jovens em Maputo.
Ainda esperei por alguma explicação, algum pedido de desculpa, alguma razão que explicasse esse acto de violência contra uma marcha que estava devidamente autorizada. Esperei em vão. Durante todo o dia os noticiários dos principais canais televisivos reagiram como se nada tivesse acontecido. Nem uma linha por parte dos jornalistas. Nem uma palavra por parte de qualquer dirigente. Este silêncio constitui uma espécie de reedição do gás lacrimogénio que abundantemente foi lançado nas ruas de Maputo. Esse silêncio é demasiado ruidoso, essa ausência é demasiado indiscreta.
Considero inclassificável o comportamento das forças policiais reprimindo o que devia ser protegido, criando desordem onde havia ordem, atropelando a lei perante um evento legal.
Os jovens que queriam desfilar nas ruas da capital estavam desarmados, não representavam nenhuma ameaça à ordem ou tranquilidade pública. O funeral de Azagaia mostrou o tamanho da frustração e descontentamento de muitos jovens nas cidades de Moçambique. A polícia que cumpriu “ordens superiores” agigantou esse descontentamento. Há ordens “superiores” que criam desordem e inferiorizam os seus autores.
A nossa maior conquista, depois da Independência, foi o calar das armas após dezasseis anos de guerra fratricida. Essa conquista aconteceu porque houve diálogo, houve vontade de escutar aqueles que pensam de modo diferente. Se fomos capazes de abraçar os chefes de um exército armado por que razão espancamos jovens que se apresentam desarmados, respeitando as normas democráticas do direito à palavra e à manifestação pública?
Não imagino o que motivou a “ordem superior” que deu luz verde à violência policial. Mas estou certo de que a única ordem superior correta apontaria exatamente na direção oposta. Uma ordem que encorajasse a escutar estes jovens que amam o seu país, uma ordem que protegesse o espaço onde se pudessem expressar livre e pacificamente.
Mia Couto
Muitos jovens choraram a morte do Azagaia. Esses jovens querem perpetuar o legado do seu herói. Esse legado é feito de uma matéria preciosa: a força da moral e da coerência. Azagaia teve o raro mérito de enfrentar adversários sem esperar que, em troca, lhe fossem concedidos poderes nem privilégios. Não queria carreira política. Não usou os outros para seu próprio benefício. Não quis ser famoso nem empresário ou político de “sucesso”. Não foi um moço de recados de nenhuma força política. O segredo da sua popularidade foi simples: ser verdadeiro, generoso e genuíno.
Agora que ele morreu, surgem entidades políticas que pretendem tirar proveito do seu legado. Algumas dessas forças políticas foram alvo da crítica do Azagaia. O nosso rapper criticava os que usufruem do poder e os outros que, se apresentam como da “oposição”, mas que pretendem apenas um lugar no banquete. São estas as palavras do mano Azagaia:
“...E se eu te dissesse
que a oposição e o governo não diferem
e comem todos no mesmo prato...”
Esses políticos e deputados que agora se penduram no prestígio do Azagaia deviam fazer o seu próprio trabalho de casa. Tiveram oportunidades excelentes para granjear respeito. Por exemplo, das vezes em que que se votou na Assembleia da República o aumento dos salários e das regalias dos deputados onde estavam esses que agora se reclamam combatentes da moral e defensores dos pobres? Algum deles votou contra essas repetidas propostas? Nunca. Braços de todos os partidos representados na Assembleia ergueram-se em plena unanimidade. E fizeram-no num momento em que se pediam sacrifícios aos demais cidadãos do país.
Por respeito ao Azagaia e por respeito à verdade é preciso que estas vozes da juventude se demarquem destas tentativas de aproveitamento (sejam elas do governo ou da oposição) e se apresentem como uma voz genuína, inovadora e construtiva.
Mia Couto
Azagaia fez política com “P” maiúsculo. Sem se meter na politiquice barata. Não foi moço de recados nem do governo, nem da oposição. Questionou na sua arte a imoralidade da elite e disse que não havia muita diferença entre os diferentes partidos: um acesso privilegiado à mesma panela. Ele escapou do estereotipo de quem fala porque alguém mandou falar.
A maioria dos nossos cantores produzem vídeo-clipes que repetem o mesmo apelo quase obsceno: em redor de uma casa de luxo, com piscina de luxo, com carros de luxo e uma dúzia de meninas rodopiando como borboletas à volta da exibição do luxo. A televisão e as redes sociais reproduzem essa empobrecedora mensagem até ao infinito. Essa mensagem é um elogio à ganância, é uma agressão às mulheres e é um insulto à pobreza. A pergunta é simples: em que país essas cenas são filmadas? Que convite de vida fácil se esconde nestes vídeos, onde é que mora esse fausto num país que não tem dinheiro para pagar os seus salários? Que ideia de felicidade se transmite quando se sugere que, para se ser feliz, é preciso viver na mais ostensiva luxúria?
Nos seus vídeos, Azagaia escolheu cantar um país de verdade, este Moçambique em que a maioria anda a contar dinheiro para entrar num “chapa”. Essa é a verdade da sua arte. Esta é a sua fidelidade para com a grande maioria dos jovens do seu país.
Um dos argumentos usados pelos seus detratores foi que ele não era um moçambicano “autêntico”. Tinha um pai cabo-verdiano e isso, para esses seus inimigos, era uma espécie de pecado original. Azagaia era mais moçambicano do que todos os outros que se reclamam patriotas, mas enriquecem à custa do bem público do seu próprio país.
No dia em que a Europa interditou os voos de e para Maputo, Moçambique tinha registado 5 novos casos de infeção, zero internamentos e zero mortes por COVID 19. Nos restantes países da África Austral a situação era semelhante. Em contrapartida, a maioria dos países europeus enfrentava uma dramática onda de novas infeções.
Cientistas sul-africanos foram capazes de detetar e sequenciar uma nova variante do SARS Cov 2. No mesmo instante, divulgaram de forma transparente a sua descoberta. Ao invés de um aplauso, o país foi castigado. Junto com a África do Sul, os países vizinhos foram igualmente penalizados. Em vez de se oferecer para trabalhar juntos com os africanos, os governos europeus viraram costas e fecharam-se sobre os seus próprios assuntos.
Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso. A penalização que agora somos sujeitos vai agravar o terrível empobrecimento que os cidadãos destes países estão sendo sujeitos devido ao isolamento imposto pela pandemia.
Mais uma vez, a ciência ficou refém da política. Uma vez mais, o medo toldou a razão. Uma vez mais, o egoísmo prevaleceu. A falta de solidariedade já estava presente (e aceite com naturalidade) na chocante desigualdade na distribuição das vacinas. Enquanto, a Europa discute a quarta e quinta dose, a grande maioria dos africanos não beneficiou de uma simples dose. Países africanos, como o Botswana, que pagaram pelas vacinas verificaram, com espanto, que essas vacinas foram desviadas para as nações mais ricas.
O continente europeu que se proclama o berço da ciência esqueceu-se dos mais básicos princípios científicos. Sem se ter prova da origem geográfica desta variante e sem nenhuma prova da sua verdadeira gravidade, os governos europeus impuseram restrições imediatas na circulação de pessoas. Os governos fizeram o mais fácil e o menos eficaz: ergueram muros para criar uma falsa ilusão de proteção. Era previsível que novas variantes surgissem dentro e fora dos muros erguidos pela Europa. Só que não há dentro nem fora. Os vírus sofrem mutações sem distinção geográfica. Pode haver dois sentimentos de justiça. Mas não há duas pandemias.
Os países africanos foram uma vez mais discriminados. As implicações económicas e sociais destas recentes medidas são fáceis de imaginar. Mas a África Austral está longe, demasiado longe. Já não se trata apenas de falta de solidariedade. Trata-se de agir contra a ciência e contra a humanidade.
Mia Couto
José Eduardo Agualusa
Obrigado por me receberem neste encontro. Parabéns aos organizadores destas Jornadas. Moçambique pode ter orgulho na sua intervenção face à COVID 19. Conheço muitos países que se reclamam ricos e desenvolvidos que não foram capazes de sujeitar os interesses políticos e partidários às razões da ciência. Os governantes moçambicanos escutaram os cientistas e seguiram os seus conselhos. E isso é uma tripla vitória: para a ciência, para a governação e para o país. Seria bom que para outros assuntos os dirigentes do país voltassem a aceitar os conselhos da ciência, da arte e da cultura. Venho falar-vos não como biólogo, mas como escritor.
E como escritor, fascina-me o fenómeno do esquecimento. Tenho, para mim, que o esquecimento nem sempre resulta de um lapso. A maior das vezes é uma construção narrativa. Quando nos esquecemos, nós raramente falhamos. Raramente tropeçamos no vazio. Em vez disso, o que acontece é que nós construímos uma outra narrativa por baixo da qual enterramos os tempos que nos causaram medo, enterramos os episódios em que não fomos vencedores. Somos dotados de uma amnésia selectiva que nos desvincula dos grandes sofrimentos.
Às vezes, e isso é o mais triste e mais comum, não existe uma narrativa de substituição. Esquecemos porque, pura e simplesmente, regressamos à nossa velha rotina. Em pouco tempo somos devorados por um quotidiano de pequenas crises e grandes sobrevivências. Mais cedo do que pensamos, voltará a acontecer um outro desastre que nos irá, uma vez mais, apanhar de surpresa. Estaremos, de novo, improvisando respostas de emergência. Estaremos, uma vez mais, desprevenidos perante o previsível. É pena que assim seja.
Na realidade, a lembrança é uma espécie de vacina: prepara nos para lidar com algo que reconhecemos como já vivido. Eu trago uma pergunta simples para esta sessão. E a pergunta é a seguinte: como é que daqui a uns anos iremos recordar a presente pandemia? Essa pergunta pode ser formulada de forma mais directa: será que, depois da COVID 19, vamos criar o novo normal ou vamos regressar ao velho anormal? A melhor maneira de imaginar o futuro depois da COVID 19 é lembrar como, nas anteriores pandemias, a promessa de um novo tempo foi ou não foi cumprida. Pode-se fazer uma pergunta simples: quem ficou a ganhar na longa lista das pandemias: foi a memória ou o esquecimento? Façamos um rápido balanço. Vou saltar por cima das incontáveis pandemias que assolaram a humanidade. E vou escolher apenas a gripe espanhola que, segundo a OMS, continua a ser o maior desastre da história da saúde humana.
Vale a pena, pois, revisitar o ano de 1918, o ano da chamada Gripe Espanhola. Em três surtos sucessivos a Gripe Espanhola matou em todo o mundo 50 milhões de pessoas apenas num ano (dez vezes mais do que a COVID 19 matou em dois anos). Esta pandemia veio junto com a Primeira Guerra Mundial que causou a morte de outras 38 milhões de pessoas. Os governos europeus decidiram esconder a realidade brutal desta doença para não desmoralizar nem os soldados na frente de combate nem as famílias que esperavam que esses soldados voltassem a casa.
O nome "Gripe Espanhola" não vem do local onde teve início o contágio, mas sim do facto de a imprensa espanhola ter dado especial atenção à doença. A Espanha não estava envolvida na guerra, a imprensa de Espanha não sofria de censura em relação à doença. Se estamos a falar em esquecimento é preciso começar por dizer que a maior parte dos médicos que tratavam os doentes da Gripe Espanhola em 1918 já se tinham esquecido da uma outra pandemia que vinte anos antes tinha atingido gravemente a Europa. Nessa altura, em princípios dos anos de 1890, os hospitais europeus ficaram superlotados de pacientes atingidos pela chamada Gripe Russa.
Os europeus mais pobres que, naquela altura, emigraram em massa para os Estados Unidos da América foram acusados de trazer essa doença para o chamado Novo Mundo. É curioso como os países se esquecem da sua própria história e hoje a maior parte dos que protestam contra a migração são filhos e netos de emigrantes. O drama da gripe espanhola não ocorreu apenas na Europa. Curiosamente, a Gripe Espanhola foi escondida pela mesma razão que a fez disseminar pelo mundo: a Primeira Guerra Mundial. Milhares de soldados de todas as geografias foram transferidos para outros continentes. E as consequências foram explosivas. Só na Índia, 17 milhões de pessoas morreram. Em África dois por cento da população desapareceu. Na África do Sul a história da Gripe Espanhola está bem registada.
Em Setembro de 1918 dois navios de guerra vindos da Inglaterra chegaram a Cape Town transportando 2000 soldados sul-africanos negros. Esses soldados estavam a ser repatriados depois de passarem um ano nos campos de batalha de França e da Bélgica. Actuavam apenas em serviços de apoio logístico já que a lei sul-africana da altura proibia os negros de usar armas. Algumas dezenas desses soldados vinham infectados e foram encaminhados para as suas terras de origem.
O resultado foi o seguinte: em menos de dois meses morreram 300 000 sul africanos. (Lembremo-nos que em dois anos da COVID 19 morreram 83 000 sul africanos). Durante a Gripe Espanhola, seis por cento da população do país desapareceu em menos de dois meses. A África do Sul foi uma das nações mais atingidas do mundo. O mesmo drama aconteceu no Quénia que perdeu 150 000 pessoas em menos de nove meses. Este número de vítimas equivalia a 6 por cento da população total do país. (É preciso lembrar que agora, com a COVID 19, morreram 4800 quenianos). O Gana viu morrer 100 000 dos seus cidadãos. Na Tanzânia, dez por cento da população foi dizimada, mas o drama teve repercussões ainda maiores porque à doença se juntou uma seca e a fome que matou outras milhares de pessoas.
Em Moçambique não encontrei registos da pandemia nem há censos precisos e abrangentes do conjunto da população na primeira metade do século 20. Sabemos apenas que em 1950 a colónia de Moçambique tinha 6,5 milhões de habitantes. Se aplicarmos a taxa de mortalidade dos países vizinhos a uma população que poderia variar entre 4 a 4.5 milhões de habitantes poderemos deduzir de forma muito grosseira que Moçambique terá perdido naquela pandemia entre 100 000 a 200 000 pessoas.
As duas únicas referências especificas relacionadas com a situação sanitária em Moçambique em 1918 são as seguintes: - "No Final da Grande Guerra de 1914-1918, foi aberto o Cemitério de São José de Lhanguene com o objectivo de acorrer aos enterramentos em massa das muitas centenas de indígenas vitimados pela epidemia pneumónica. “ (A Pandemia da Gripe Espanhola em LM 1918, Alfredo Pereira de Lima, no site The Delagoa Bay World) - a segunda referência tem a ver com portugueses que saíram de Moçambique num navio chamado “Moçambique” em 1918. O navio saiu de Lourenço Marques com 952 passageiros que estavam distribuídos em quatro classes. A mortalidade na 4.ª classe, na qual se encontravam mais de 500 soldados, foi superior a 30%. Nas restantes, em que viajavam sargentos, oficiais e civis, foi de 7,2%.
Quem relata este episódio é um médico português chamado Ricardo Jorge que deu o nome ao Instituto de Saúde Ricardo Jorge em Portugal, com quem o nosso Instituto Nacional de Saúde mantém um acordo de cooperação. Na altura, Ricardo Jorge era comissário-geral do governo na luta contra a epidemia e deixou escrito o seguinte comentário: Não tenho nenhuma dúvida: Os vírus não atingem toda a gente da mesma forma. Os mais pobres pagam a pior fatia da crise". E foi isto que consegui para Moçambique.
No nosso caso, existe mais do que um esquecimento. Não há registos escritos que apoiem quem se queira lembrar da pandemia em Moçambique. Falamos de uma amnésia generalizada dos factos públicos. Mas este esquecimento atinge a área médica e a pesquisa científica. Equipes de investigação de laboratórios do Exército dos EUA iniciaram o estudo da etiologia da Gripe Espanhola por volta de 1951.
A razão fundamental para conduzir esse estudo não era a curiosidade científica, mas aquilo que se entendia como segurança militar. Um projeto super secreto referido com o nome de código Project George fez com que fossem exumados corpos de soldados norte-americanos que tinham sido enterrados nas terras geladas do Alaska. Buscavam-se os segredos genéticos do vírus da Gripe Espanhola. Os dirigentes americanos consideravam esse projecto como sendo de máxima segurança nacional porque receavam que os soviéticos estivessem fazendo a mesma pesquisa a partir dos milhares de soldados que jaziam congelados nas tundras da Sibéria. Essa investigação acabou sendo suspensa e ficou em estado dormência até que, em 1997, um vírus similar ao da gripe espanhola matou uma criança em Hong-Kong. Então a pesquisa voltou a ganhar um caráter de urgência.
Uma das equipes que liderou esta segunda fase da pesquisa foi o Instituto de Patologia das Forças Armadas de Washington liderada por um tal Jeffery Taubenberger. Em 1997, este cientista escreveu o seguinte sobre a gripe espanhola: “não foi o vírus que, na maior parte das vezes, causou a morte. O que foi fatal foi a resposta do corpo da pessoa infectada, resposta conhecida como tempestade ou cascata de citoquinas”. Isto soa familiar? Soa familiar para alguns, mas para a maior parte das pessoas foi como se esta relação causal entre vírus e doença tivesse sido descoberta agora. Disse no início que ia falar sobre esquecimento.
Deixei de lado esquecimentos mais antigos, deixei de lado as pandemias mais antigas mesmo que já tenhamos esquecido que foi a resposta a esses antigos surtos que nos trouxe algumas práticas que pensamos recentes: - a máscara - o distanciamento e o confinamento - a quarentena Estas medidas têm séculos de existência. O escritor Boccaccio já fala de algumas destas práticas no livro "Decameron" escrito em 1350. Contudo, seis séculos depois estas condutas surgem para a maior parte das pessoas como uma novidade.
Voltemos para a pandemia de 1918 para reiterar que esse drama foi incomparavelmente mais grave do que aquele que estamos a viver agora. O balanço é terrível: em apenas um ano um em cada três seres humanos morreu. 1 Os dois terços que sobreviveram estavam 1 Penso que há aqui um erro do autor. A população do mundo em 1918 é estimada em cerca de 1,8 mil milhões de pessoas. Aceitando que morreram 50 milhões de pessoas, a percentagem de mortes seria de menos de 3 por cento, cerca de um décimo do referido pelo autor. absolutamente certos de uma coisa: que a humanidade nunca se iria esquecer daquela tragédia.
A verdade é que esquecemos. Não houve uma intenção deliberada de apagar esse tempo. Houve, sim, outras urgências, outras rotinas, outras tragédias. Mas houve a chegada da chamada “idade de ouro” dos antibióticos, houve uma outra narrativa que afirmava o poderio absoluto da tecnologia, uma narrativa que celebrava a nossa espécie como dona absoluta da natureza e do futuro. Nos dias de hoje, a humanidade está absolutamente convencida que o drama da COVID 19 nunca mais será esquecido. Não sei se amanhã perante um Juiz sentado no tribunal da história os nossos netos não recorram à já célebre resposta: “não me lembro, Meritíssimo.”
Há também a ideia ingénua que o mundo vai mudar radicalmente depois desta pandemia. Algumas coisas vão mudar. E vão mudar para melhor. Mas não sou optimista em relação a transformações de fundo. Aquilo que insistimos em chamar o “novo normal” será, em grande parte, a continuação do “velho anormal”.
Eis algumas tendências que estamos já a ver que se vão manter em todo o mundo:
- Vai-se continuar a desvalorizar a importância da prevenção nas estratégias de saúde a nível nacional e internacional.
- Vai-se manter o domínio de um modelo económico que colocou o Mercado no trono e secundariza o papel do Estado.
- Vai permanecer inalterada a tendência de privilegiar a medicina privada, mantendo fragilizado o sector público que será incapaz de sustentar um justo e eficaz Sistema Nacional de Saúde.
- vai-se manter a marginalização da Organização Mundial de Saúde e das instituições internacionais que podiam assegurar um comando central para as próximas pandemias (num mundo que se proclamava globalizado e no qual se esperava uma intervenção unitária o que aconteceu foi que cada região assumiu as suas próprias normas, os seus calendários).
- vai-se manter uma chocante falta de solidariedade humana e os países ricos continuarão a virar as costas aos apelos para partilharem recursos com os mais pobres (é revelador o facto do único país que enviou ajuda para Moçambique em temos de recursos humanos ter sido curiosamente um país pobre, chamado Cuba).
- vai-se manter uma agenda da investigação científica baseada em interesses de lucro das grandes companhias farmacêuticas.
- vamos continuar a fazer de conta que muitas das nossas escolas não deveriam ter que ser fechadas durante a pandemia porque, em rigor, nunca antes deveriam ter sido abertas. Essas escolas não reúnem as mais básicas condições de higiene. E o mesmo se pode dizer para grande parte dos transportes públicos, dos mercados, dos ginásios, das instituições públicas.
- vai-se manter a ideia de que a saúde diz respeito aos médicos, hospitais e Ministérios da Saúde. Vamos esquecer que a prestação de cuidados de saúde é uma tarefa de toda a governação, uma tarefa de toda a economia e toda a sociedade.
Em suma, nós sabemos quais as lições a recolher. Mas não somos donos das respostas. Assim que surgir a próxima epidemia iremos reagir como se fosse algo inesperado. A COVID poderá ser daqui a umas dezenas de anos uma lembrança vaga, tão vaga como é agora a recordação da Gripe Espanhola. Recordo-me de uma carta que, há um ano e meio, uma centena de intelectuais e artistas africanos dirigiu aos dirigentes políticos do continente.
Essa carta sugeria que se deixasse de olhar África como uma eterna vítima, um continente cuja sobrevivência dependerá sempre da compaixão dos outros. E apelavam para que houvesse uma forma mais criativa de desenharmos os nossos próprios sistema de saúde. Os intelectuais e artistas africanos apelavam para que se introduzissem rupturas radicais nas formas de governação dos nossos países.
E que os africanos deixassem de medir o progresso dos nossos países por indicadores que são ditados pelos chamados “países doadores” como é o caso das taxas de crescimento económico. E que apostassem fortemente em políticas públicas de educação e de saúde que não servissem apenas uma pequena minoria que está mais ocupada no roubo dos bens do Estado do que na promoção de um futuro melhor. Daqui a uns anos a grande pergunta não será se continuaremos a usar máscara e iremos precisar de novas vacinas. A grande pergunta será se teremos escolas com água e casas de banho, se teremos melhores hospitais, melhores transportes públicos e uma vida melhor para a grande maioria do nosso povo.
Chego ao final desta intervenção e preciso de ser verdadeiro com o sentimento que aqui me trouxe e que não é derrotado nem pessimista. Tenho não apenas a esperança, mas a certeza que irão ocorrer mudanças positivas. O que quero dizer é que não vai ser apenas por causa do fim da epidemia que iremos mudar. Serão precisas outras mudanças de fundo, outras vontades, outras formas de governar. A questão é uma outra, bem mais urgente e mais profunda. A questão é que iremos mudar porque não temos escolha. Ou mudamos todos ou não haverá futuro para ninguém. Neste sentido, o futuro é parecido com a vacina. Ou há futuro para todos ou seremos todos vencidos pelo passado.
*Intervenção nas Jornadas Científicas do Instituto Nacional de Saúde – 08.09.21.
Vai fazer falta a ironia, a irreverência (mesmo que, por vezes, tida como impúdica) deste exímio cronista. Juma Aiuba cumpriu com coragem uma missão espinhosa: criticar a hipocrisia viciada de muitos dos nossos costumes. A sua escrita foi uma contundente caricatura de alguns funcionários da maledicência que foram pagos e promovidos para inventar ódios e diabolizar os que têm a ousadia de pensar diferente.
Mia Couto
Escrevi num romance meu que o mais importante não é a casa onde moramos mas a casa que mora dentro de nós. Essa casa pode ser a Pátria.
A Pátria é uma palavra delicada. Foi (e continua a ser) usada com nobres propósitos. Mas também já foi usada por ditadores para manipular as pessoas. Serviu para justificar guerras, crimes, regimes de opressão. Em nome de Deus, da Pátria e da Família construíram-se tiranias, fabricaram-se ódios e campanhas de morte e sangue.
O cidadão está ansioso por escutar o noticiário. Assuntos graves, de urgência nacional pairam no ar. Ele liga a rádio e a notícia de abertura é a seguinte: no distrito de Namacurra a produção de milho deve ultrapassar a meta anual em 25 por cento. O cidadão suspira fundo e sintoniza uma estação televisiva: a notícia de abertura dá conta que um ministro realizou essa coisa completamente extraordinária que foi apelar para que se aumente a produtividade. O cidadão procura uma outra estação. E fica a saber que num bairro periférico de Lichinga um jovem matou a sogra à paulada.
O cidadão percebe que, para saber da realidade nacional, ele tem que procurar uma fonte noticiosa estrangeira. E foi o que ele fez naquele dia. E o que fez nos restantes dias. Para saber do seu país, ele passou a escutar noticiários de fora. Um dia, o vizinho, acusa-o de falta de orgulho nacional. E defende que a planificação agrícola no distrito de Namacurra é um assunto absolutamente global. E que é ainda mais vital saber o que diz um nosso ministro sobretudo quando ele não diz nada. E conclui o vizinho: você, meu caro, é um pobre manipulado. O cidadão não reage bem, exige explicações. Está a ver, isso de exigir explicações já é coisa da mão externa, declara o vizinho. O que acontece quando a pessoa começa a saber. Vai querer saber mais, vai quer debater, vai querer pensar pela sua cabeça. E a pessoa pensar pela sua cabeça, isso só pode ser uma ideia vindas de fora.
Veja o caso do Manuel Chang. Se continuássemos a não falar dele tudo estaria melhor. Não teríamos nada para falar. Você ficaria satisfeito com os noticiários nacionais que falam do cumprimento das metas do milho em Namarrói. Em Namacurra, corrige o cidadão. Um autêntico patriota, como eu, tem confiança, não anda para aí a querer saber de tudo e mais alguma coisa. Isso de querer saber, meu caro, não faz parte da autêntica cultura africana, isso é coisa que vem de fora, queixa-se o vizinho. Mas não acha, argumenta timidamente o cidadão, não acha que é bom que se discuta, dentro de Moçambique e entre moçambicanos, os assuntos que nos dizem respeito? E não acha, pergunta o cidadão já mais empolgado, que os que reclamam que não paguemos as dívidas ilegais sejam mais patriotas que os que aceitam tudo e mais alguma coisa? E não há mão externa nas dívidas ocultas dos que, como eu, querem saber de como iremos pagar?
O vizinho, suspira exausto e, já em desespero, pergunta: quem lhe está a pagar, meu caro caro cidadão? Quem lhe paga para questionar os que receberam empréstimos de fora e que, coerentes com o seu amor pátrio, colocam esse dinheiro sujo no exterior? Não lhe passou na cabeça que esses que lavam o dinheiro no exterior o fazem por verdadeiro nacionalismo, apenas para não sujar o chão da nossa bela pátria amada?
O cidadão retirou-se e afastou-se pela rua movimentada. Sentiu que lhe mexiam no bolso do casaco. Não reagiu com medo que fosse a mão externa.