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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

terça-feira, 20 agosto 2024 11:24

Condenado à pena de tormenta

Mas eu não sou o personagem principal nesta trama, também não sou um figurante. Sou o tabuleiro indicado para que todas as cenas passem por mim como nas pontes de betão, onde os camiões de grande tonelagem atravessam, fazendo com que os fundamentos de toda a estrutura estremeçam. Por vezes dá-me prazer vestir a pele que me atribuiram, de um inconsequente, porém noutras vezes sinto que o meu lombo não aguenta, sou frágil demais para suportar este papel, é como se o meu castigo viesse para ficar.

 

A informação que tenho é de vamos partir às quatro da manhã, então às três estarei de pé para aquecer água no fogareiro à carvão, e foi isso que eu fiz. A minha casa de banho é externa, e em cima da hora fui descobrir que a lâmpada fundiu, está escuro lá dentro. Recorri à lanterna do telefone que me dava a sensação de eu próprio ser um fantasma. Ou seja, não parece real alguém estar a tomar banho às três da manhã, num silêncio em que o único som que se ouve, é da água deslizando pela minha cutis.

 

Cheguei a pensar que a única pessoa que estaria acordada àquela hora, sou eu. Mas esses pensamentos não me perturbavam, o que me empolgava era a viagem que iria iniciar daqui a pouco. Uma longa viagem que terminaria numa cidade cercada de montanhas pedra, Tete, e eu conheço o percurso que passa pela espectacular cordilheira de Catandica. Do outro lado fica o Zimbabwe, onde se pode entrar também pela fronteira de Cuchamano. Pensava em tudo isto durante um banho que não durou mais do que dez minutos, um banho quente e agradável.

 

Ao sair da toilett vejo um homem parado em frente à porta da minha casa, na verdade uma silhueta virada de costas para mim, parecia Yupidu, e eu cubro as partes sensíveis com a toalha, entregando o meu tronco à cacimba fria que cai imperceptível, sem deixar, mesmo assim, de ser letal. Perguntei, quem é você!

 

Quem me responde é o silêncio, mas eu estou animado pela viagem que vai começar daqui a pocuo e já são quatro horas! Há uma rola que arrulha à esta hora e isso não é normal, pode ser sinal de mau agoiro. Ao mesmo tempo o meu telefone retine com um número desconhecido. Um cão que ladra lá fora de forma persistente, mas aqui na zona nenhum dos meu vizinhos tem cão. Sinto cheiro de tabaco aceso, alguém está a fumar.

 

Mas isto é um  turbilhão, e o centro do remoínho sou eu, condenado com pena de tormenta, sem julgamento sem nada, o juiz da causa são os meus actos, os meus caminhos tortos. É por isso que estou aqui apenas com a toalha na cintura, e o tronco do meu corpo sendo molhando pela cacimba que cai em gotas microscópicas. Não consigo mexer-me.

 

Então já não tenho dúvidas de que estou perante as mandímbulas do lagarto mais frio do planeta, que se ri como as hienas, porém eu vou viajar. Em liberdade. Cantando as músicas copiadas do Salmos.

quinta-feira, 08 agosto 2024 08:30

Um ex-ministro absolutamente frustrado

AlexandreChauqueNova 1

Ele já estava no local combinado, quando cheguei, virado de costas para a entrada do bar, sentado numa mesa sobre a qual a empregada acabava de deixar uma chávena de café fumegante. Apagou o cigarro no cinzeiro com a mão a tremer e logo a seguir iniciou o desfrute. Assisti a estes movimentos de forma dissimulada, a partir do balcão onde me sentara sem pedir nada, fingindo que não estava a vê-lo, sem saber se tomava a iniciativa de me aproximar, ou esperaria até que me reconhecesse e  desse algum sinal.

 

Bebia o café com tremelique nos lábios e na mão direita que segurava intermitentemente a chávena. Parecia ter medo de olhar para as pessoas que estavam ali com canecas de cerveja celebrando a vida logo de manhã. Naquelas circunstâncias, não passava de uma silhueta varrida até às vísceras, contrariando os tempos em que, mesmo não exalando soberba, era um personagem da primeira linha, que jamais poderia passar despercebido.

 

Mas eu já não podia esperar mais no balcão, de uma pessoa que estava à espera de mim, então era necessário que chegasse até ele. Vou ter com alguém com quem me relacionara, quando eu praticava jornalismo activo. Tornamo-nos confidentes um do outro. Há muita coisa que eu sei dele. Ele também, tem muita coisa que sabe de mim, das minhas incongruências, mais do que das minhas virtudes, que nem as tenho. Criamos um ambiente de amizade, quando era um ministro de proa e me convidava amiúde para um café onde falávamos de tudo, menos do futuro. E o futuro dele agora é este, desastroso. Cheio de frustrações. De mágoas.

 

O que o ex-ministro quer de mim é que o ajude a escrever qualquer coisa sobre a sua vida. Qualquer coisa que seja sincera e hosnesta em forma de livro. Na verdade nunca pisou a ninguém. Tratou sempre as pessoas com respeito. Cumpriu, durante o seu mandato, todas as orientações do presidente, e tornou-se um profissional irrepreensível.

 

Estamos sentados frente a frente, ele de costas para a porta de entrada do bar e para as pessoas que conversam bebendo cerveja livremente em grandes canecas, e eu encaro o ambiente como os cowboys nos saloons buliçosos de Farwest.

 

Vai um café? Perguntou-me tirando um cigarro do maço da marca Palmar azul, e eu disse que não ia beber café, por causa da cafeína, sou hipertenso. Então peça alguma coisa do seu gosto, pedi água. Já tinha tomado o pequeno almoço em casa, sardinhas fritas com salada de alface e chá de cidreira.

 

O homem já não treme, nem nos lábios, nem nas mãos, o café e o whisky trouxeram-lhe à falsa sensação de bem estar. E assim começou dizendo: olha, meu caro, estou profundamente frustrado por não ter feito nada pelo meu país.

 

- Mas porque é que você não fez se tinha condições e a obrigação de o fazer, tomando em conta o lugar privilegiado que ocupou durante dois mandatos?

 

O ex-ministro pediu mais um duplo e olhou para mim com incisão: eu podia ter feito muito, com certeza, porém estava atado, não me deixaram fazer. Pior do que isso, obrigaram-me a cometer erros, a cometer crimes.

 

- Então, se fizeram isso contigo, porque é que continuou a seguir um caminho que não será o mais correcto?

 

- Essa é a pergunta mais perfurante que me faço a mim mesmo todos os dias. Perdi a oportunidade de acender luzes para o povo, e já não posso voltar para trás. Sou um pulha!

segunda-feira, 22 julho 2024 14:05

As desconcertantes carnes da mulher

Mas a vida é assim, como as marés que vibram numa época, e baixam na época que vem. As flores também. Acordam vigorosas nas manhãs com os cheiros perfumados da noite, e ao picar do sol  cedem. Perdem a graça, e ninguém as quer. É o interminável recomeço do ciclo. Que nos faz acreditar na força interior da utopia.

 

Eu também sou assim, sigo, ou sou levado a seguir pelos espíritos, esse caminho do sol que nasce  no esplendor do amanhecer, exubera em todo o dia, porém vem o anoitecer e apaga essa luz que supera todas as estrelas. É por isso que não tenho medo, aliás perante as pedras do caminho visto o escafandro da música dos bitongas, para ver se amanhã acordo outra vez, com as mesmas azagaias. Com os mesmos ritos.

 

É o mar a minha prancha para os voos da imaginação, então volto sempre a este lugar para ouvir a ressonância das ondas que se esbatem na areia. E hoje cheguei a meio da manhã com a maré vaza e, para minha surpresa, está no meu lugar habitual uma mulher desconhecida deitada de barriga, deixando as fartas nádegas ressurgindo do fio do bikini, e eu ainda me perguntei: mas o que é isto?!

 

Sentei-me ali mesmo, ao lado dela, baralhado pela sensação de alta voltagem que me percorria por inteiro, não sabendo bem se por causa de uma mulher deitada no meu lugar, deixando as nádegas cheias de carne em exposição, ou porque sou fraco. Esqueci-me completamente de contemplar os pernilongos dos flamingos que dançam na esgravatação dos moluscos, e já estou em ebulição, sou feito de carne também.

 

Bebi um gole da cachaça que sempre levo no bolso à praia para que a harmonia entre mim e a natureza se aclare, mas este gole foi longo demais. Os meus olhos não saem das nádegas livres de uma mulher que está deitada na areia da praia, sòzinha, ainda por cima no meu lugar onde implantei uma sombra de folhas de palmeira para estar sozinho na minha solidão, e eu jamais imaginei que isto podia acontecer num retiro que ainda perserva os tabus.

 

Bebi outro gole numa altura em que ela se revirava, deitando-se agora de costas com as pernas estendidas, meio afastadas uma da outra, para gáudio da loucura. Os seios são perenes, oprimidos porém no soutean, e o bikini só protege a parte mais macia de um corpo esculpido por mãos invisíveis, o resto está fora. E essa mostra não será propriamente um problema, estamos na praia.

 

A maré está a encher e os flamingos vão bater as asas em liberdade, rasgando os céus em fila para outros  poisos, mas eu estou hipnotizado por um ser feminino deitado no meu lugar, na minha sombra. Na sombra das minhas lucubrações.

 

Então ela agora levanta-se. Espreguiça-se.  Olha para mim despreocupada.

 

- Oh, desculpa, o senhor é o dono desta sombra?

 

- Sim, sou eu.

 

- Avisaram-me uns miúdos que passaram por aqui, disseram-me que é um sítio privativo, desculpa pela invasão.

 

- Você não invadiu o meu lugar, você adornou a minha sombra.

 

Afinal somos conhecidos. Estudamos na mesma escola primária, e depois o tempo separou-nos, cada um para o seu destino. Mas, como o próprio mar, voltamos para a nossa terra, depois de muitas escalas pela vida, com muitas alegrias e derrotas até hoje, que recusamos ser vencidos.

 

Abraçamo-nos longamente. Bebemos juntos a cachaça, e eu disse assim para ela, a vida dá-nos sempre um espaço para recomeçar! E ela respondeu: é verdade!

segunda-feira, 15 julho 2024 16:02

Eu sou a tempestade do povo

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Não sei bem onde moro. É por isso que você nem sequer me procura. Na verdade eu vivo neste buraco escuro, sem estrelas, ao lado de outras ratasanas que saem nas noites a procura de alimento inexistente nos celeiros. Mas eu não tenho medo das pessoas, você é que tem medo de mim. Sou ratasana da nova espécie, não violo as machambas. Mesmo que quisesse fazer isso, aqui não há terra cultivada, a mandioca secou com o tempo, então as minhas mãos vão criar novas searas.

 

Não sei bem onde moro, moro em todas as tocas sombrias onde já não espero nada, nem de você. Aqui não há pássaros. Morreram todos, deixando o cheiro das melodias que se transformaram em sinfonia do diabo na memória de mim. Nunca amanhece neste lugar, então é mentira a poesia de Jorge Rebelo.

 

Não sei bem onde moro, e todas as minhas forças estão se esvaindo no escuro. A chuva que cai neste lugar, todos os dias, é pegajosa e mal cheirosa. É por isso que o sol tem medo de raiar, faz muito frio. E os pássaros têm medo do frio e da chuva, fugiram sem deixar vestígio. Nem os sons sobrevivem onde eu moro. E já não oiço a fala do próprio silêncio, moro numa tumba.

 

Não sei bem onde moro, mas eu existo. Definhando em cada palavra dos discursos vazios anunciando as vitórias que no fundo são uma falácia, não há vitória nenhuma, tudo isto é mentira. Se houvesse vitória eu retumbaria dos abismos onde não há música nem poesia, e de onde não vejo a possibilidadde de sair e vir cá fora rebolar na dança. E você entregou todas as minhas canções buriladas na honestidadde e integridade, e voltei a ser um escravo desprezível. Um cão sem nome, sem lugar para viver. As minhas terras estão sendo levadas e entregues aos poucos e poucos. Outra vez!

 

Mas eu estou cansado de ser ratasana, não é essa a minha vocação. Eu sou orca, a fúria dos mares! E você tem medo da minha revolução. Eu sou a turbina do povo e vou chegar a todas as tumbas e ressuscitar todas as ratasanas e transformá-las em orcas também, como eu. Eu não sou ratasana, porra! Sou uma das lenhas amarradas no feixe da luta popular, e não é você que vai quebrar este feixe! A este feixe não se quebra.

 

Eu sei bem onde morava, morava na tumba como as ratasanas do fim do mundo, mas agora acabou, não volto mais para lá. Sou o remoínho das canções transformadas em comportas que enchem albufeiras inteiras: Eyuphuru, Gorhwane, Kapa Dêch, Djaka, Massuku, Alambique!

 

Eu sou a tempestade do povo!

sexta-feira, 05 julho 2024 07:44

Macacos me mordam! Diabos me levem!

AlexandreChauqueNova

Toda esta enxurrada que parece levar-nos ao pricipício, onde nos esperam as verrumas do diabo, pode não ter volta, não haverá espaço para o recomeço. Vivemos dias das maiores incertezas, ninguém sabe para onde vamos nem o que nos espera. As crianças, como guerreiros desarmados  nas savanas, enfrentam os seus próprios docentes nas escolas, encurralando-os como o fazem as hienas em matilhas ferozes nos momentos de desespero, desmentindo assim a realeza dos leões.

 

Perdemos o medo, e quando isso acontece significa que já não há outro caminho, já não há mais montanha para subir, então vamos morrer vivos nos combates, tendo a música como estandarte e toda a poesia das matas da libertação como azagaia lançada no espaço. Não podemos vacilar, o novo amanhecer está hipotecado. As ribanceiras do nosso país descem todas para o inferno, e quando é assim é preciso cingir o lombo e mudar o rumo, nem que seja pela última vez.

 

O pão é escasso nas nossas mesas, dançamos nas noites o remoínho do “nhau” que ressurge do estômago vazio, e vamos dormir sem fazer sexo porque estamos com fome, somos a geração dos novos escravos. Os feudais voltaram com outras roupas, estão aqui... na nossa casa. Organizam seminários e palestras em hotéis de luxo para nos enganarem, para falarem da nossa vida, daquilo que devemos fazer, e no fim servem-nos chamussas e rissóis e sumos duvidosos e ficamos contentes com isso. Os ministros do governo anunciam rigozijados, investimentos bilionários das multinacionais como se o dinheiro fosse nosso, como se os proventos viessem para nós!

 

A EN1 está absolutamente rebentada, mas se o rosto do homem é um pouco a janela da alma, então nós também estamos rebentados, não somos nada. É por isso que nos cavalgam, fornicam a nossa dignidade à frente dos nossos filhos. Por exemplo, no tempo em que Helena Taipo era governante, os chineses de uma empreitada qualquer na cidade da Beira, defecavam em sacos plásticos e mandavam os moçambicanos recolher a merda deles.

 

Temos no nosso país, compatriotas que segurariam com firmeza, concerteza, os remos da almadia onde todos nós iamos caber e navegaríamos em marés tranquilas, mas esses marinheiros da esperança foram abatidos como lobos solitários. Outros fugiram e remeteram-se ao silêncio com medo de que sejam os próximos. Já não temos baluarte, o que nos resta é construir outra arca para enfrentar as tempestades que virão dos ventos que estão sendo semeados na nossa terra.

 

O receio é de que o sol não nasça mais, ou nasça com luz de sangue a gotejar sobre nós. Somos nós próprios, em apoio a eles, que vamos criando condições para a última chacina. Seremos, com este andar das coisas, enterrados sem túmulo, outra vez como no tempo das correntes ao pescoço. Morreremos sem glória. Nem nós o povo, nem os combatentes da libertação, que se esvaziaram na ganância.

 

Macacos me mordam! Diabos me levem!

sexta-feira, 28 junho 2024 08:28

É preciso matar Samora outra vez

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Samora Machel é imortal. Um leão que ruge na memória dos algozes como a comporta da devastação. Ele ressurge nas efemérides esvaziadas, encimando os mastros e vibra na voz tinotroante pedindo contas aos traidores. As massas populares continuam a segui-lo no fracasso dos mercados onde o negócio sossobra, ninguém compra nada, não há dinheiro. E o povo não se cansa de gritar, lembrando um homem que nos catapultava e dizem: “se Samora estivesse vivo não haveria estes abusos”.

 

Ocuparam o nosso país outra vez. Esta terra deixou de novo de nos pertencer, e toda a epopeia da luta das matas foi vituperada pela ganância. Não é verdade o que o Primeiro-ministro Adriano Maleiane disse, de que o povo sofre de síndrome de impaciência e quer ganhos imediatos. Mas o gás brota em Moçambique há cerca de trinta anos em Temane, onde a Sasol suga o nosso recurso numa acção de saque, e nunca ganhamos com isso de forma justa, nem pelo menos as comunidades locais. E Maleiane vem a terreiro fazer-nos de tolos. Maleiane disse ainda que o gás não começou a sair e “nós já estamos a reclamar”.  Ora! Quem não sabe que o gás já jorra e já faz dinheiro?

 

Joaquim Chissano, ex-presidente da República, também veio cá fora afirmar que o problema é a formação, por isso não estamos a usufruir da riqueza existente no subsolo, mas não é isso! O verdadeiro problema é a desonestidade dos acordos  estabelecidos com as multinacionais, que exploram os nossos recursos a seu bel prazer. Humilham-nos. Riem-se de nós. Matam-nos nas minas.  

 

As grilhetas voltaram aos nossos pés e, no roçagar das correntes, ouve-se a voz de Samora. O povo quer de volta a almadia que nos levava aos estádios e às praças onde sonhavamos com o crepúsculo do amanhecer, e essa almadia já não existe. Caíram os pilares da integridade. Esboroou o compromisso de criar felicidade para o povo, e o que resta agora parece ser a resignação perante os novos colonos que regressam triunfantes, entrando pelas portas mais sofisticadas.

 

É preciso matar Samora Machel outra vez, para  voltarmos a encher as ruas com lágrimas e revigorarmos o espírito, cantando as canções da nossa luta, hoje enterradas na escala diatónica do infortúnio.

 

- A luta contunua!

 

 - Continuaaaaaaaaa!

 

- Viva o povo moçambicanos do Rovuma ao Maputo!

 

- Vivaaaaaaaaaaa!

 

- Abaixo a exploração do homem pelo homem!

 

- Abaixoooooooo!

 

É preciso matar Samora Machel outra vez para que a Praça dos Heróis se escancare e o povo encha as ruas como as marés enquinociais. Mas os verdugos continuam assustados.  O povo estava nas mãos de Samora, e hoje não está nas mãos de ninguém, foi abandonado no deserto sem fim. Então é preciso matar Samora outra vez para que as nossas lágrimas voltem como as albufeiras da esperança.

 

- A luta continua!

 

- Continuaaaaaaaaaa!

 

- Independência ou morte!

 

- Venceremos!

Pode ser que a espada anunciada já esteja a operar, é verdade. Estamos a ser conduzidos por demónios nos nossos caminhos tornados íngremes e ninguém  percebe os sinais. No princípio era o bairro Chalambe o ponto principal da esbórnia dos desgraçados, aqueles que não terão onde ir, nem a quem chorar. Aqui paira vivamente, de dia e de noite e nas madrugadas, o cheiro catalizador  da cannabis e o despudor. Ninguém se assusta com isso, nem com os homens rebentados pelo álcool.

 

Já o dissemos várias vezes mas não nos cansamos de repetir. Hoje, Chalambe não é mais o único lugar  da gravitação das grutas, há outros pontos nos bairros onde se bebe aguardente de cana-de-açúcucar  ou jambalau e ainda a sura, com mulheres jovens  destacando-se na linha da frente, sem preconceitos. Bebem e fumam tudo, desde o cigarro normal até à “cosa nostra”, e já ninguém vê problema nesse gesto que vai se tornando hábito. Um vício mortal.

 

Não precisa que seja noite, as raparigas e também mulheres maduras, podem ser encontradas nesses esconderijos imundos a consumir tais coisas sem olharem para trás. Outras ainda, fogem temporariamente das suas bancas no mercado e vão beber um trago como forma de afugentarem a dor do tédio criado por um negócio que não anda. Já se descomplexaram, e no seu desespero jamais vão se importar com o que a sociedade fala sobre ela. Aliás, a sociedade tem outras preocupações: o dinheiro que não existe e, consequentemente, o pão que não chega à mesa.

 

Não precisamos mecionar o nome dos bairros onde em cada esquina há uma toca onde se vende thonthonto (aguardente de cana ou jambalau) e sura, existem em todo o lado, e em algumas delas tem lá mulheres bebendo e fumando, e as conversas que se ouvem não têm futuro. Nem passado. Muitas delas mostram-se com sinais de desitração, facilmente notável por via do rosto. Tumefacto.

 

Mas de onde é que vem este fenómeno novo, de mulheres jovens  e maduras na cidade de Inhambane bebendo cachaça e essas porcarias industrializadas que levam nomes inconsebíveis nos rótulos, como por exemplo “Dinamite”? Se calhar a sociedade  está atrasada numa pergunta que não vai fazer sentido, pois se estas jovens estão muito perto do abismo, então todos nós estamos lá. No fundo.

 

Ninguém as repreende, nunca foram. Jamais tiveram alguém para o fazer, ou seja, os pais quando descobrirem a fossa em que suas filhas se meteram, poderá ser tarde demais para qualquer reparação. O tempo que as move funciona como o relógio da morte, cujas horas correm com tontura em direcção à fornalha do diabo, onde já estão a ser queimadas na ilusão do prazer. Mas a cachaça e o fumo de todos os tipos que consomem e libertam no vazio, é apenas para desfarçar a dor. Elas estão no inferno e não conseguem fugir dalí. E se elas não conseguem fugir,  nós também estaremos com elas.

quinta-feira, 30 maio 2024 09:41

Tempo dos furtivos

Duas horas da madrugada não é tempo dos andantes, é nessa altura que o silêncio e o medo atingem o pico. Os fantasmas deambulantes realizam as últimas incursões do tormento nesse lapso, e se tiverem falhado nos seus planos, no regresso para as tumbas pontapearão os fracos que vão sentir a dor na própria carne. É isso que acontece todos os dias sem qualquer sinal de que teremos uma nova madrugada. Até porque os nossos passos têm ignorado sistematicamente a sinaleta que nos avisa: cuidado, vem aí a descer a espada! E nós já demos o último passo!

 

Saí na última sexta-feira à noite à procura de aragem espiritual, sem destino predefinido. Queria um pouco de adrenalina para espantar o tédio em que se tem transformado o meu dia-a-dia ultimamente, então um copo podia ajudar, mesmo assim tinha que ser num lugar de silêncio, onde os que estão lá não entram em euforia, bebem e conversam de forma quase inaudível, para gáudio do coração.

 

Não foi difícil encontrar essa toca, aliás lembrei-me que em Tsivanene, nome dado a um lago permanente na zona do aeroporto, existe uma barraca que entra em consonância com o que eu pretendia naquela noite sem luar: beber um copo em silêncio no seio de pessoas com as quais não tenho nada a ver, nem elas comigo. E lá fui eu, fumando no escuro sem temor algum, aqui todos me conhecem, o diabo também.

 

Cheguei por volta das vinte e duas e apenas duas mesas estavam ocupadas. Numa, eram quatro mulheres que bebiam cerveja sem pressa, e noutra mesa, dois jovens faziam o mesmo e pareciam desinteressados com o que se passa lá fora onde as estrelas reflectem-se nas águas de Tsivanene, sobrevoadas pelos pirilampos que não se cansam de espalhar a sua luz intermitente para que a vida faça sentido. A vida é constituída pela luz e pelo escuro.

 

Escolhi uma mesa num lugar estratégico, queria ter sob meu controle um cenário que me permitisse ver as pessoas sentadas e outras que vão entrar, e ao mesmo tempo poder contemplar a noite por via das luzes do ambiente lá fora. Sentei-me e não saudei a ninguém, para além do sinal que dei à empregada do balcão que veio de pronto. Sou um cow boy sem coldre, aliás, o meu coldre é a imaginação.

 

- Boa noite, pai, vai alguma coisa?

 

- Boa noite, obrigado, queria beber cerveja, mas está a fazer frio.

 

- É verdade, está muito frio, hoje! Talvez um whisky!

 

Chegaram mais dois grupos quase furtivamente. Isto aqui parece uma gruta onde vamos nos esconder em busca de liberdade, longe das feras. Não  há música, ainda bem! E eu não posso fumar aqui dentro, não que seja proibido, mas porque nestes cachos de jovens ninguém está a fumar, tenho que respeitar essa posição. Sou o único velho, porém não caduco, e o que fortalece a minha paz neste espaço é que todos me conhecem.

 

Já estou no quinto duplo e quero voltar para casa. Pago a conta e saio sem despedir, da mesma forma que entrei sem dizer nada a ninguém. Mas foram eles, os jovens, que quase em uníssono dirigiram-se-me em música, em coro como nos palcos religiosos.

 

- Já vai, cota! Cuide-se!

 

São duas horas da magrugada e eu não tenho medo, medo de quê! Os fantasmas e todos os espíritos malignos que se lixem, eu sou um dos grãos desta areia dos meus antepepassados. Quem sois vós para se interporem no meu caminho!

 

Acendo o cigarro da catarse e embrenho-me no escuro, outra vez, e ainda consigo ouvir a música dos grilos e dos sapos que chuachualham em côro. Nos quintais os cães ladram ao se aperceberem da minha passagem, mas eu sou um simples andarilho quase bêbado, feliz por ter estado num lugar onde a música que ali se toca, é o silêncio e a paz.

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Seja para quem for  a mensagem, a expressão não ficou bem a uma figura que, mesmo antes de ascender ao palanque do poder, já está a ser aplaudida como se o facho da vitória estivesse garantido nas suas mãos. A explosão antecipada de garrafas de champanhe em todos os lugares, não será propriamente pela certeza de que o comboio terá um bom maquinista, mas se calhar Daniel Chapo inspira sem que se saiba exactamente porquê. Talvez seja uma intuição da parte daqueles que já o ovacionam estrondosamente de pé na arena da esperança.

 

Eu já o tinha dito, mas não me importo de repetir para lembrar ao próprio e aos demais: nutro uma grande simpatia pelo “El Chapo”, mas fiquei com medo da sua expressão ao se dirigir publicamente numa conferência de imprensa após o encontro que teve com as confissões religiosas, às quais foi agradecer pelas orações que fizeram em seu apoio. O candidato da Frelimo disse assim, a um determinado ponto da sua intervenção: nas próximas eleições teremos uma vitória “trombosante”, um termo, segundo ele, novo.

 

Ora! Chapo não precisa recorrer a esse tipo de  palavras para dizer que estou aqui, é como se estivesse a afirmar que os seus adversários não são nada, são desprezíveis. Parece-me um posicionamento retrógrado, e ele mesmo, o Daniel Chapo, já tinha usado, quando concorria às últimas eleições provinciais onde foi proclamado vencedor, a palavra “qualquerzante”, mas os seus camaradas já diziam isso, em coro: “vamos ter uma vitória qualquerzante”, como se os moçambicanos que lutam pelo poder noutros partidos fossem pessoas quaisquer, não!

 

Este homem de quem se espera um novo amanhecer, deve perceber que está numa importante corrida de estafetas, ele é o último dos quatro e não está na Assembleia da República onde a verborreia impera. Quer dizer, se os outros companheiros de equipa claudicaram durante a prova, então a responsabilidade de vencer está nas suas mãos (se for eleito presidente), mas é necessário que trate os seus adversários políticos com dignidade, sem os “qualquerzar” ou “trombosar”, sobretudo num contexto em que há muitas feridas por sarar, também dentro do seu próprio partido. Para quê andarmos a nos pisar uns aos outros com palavras jocosas!

 

É isso, meu caro Chapo, você é um homem elegido, então não se “qualquerize” com termos primitivos, não trabalhe com a meta de “trombosar” seja quem for, antes pelo contrário, a sua luta será de um acendedor de luzes para todos os moçambicanos, como Moisés que, das masmorras de Faraó, libertou os filhos de Israel.

Percorri todos os bairros da cidade de Inhambane a ver se encontrava algum fontanário para lavar as mãos e molhar a cabeça... nada! Lembrei-me que havia um na Fonte Azul, construído em 1964. Desatei a correr e constatei que apenas sobram as amostras das ruínas. Fui ainda impelido a subir até a Escola Primária Primeiro de Maio, agora não propriamente para lavar as mãos e molhar a cabeça, mas empurrado pela necessidade de reviver a históriia, e também não encontrei nada.

 

Já tinha passado pela Praça dos Trabalhadores, na esperança de molhar o espírito e a alma com a água cuspida pelo repucho, porém fui recebido pela estiagem. Lembro-me do regalo que era todo aquele espaço da rotunda que nos fazia esquecer momentaneamente as agruras da vida, e hoje nem um pingo de água esvoaçando, nem uma gota no aquário.

 

Fui à Chalambe ainda com esperança... também nada! Nem aqui, nem em nenhum outro canto da cidade de Inhambane. Vandalizaram tudo, e nunca mais houve reparações. E se os fontanários e os repuchos não funcionam, é como se nós também tivéssemos abdicado da necessidade de refrescar os nossos interiores que andam de corrosão em corrosão.

 

Na verdade temos problemas sérios de formação como pessoas urbanas, é preciso reconhecer esse nosso défice. Fica a impressão de que não gostamos do belo, não temos capacidade de preservar as relíquias, aquilo que faz parte de nós e nos faz bem. Não seria imperioso, por exemplo, colocar cercas nos jardins para que as pessoas pisem a relva, se não tivessemos problemas de educação. Então, reconstruir fontanários se calhar pode vir a ser um trabalho inglório, mas não podemos continuar assim, é preciso recomeçar, a vida é um eterno recomeço.

 

As crianças jogam a bola na rua, sem repeito pelos transeutes, pelas pessoas mais velhas. Se você as admoesta, será por elas vaiado. E esta situação de falta de campos surge como resultado da falta de planificação territorial que vai degenarar num dilema: aonde é que os miúdos vão divertir-se!

 

No meu bairro havia dois ou três emblemáticos campos de futebol recreativo que congregavam a miudagem em tardes de liberdade e de felicidade, todos eles desapareceram, ocupados por habitações. Outro espaço ainda, foi engolido pelos mangais, e dizem-nos para não abatê-los. Ora, se assim fosse desde os primórdios, estariamos até hoje a dormir em cima das árvores, pois acho que é possível fazer uma intervenção sustentável sem prejudicar os ecossistemas marinhos.

 

Pois é: se temos uma cidade sem fontanários públicos e sem campos para a rapaziada, como é que podemos ser felizes, assim! Porquê que a tendência generalizada é vandalizar os bens públicos e privados? As crianças precisam ser controladas a partir de casa, mas o problema não são só as crianças. Nós também, os adultos, somos assim.

 

  • Título extraído da música de Fernando Luís
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