Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

quarta-feira, 29 janeiro 2020 07:23

Ouvindo música debaixo da árvore

Comprei uma recarga de dez meticais da Movitel e converti  o valor em megabyts. O resultado desta operação permite-me ir ao Youtub e ficar lá durante três horas a ouvir música. A assistir, em deferido, a  memoráveis espectáculos dos meus ídolos, que ainda são os mesmos. Três horas de viagem consecutiva, embalado numa nave espacial que levita na órbita do espírito, é verdadeiramente uma catarse. E eu, por mais que o desejasse, não teria outra escolha que não fosse  entregar-me todo,  por inteiro, ao apelo inegável da música. Da boa música.

 

A minha casa está implantada num enorme quintal onde disponta um pequeno pomar de quatro laranjeiras. Tenho ainda duas mangueiras, dois limoeiros, uma toranjeira e um desabrochamento de plantas de camomila. Aqui reina o silêncio, poucas vezes interrompido pela comunicação entre mim e a senhora dona que está aqui para me dar algum azimute. De resto tenho a liberdade total para fazer as minhas coisas, e uma dessas coisas que gosto de fazer, é ouvir música. E ver shows que a memória jamais apagará.

 

Já perdi o hábito de estar na sala a ver televião. Este lugar para mim tornou-se um claustro, ou seja,  quando estou aqui a sensação que tenho é de que os meus pulmões degeneraram. Falta-me ar. É por isso que que busco recorrentemente a sombra das minhas árvores, onde me sento na cadeira de palha a ouvir, ou a música dos pássaros, ou vomitada pelos pequenos alfitalantes do meu computador, ou ainda a própria música do coração.

 

Acho tudo isto muito admirável. Nas manhãs são as tuta-negras que me acordam quando o dia ainda é uma aurora, e no final da tarde são as rolas que me avisam, no seu recolher, arrulhando melancolias, sobre a chegada lenta da noite. As aves aproveitam a copa das minhas árvores, e poisam irrequiestas para agradecerm a Deus, cantando canções que oiço todos os dias sem me cansar. Amiúde descem e pisam a terra com as frágeis patas, procurando algo para debicar sem  medo de mim.

 

Mas hoje estou com o computador ligado debaixo desta mangueira. Quero ouvir a música dos meus ídolos, aproveitando os “megas” convertidos dos dez meticais. Sinto-me feliz. Livre. E sem saber porquê, comecei por um rock-blues, bem içado pelas mãos de uma panóplia de ouro, Buddy Guy, Eric Clapton, John Winter, Robert Cray, Humbert Sumlin. Eles tocam “Sweet home Chicago”, uma verdadeira catarata de guitarras tocadas por gente auspiciosa. Fazem parte do meu tempo, porém isso não me basta. Não me saceia.

 

Procurei Louis Armstrong, nascido antes da Segunda Guerra Mundial (1901), e o que eu queria ouvir dele era Hello Dolly e What a Wonderful World. Senti-me elevado. Mesmo assim não podia esgotar a minha conta sem ver e ouvir Fela Kuti e o inevitável Hugh Masekela, que me levou para sempre na apresentação que fez em Lugano, em 2009, cantando o inultrapassável “Stimela”. Foi aqui onde percebi tudo, Hugh nasceu para cantar. E tocar trompeta. No cume.

 

Sigo este ritual de forma quase religiosa, e este imenso verde que me cerca, e ajuda na regulação do gás carbónico na atmosfera, é mais do que isso. É uma  importante plateia que me leva a vastidão do mundo da música, onde o coração transborda e outorga a paz. Na verdade, este verde leve dá-me isso. De graça.   

terça-feira, 21 janeiro 2020 13:05

O homem treme como a própria terra

Já haviamos combinado que a entrevista decorreria na esplanada do Hotel Tofo-Mar, e eu cheguei uma hora antes. Às nove. Estava bem disposto, inspirado para explorar ao máximo um homem invulgar. Um personagem. No fundo será uma ousadia, pois como se diz, se quiseres enfrentar um monstro, tens que ser um monstro, e eu não sou. É por isso que fui buscar vários reforços para encará-lo, de frente. E uma das vigas que vou usar para cingir o meu lombo, é o poder da imaginação.

 

A maré esta a vazar, e as ondas vão perdendo fulgor. Daqui onde estou a paisagem é linda, e tudo isto dá-me uma sensação indescritível de liberdade. Vejo, de longe, em pleno Oceano Índico, um barco passando em direcção ao sul, e um dos trabalhadores do hotel apressou-se a dizer que está alí um cruzeiro. Na verdade este  é um ponto privilegiado de contemplação. É um lugar que mesmo assim está na iminência de ceder ao mar, que vai “comendo”, aos poucos e poucos, a terra que já não se pode gabar da sua firmeza.

 

Tenho à minha mesa uma pequena garrafa de água, da marca Vumba. Vou bebendo gole a gole enquanto espero por uma pessoa que nunca vi em carne, a não ser em livros. Estou ansioso. Há um terramoto que se anuncia dentro de mim, e esse sentimento pode abalar a minha alma e destruir-me por inteiro. Desde que estou aqui, há quarenta minutos, o meu telefone ainda não tocou, não sei se isso é bom. O silêncio, agora mais do que nunca, ruge a minha volta, parecendo que eu próprio sou o actor principal de um filme de terror.

 

São dez horas. O garçon aproxima-se e pergunta-me se vai mais uma água, uma vez que a garrafinha já não tinha conteúdo. Eu disse-lhe que sim, vocalizando suavemente uma palavra comprometedora, ou seja, o “sim” é de uma grande responsabilidade. E o que vou fazer na esplanada do hotel Tofo-Mar não é nenhuma brincadeira. Quer dizer, convoquei um homem inteiro que vai deixar os seus afazeres, para ser interrogado por mim.

 

Não páro de olhar para a entrada que dá acesso a tranquila esplanada onde estou sentado, esperando por um enigma. Pode ser que não faça, por incapacidade, as  perguntas apropriadas. Eventualmente ele também irá me colocar questões, e  não terei sabedoria para ir ao encontro das suas expectativas. Há um maremoto que me devasta mais o coração do que exactamente o cérebro. A minha pressão arterial deve estar perto dos duzentos, ou um pouco para além disso, e nestas condições o médico não vai levar-me, concerteza, à sala da cirurgia.

 

São onze e vinte. Vejo um homem muito entrado na idade (um ancião), dirigindo-se resolutamente a minha mesa, apoiado num cajado que suporta o lombo cansado. Parece dançar com as ancas descompensadas, ao estilo das hienas, animais com a dentadura mais feroz da selva. Ele sorri para mim, e não tive quaisquer dúvidas de que era ele. Levantei-me, sorrindo também, e fui ao seu encontro.

 

Abraçamo-nos efusivamente, e eu senti o corpo do homem tremendo como a terra flagelada pelos sismos. Também tremi. E nós os dois passamos a dançar a música dos nossos corações. Era uma espécie de transmutação, porque este momento trouxe-me a serenidade que precisava para entrevistar este mamute. Mas a entrevista não se materializou. Ele pediu – depois de nos sentarmos - um duplo de “scotch” e disse-me assim, amigo, desculpa, vamos conversar amanhã, hoje deixa-me contemplar esta maravilha do Índico. Fica comigo, por favor, conta-me a tua vida.

terça-feira, 14 janeiro 2020 09:17

Tabus da minha cidade

Tenho 96 anos de idade e nunca tinha visto antes uma coisa igual. Já vivi momentos dramáticos e de medo, que ultrapassam os limites da dor, como estar uma noite inteira debaixo do matraquear incessante do granizo por sobre as chapas de zinco que cobrem a minha casota, e do rimbombar apocaliptico dos trovões que pareciam a última ira do próprio Jehová dos Exércitos. Experimentei a terrível sensação de que o mundo ia implodir para dentro dele mesmo, ou para dentro de nós, nos anos 40, quando um terramoto flagelou aldeias inteiras em Kassakatiza, alí no limite entre Tete e Zâmbia. Tenho ainda na parede da memória, o remoínho que me arrancou do rio Zambeze, para fustração dos crocodilos, colocando-me no ar como  Jesus Cristo em ascenção, depois de se despedir dos Seus discípulos em Galileia. Tenho esses profundos episódios todos, inesquecíveis, e eu a pensar que não haveria mais nada de extraoridnário para viver.

 

Eis que agora, empurrado pela própria história, provavelmente pelo destino, estou aqui, numa cidade alagada de preconceitos e tabus sem fim. A princípio, quando cheguei, vindo de Chinde - outra escala da minha existência de andarilho anarquista - esta urbe parecia incapaz de produzir feitos notáveis, para além do sossego, que por sua vez nos dá a falsa sensação de que a vida aqui é completamente musicada. Mas aos poucos e poucos, fui percebendo que por detrás deste sereno ulular, podem estar escondidas várias hienas que passam a vida a sorrir para esconder o asco.

 

Moro num ponto privilegiado da baía, em Nhapossa, de onde posso contemplar, de longe, as cidades de Inhambane e Maxixe. À noite passo horas e horas observando tranquilamente as luzes emanadas pelas duas urbes, as quais, por sua vez,  deixam escapar as gotas da iluminação que se espalham pelo mar, tornando a paisagem ainda mais reverberante. Tudo isto é uma beleza sem paralelo, enfatizada pelo murmúrio imperceptível das ondas pacatas. É uma dávida.

 

E porque a cidade de Inhambane é um alfobre de mistérios, temos que estar preparados para o pior. Na última quinta-feira (9 de Janeiro de 2020), acordamos entusiasmados ao ver o Céu completamente coberto de nuvens, depois de meses e meses sem chover por estas terras. Era o renovar da esperança, que mesmo assim, perante todos os sinais de infausto, nunca desvaneceu. Trovejou em sussurro sem que antes podessemos visualizar os relâmpagos. Pingos escassos começaram a tamborilar por sobre os nossos tectos, mas pouco tempo depois tudo voltou com era. Sol devastador.

 

Porém, do lado da Maxixe, que fica aqui pertinho, chovia a potes. E no lugar de a precipitação alastrar-se até  onde havia sido anunciada, foi desviada para Homoíne, Panda e Funhalouro, deixando-nos a mercê da canícula e dos pensamentos. Dizem que alguém, cheio de maldade e rancor contra estes lugares, “amarrou” a chuva. Aqui não pode chover, e muitos acreditam nisso. Aliás, eu também, que pensava ter vivido o lado mais dramático da vida, sou tentado a pensar como esses muitos. Até porque aqui mesmo, nas profundezas deste pedaço de mar, há pessoas que vivem em comunhão com os peixes e mariscos afins, incluindo tubarões que têm aparecido como se fossem o terror dos mares. Esses seres humanos naufragaram. Uns reapareceram, e hoje são curandeiros. Outros, contudo, continuam lá, na esperança de um dia voltarem.

 

Nos meados de Dezembro de 2019 eu voltava de Linga-Linga, depois de uma visita familiar. Esse poderá ser o dia mais espectacular dos meus últimos tempos. Fomos perseguidos pela chuva, que entretanto limitava-se a cair à volta do barco à vela que nos transportava, sem nos atingir. Andamos cerca de duas horas à favor do vento, cheios de medo, com a chuva a escoltar-nos, e o marinheiro, experiente nestas andanças, dizia-nos, fiquem calmos, havemos de chegar.

 

Na verdade, depois da Ilha de Inhambane (Giidwane), a chuva desapareceu. Vimo-la voltando para Linga-Linga e ninguém ousou perguntar, mas o que é isto!

terça-feira, 07 janeiro 2020 12:41

Vamos dançando makharra

Entrei no facbook e dei-me com um companheiro de inúmeros e longos caminhos. Dos tempos em que, cheios de sangue jovem nas veias, marchávamos e corríamos e rastejávamos  como lagartos humanos, com AKM  a tiracolo, sem munições, no Centro de Preparação Político-Militar de Boane, treinando para defender a Pátria. Decorria o ano de 1975, antes da Independência Nacional de Moçambique, e tudo aquilo era por demais fascinante. Éramos um conglomerado de mancebos provenientes de todo o país, que estávamos alí levados pela euforia da liberdade.

 

Olhei para a fotografia e reconnheci o Felisberto Laíce, um machope de Quissico. Mais jovem do que há dez anos, quando estávamos juntos no jornal Notícias, e tratei imediatamente de lhe enviar uma mensagem que entrava na contramão dos demais. Ou seja, enquanto os outros amigos do “face” lhe elogiavam pela jovialidade estampada no rosto, eu disse-lhe mais ou menos assim,  machope é machope, nunca vai deixar de sê-lo, mesmo que viva no bairro mais luxuosa da cidade. Aliás, ele – o machope – ferve em pouca água, e daqui para aqui, pode baixar as calças e mostrar-te o trazeiro. 

 

Laíce não demorou. Devolveu-me os trocos e respondeu-me com um “kha kha kha” dizendo assim, o machope é um gentlman, meu caro, não é como o  bitonga como tu,  que vive de coco e farinha de mandioca. Pior do que isso, dizia ainda o meu amigo, vende o melhor peixe da faina, e leva a péssima qualidade para casa, o bitonga é o pior avarento do nosso planeta.

 

No fundo era a forma que encontrei – depois de um longo tempo sem qualquer contacto entre nós -  para saudar o meu velho camarada, agora reformado, depois de ter percorrido quilómetros e quilómetros com a AKM, e depois com uma máquina fotográfica sempre pronta a disparar e poetizar com a imagem. Sempre brincamos assim, nesta plataforma da sátira, usando e abusando da fraternidade que nos une. E isso tudo adentra-nos a alma e protege-nos de todos os abalos.

 

Felisberto Laíce é também minha fonte de inspiração. Qualquer paródia que eu escreva sobre a timbila e o mwenje e o n´tona (óleo de mafurra), é como se dedicasse a ele. De todos os machopes que eu conheço, ele é o mais próximo de mim. Chamo-o de Betinho, com muito carinho, como se fosse o farol imprescindível para me indicar as veredas imprevisíveis de toda a Zavala. Por vezes imagino nós os dois no palco, o meu amigo a tocar a mbila, e eu a cantar com voz roufenha, delirando aos movimetos da matchatchulani (bailarina) dançando na minha memória.

 

Lembro-me que no dia do meu aniversário,  aos sessenta, há dois anos, Betinho ligou para mim e disse assim, meu caro, já estamos em dacadência! E eu disse assim para ele, meu caro, nós estamos em ascensão para o último patamar. E enquanto não chega o dia do último suspiro, vamos dançando makharra e aproveita, irmão,  o tempo para tirar muitas fotografias com a máquina da tua alma.

terça-feira, 31 dezembro 2019 09:33

Flores lindas em vão *

A criança estava internada numa enfermaria de adultos, onde reinava um mutismo quase absoluto, para disfarçar a dor das chagas providas da carne e do espírito. Porém o cheiro característico dos remédios e da putrefação das feridas, tinha outra direcção, triunfava por sobre o silêncio de um lugar que ninguém cobiça. Aquilo é uma desolação. Leva-nos a uma profunda comoção ao ponto de não podermos conter as lágrimas, que vão transformar o nosso rosto em albufeira. Mas esta é a realidade, ou uma parte das consequências de uma guerra estúpida que durou dezasseis, calcinando tudo até à categoria dos escombros humanos.

 

São homens e mulheres amontoados no mesmo sítio, como entulho sem esperança. Gemeram até a exaustão apelando a intervenção dos médicos, e os médicos não cabem em si mesmos, e como todas as forças esvairam-se, já não se ouvem os gritos. Muitos estão deitados de tal maneira que a sua respiração é imperceptível. Não se sabe se estão mortos ou continuam vivos. O pior é que aqui dentro a temperatura é muito elecada. O ar está por demais abafado, e o pessoal da saúde já não tem como fingir o cansaço.

 

Decorre o ano de 1985, e por estas alturas pode-se dizer que se está no auge da matança, onde não se poupam nem as mulheres grávidas, nem as crianças. E uma dessas vítimas é esta menina que está aqui, engessada nas duas pernas, dos quadris até aos pés. Os braços estão livres, permitindo, assim, que as mãos possam enxotar as moscas que sobrevoam o rosto amadurecido pela dor e pelo medo.

 

Não tenho coragem de me aproximar desta criatura que olha para mim com ternura. Mas ela magnetiza-me naquele coraçãozinho. Então, naquelas circunstâncias em que estou envolvido como numa teia amorosa, não tenha outra escolha senão partilhar, de alguma forma, o destino desta pequena paciente da guerra fraticida. Vou para junto dela.

 

- Senta aqui, tio!

 

Olho para o redor de mim e não vejo nenhum agente da saúde por ali. Sei que não é permitido sentar-se à cama dos doentes, mas eu não podia recusar o pedido de um anjo. E aquele gesto era mais que um pedido, era um apelo muito forte por demais. Capaz de me penetrar profundamente os sentimentos. Sentei-me, fazendo um esforço tremendo para conter as lágrimas que fermentavam dentro de mim, e antes que eu encontrasse uma palavra apropriada para articular, ela acariciou meu braço e disse assim, tio, estou a pedir bolacha e refresco.

 

- Está certo, volto já.

 

- Está bem, tio.

 

Lá fora podia chorar livremente, deixando as lágrimas deslizarem como dois fiapos de um rio dorido. Caminhei como um louco para a loja, de onde fui trazer as bolachas e o refresco. Todavia, antes passei pela estufa do Conselho Municipal de Inhambane e comprei umas flores para a minha amiga. Estou entre a alegria e a tristeza, movendo-me novamente como um louco, agora de volta ao Hospital.

 

Entrei de rompante na enfermaria e dirige-me directamente à cama da menina, onde ela já não estava.

 

- Senhor, a menina morreu.

 

- Aonde é que ela está?

 

Era uma pergunta sem sentido que eu fazia. Saí imediatamente com as flores na mão, e os doces, e as bolachas, sem saber o que fazer.

 

  • Tomara que Moçambique não volte jamais a situações do género
terça-feira, 17 dezembro 2019 13:09

Samukhela

A primeira coisa que fiz, ao entrar no pequeno autocarro que vai-nos levar a Massinga, foi olhar para o condutor no sentido de tentar avaliar a sua compostura global. Estou sentado no banco da frente, lado a lado com o dito cujo, do qual ainda não tirei nenhuma ilação. Ele tem a cadeira reclinada, com os dois braços a servirem de almofada, mas logo que se apercebeu da minha presença, mudou de posição. Endireitou o encosto, levando de seguida as mãos ao voltante de uma viatura que está inerte, à espera de completar a lotação. 

 

Virou-se para mim e saudou-me cordialmente, transmitindo a imagem de uma pessoa educada. É um velhote que já deve ter passado, de algum modo, a fasquia dos sessenta, porém nota-se ainda nele,  a robustez física de alguém com capacidade para enfrentar o asfalto e seus perigos. Mas essa é apenas a minha impressão, aliás, ainda nem sequer estamos em movimento, para aferir se tudo aquilo que sinto deste personagem, vai entrar em consonância com a realidade, quando estivermos  por sobre as pedras do caminho.

 

Estamos na Terminal da Maxixe, um lugar de bulício como toda esta urbe em alucinante crescimento. Lá fora não faltam os vendedores ambulantes que não páram de bater à nossa janela propondo-nos qualquer coisa para comprar. A canção dos cobradores, vulgo “mangueme” em bitonga, não tem pausa enquanto as pequenas viaturas não estiverem lotadas. É uma linda canção cantada por várias vozes joviais, que estão ali  na luta pela vida: Massingaaaaa! Vilankulooooooo! Inhassoroooooo! Chicuqueeeeee! Morrumbeneeeeee! E a imagem dos veículos perfilados, também é bela. Parece a arrumação dos versos que vão compor uma quadra para Rosa Chicuachula, de Amin Nordin.

 

Já estamos a partir, como uma aeronave que rola lentamente até ao fim da pista, para de lá convocar a força máxima dos motores. Dentro do carro há um silêncio, e se esta manifestação não se chama silêncio, então é um agradável sussurro. Parece o murmúrio do próprio mar que se estende aqui à nossa frente, com a cidade de Inhambane do outro lado. Isto é uma levitação.

 

O condutor apela-me ao aperto do cinto de segurança, e já livre do frenesim, próprio das cidades moçambicanas onde todos vendem e todos querem comprar, eis que liga o aparelho de música, que não vai, mesmo assim, perturbar o silêncio que reina aqui dentro. É Gimo Remane que canta para uma plateia em movimento, levada por um velhote sereno, como tudo o que está a sua volta. A música de Gimo não abalroa, quanto mais não fosse, ela sai de um volume quase imperceptível, como as próprias vozes dos utentes deste pequeno autocarro que desliza suave. Ou seja, há três silêncios audíveis neste interior, o do motor do carro, dos passageiros, e de Samukhela, a música desse makhuwa que nos embala. 

 

Naquele ambiente as palavras serão supérfluas. Para quê as palavras, se elas estão completas nesta música! Para quê as palavras, se o silêncio já nos chega, como o próprio amor, que não se faz com palavras, mas com o silêncio e o doce gemido! O resto foi uma viagem leve, que terminou com a nossa chegada ao lugar mais efervescente da província de Inhambane, ouvindo Sibongile Khumalo, no seu retumbante  Mountain shade. 

quarta-feira, 11 dezembro 2019 12:41

Thsala... flagelada na janela da alma

Pode ser que ela tenha abdicado de viver, caso contrário não estaria a suicidar-se todos os dias com o veneno do seu próprio afastamento. Já não frequenta a sociedade, diferentemente de outros tempos, quando tudo dependia das suas vontades. Não tem coragem de sair de casa, para absorver a atmosfera espiritual proporcionada pelo contacto com as pessoas. Tem medo de rever ao espelho o rosto, por demais degradado pelo fumo e pela bebida de nunca acabar. Os dentes estão queimados pelo rapé que passou a mascar depois de todas derrotas, por isso tornou-se relutante em sorrir para os interlocutores que em algumas – poucas -  ocasiões a abordam no seu casulo, para matar a saudade de uma amiga muito doce. Porém, repugna estar no seu convívio. Está constantemente a cuspir uma saliva espessa que nos vai enojar. Mesmo assim, no meio daquela decomposição toda, Thsala mantém acesa a luz da sinceridade.

 

Há muito que não a via. Sentia tremendamente a falta de uma pessoa com quem podesse conversar sem tabus, e essa pessoa, numa cidade alagada de  preconceitos, é Thsala. Eu queria velejar com palavras espontâneas, esquecendo momentaneamente todas as quedas que tenho tido, e nenhuma outra pessoa podia me acolher para isso, que não fosse Thsala. Thsala é a própria escala diatónica, onde residem todas as notas para se compor uma belíssima canção de amor.

 

Fui para lá, sabendo de antenão que a minha amiga estava naquelas condições. Cheguei a pensar em passar por um botle store e pegar uma garrafa de qualquer coisa para ela, mas a minha consciência não me deixou. Quis levar a guitarra.... também nada! Guitarra para quê, se Thsala é o conservatório em si, onde terei à disposição todos os instrumentos! Então não levo nada, senão as garrafas vazias de oxigénio que trago dentro de mim. E voltarei de lá abastecido, com ar suficiente para voltar a voar e reocupar o espaço que me é reservado na órbita das minhas imaginações.

 

Thsala cuspiu para o lado, todo o tabaco molhado pela saliva, quando me viu entrar no seu espaçoso quintal, depois de pedir licença.  Senti náuseas, mas já não podia retroceder. Percebi o embaraço que lhe apossou. Inclinou-se, desajeitada,  para cobrir o cuspo com as mãos, também flageladas pelo tabaco, como os seus dentes. Ela não consegue olhar para mim porque sabe que naquele rosto já não há candura. Esvaiu-se completamente, para dar lugar às ruinas.

 

Fui buscar uma cadeira, e ao voltar vi a mulher compactando com os pés, o “aterro” que tinha feito com as mãos sobre o lago de saliva espessa e massa de tabaco. Ela continua a não olhar para mim, e sem falar para dizer seja o que for. E tudo isto é um sismo que cabe a mim desvanecer.

 

- Thsala, meu amor, vim te ver!

 

- Vens ver um farrapo?

 

Thsala voltou a cuspir. A boca segrega muita saliva, e ela, envergonhada, não tem como evitar aquilo.

 

- Desculpa, meu bem.

 

Levantou-se e disse que ia à casa de banho. A roupa que usa está lavada. Engomada. Os chinelos ainda estão no rítmo. Mas tudo isso vai-se diluir num corpo desmoronado, e se partirmos do princípio de que o rosto é um pouco a janela da alma, então Thsala entrou em última derrocada.

 

Fiquei um tempo interminável à espera que a minha amiga voltasse. Debalde! Quem veio é a empregada, para me dizer que Thsala não está bem. Pede desculpa.

 

- Ela disse para o senhor voltar outro dia.

quarta-feira, 04 dezembro 2019 10:19

Sumbi

Apaixonei-me por ela, logo no primeiro dia que a vi passar em frente a minha casa. Passam dois anos, e de lá para cá  a nossa relação tem sido intensa. Cada vez que nos encontramos, o amor que nos une,  aumenta. Recrudesce a minha responsabilidade, no sentido de que não posso cometer a mínima imprudência, sob o risco de deitar tudo a perder. O azimute que me guia altera de forma espontânea quando a vejo, na rua ou no mercado, onde quer que seja. Ela já me arrebatou por inteiro, e sinto-me cada vez mais empurrado para a condição de ter que assumir a paternidade de uma criança que nem sei de onde vem. Na verdade esta menina tem idade de ser minha neta.

 

O que mete medo nela, é a sua maturidade precoce. Ela é determinada na luta pela sobrevivência,  que desenvolve todos os dias sob ambrela da verdadeira avó. Sabe que é pobre, absolutamente pobre, tem profundas necessidades. Os lábios secos denunciam um pequeno ser que passa horas e horas sem comer. Os olhos também, chamam-nos a atenção para alguém que tem quase nada para se alimentar. Mas  tudo isso não a demove, não a resigna. Parece acreditar que as coisas mais sólidas começam daqui, de baixo, onde muitas vezes temos que consentir sacrifícios.

 

Nunca me pediu nada, apesar de eu perceber que Sumbi não tem claramente nada. Se não a chamo para entrar no meu quintal, ela passa. Olha para as abundantes mangas dependuradas na copa das duas árvores fartas, que se erguem no meu espaço, e continua o seu caminho. Sem olhar para trás. E se não calha eu estar por ali, olhando para o caminho que usa sempre, quase todos os dias, então a minha neta vai engolir saliva para dentro de um estômago que nunca esteve saciado. Porém, se a vejo, por entre as frestas das plantas que servem de vedação, saio a correr e chamo-a.... Sumbi! Ela sustem a marcha, como uma tigreza que apesar de não ter encontrado a presa, mantem a confiança. Rodopia, e volta.

 

Enquanto a miúda entra, eu já estou a arrancar a fruta, sem medir a quantidade. E é ela  que vai dizer assim, chega, Bitonga Blu!

 

Há uma consonância entre as palavras da Sumbi, e aquilo que lhe vai no coração, e na mente. Se assim não fosse, eu já teria entendido. Aliás, ontem mesmo, no mercado da Mafurreira, nos arredores da cidade de Inhambane onde moramos, voltou a revelar-me a sua personalidade. O seu forte carácter. Ou seja, de entre muitas vendedeiras de marisco, a minha netinha estava lá, vendendo também, lutando ombro com ombro com as demais, na disputa pelos potenciais clientes, mas sem perder a postura. Ainda não a tinha visto, até que no meio daquela azáfama, ouvi uma voz que conheço muito bem, chamando-me como um leve trovão no seio das montanhas de pedra: Bitonga Blu! Olhei para ela, e senti toda a minha alma fluindo.

 

Ali, todas aquelas “magweva” (revendedoras) conhecem-me. Conquistam-me para a freguesia, freguês para aqui, freguês para ali. Mas nesta circunstância, quem ganhou foi Sumbi, a minha neta. Cheguei perto dela e perguntei, quanto custa todo este camarão? E ela respondeu-me, 150.

 

A nossa amizade vale mais que todo o dinheiro do planeta, para além de que eu queria que a miúda vendesse tudo, de uma vez, e voltasse para casa como um passarinho vitorioso, entregue ao vento, em liberdade. E foi o que fiz, comprei tudo, que nem é tanto assim, para agraciar os meus sentimentos, e da Sumbi. É um camarão miúdo, apanhado na pequena rede que ela arrasta nas noites, na companhia da avó, sem poder dormir como outras crianças.

 

Dei-lhe uma nota de duzentos meticais, e fiquei sem saber se recebia o troco, ou deixava com ela. De resto, esta é uma criatura delicada, e eu tenho medo de magoá-la.

terça-feira, 26 novembro 2019 13:21

Chico da Conceição no crepúsculo do entardecer *

A voz do Chico é outra melodia. Dentro da música. Embala. Levita no espaço em que temos de um lado o amor, e do outro lado a tristeza. Ombro com ombro. Ressurge das vísceras como o cantar dos últimos pássaros na retirada aos ninhos, no fim da tarde, voando em voo rasante entre as últimas gotas da luz do sol e a descida inevitável da noite que nos vai acolher a todos. É como se a alma toda deste bitonga residisse ali. Na voz. É nela onde também se abrem os poros da poesia que nos leva por exemplo à Praia do Tofo, ou seja,

 

se você quiser passar férias arregaladas

 

 vai à Praia do Tofo

 

Tofo é nome de mulher

 

Não tem igual

 

Nestes versos está o abanar da mão do Chico da Conceição, o pestanejar vão dos olhos escondidos por detrás dos falsos óculos escuros. Ele acena. Chama-nos numa música que será, mais do que o escorrer de um simples poema, uma elegia que orbita sobretudo na voz resignada. É a laringe trémula que vai à frente, reinventando as ondas do Índico que agora marulham por dentro de nós que escutamos a música que deixou de ser dos manhambanas. Extravazou na respiração do próprio mar. E agora é exaltada na convivência cosmopolita da arte.

 

Há dois crepúsculos, obviamente! O do amanhecer, e do entardecer. Os dois são belos. A musicalidade que emanam no seu silêncio, tem a mesma intensidade. Vibra da mesma forma na escala diatónica deste lado da plateia, e na escala diatónica do outro lado da mesma plateia. Onde poisamos amiúde para deixar livres as vibrações do sentimento. Mas Chico é o crepúsculo do entardecer. É por isso que nos comove. Embevece-nos. Olhamos para ele e percebemos rapidamente  que a glaucoma colocou-lhe a última venda. Mas não lhe decapitou o ramal da poesia, nem lhe impediu a paródia,

 

Vanhamayi gaya khu gupwa gu tsamba vadi davatela (As mulheres da minha terra dançaram com a barriga ao sentirem o sabor da  música)

 

A paródia está aqui. Chico mudou os passos de dança, vacilou no corpo desde a noite de 25 de Junho de 1975, em pleno içar da bandeira da liberdade, quando de repente disse assim, para as pessoas que o acompanhavam: epá, apagaram as luzes! Este foi o dia em que desceu para sempre o capuz da glaucoma, e fechou uma etapa da sua vida. Ou começava outra etapa, ou ainda, se calhar, era a continuação do mesmo percurso. Da mesma vida que agora terá que ser tacteada, ou entregue a um cicerone, que nem sempre está disponível para aturar o “chato” de um “cegueta”. Contudo, Chico da Conceição tinha outro cicerone. Ou melhor, dois cicerones fieis. Leais: a voz e o saxofone. Foi nessas tenases asas que se pendurou e perdurou. Planando com alegria. Com a leveza dos astros.  Até que o coração, cansado das longas jardas incessantes, sufocou e parou de bater.

 

Mas ficou o cheiro do homem. Galvanizado pelo saxofone ora suave, ora vertiginoso. Foi essa alfaia que Chico usou como muralha para se defender contra todas as investidas do tempo. Das feridas da cegueira. Ou por outra, ele transformou o instrumento em hidroeléctrica, com várias albufeiras para disfarçar o padecimento e oferecer luz aos convívios.Também para enxotar a solidão. A sua própria solidão.

 

Chico da Conceição sabia perfeitamente que tinha nascido para reverberar, e proporcionar aurora às pessoas. Foi isso que ele fez. Cumpriu com os preceitos sem olhar para trás. Rindo-se das trevas que lhe traziam em catadupa, lembranças da sua terra,

 

Nyagu dundruga Nhambane, monho wangu gu bisa (Quando me lembro da cidade de Inhambane,  meu coração dói)

 

O autor de “Queremos paz” recorda-se de tudo isso. Das vanunwana (donzelas muçulumanas do bairro  Chalambe). Da tranquila baía. Da dádiva que Deus inoculou na Sua misericórdia sobre Inhambane, e que ele, o Chico, já não poderia ver,

Nhagu dundruga vanunwana (quando me lembro das donzelas muçulumanas)

 

momho wangu kha wu gumani gurula (meu coração nãoencontra paz)

 

REGRESSAR NA HORIZONTAL PARA UMA CIDADE ESCURA

 

Em Wussiwana, um dos seus  temas mais sentimentais, ele não resiste e entrega-se profundamente ao sofrimento. Por inteiro. Diz-nos, por exemplo, que “assim como estou (cego), já não vou reconhecer os caminhos que me acolheram na  juventude. Mas um dia hei-de voltar para passear com os meus amigos por aí”.

 

Porém a vida real ultrapassou os sonhos do Chico da Conceição. Desmentiu-lhe. Ou seja, o homem nunca mais voltou, desde que daqui saíu, em 1959, para Lumbo, como funcionário dos Correios  de Moçambique.

 

Aliás regressa agora (Outubro de 2019), sessenta anos depois, embutido num caixão. De vez para sua terra, uma cidade  tranquila, entretanto escurecida na glaucoma do autor de Marumana Gaya. E foi neste entardecer que umas senhoras, no mercado da Mafureira, aqui mesmo, perguntavam-me assim, afinal quem é que morreu?  E eu respondi-lhes, é Chico da Conceição.

 

- Chico da Conceição!?

 

- Sim

 

- Qual Chico da Conceição?

 

- Aquele que canta Marrumana Gaya.

 

- Iiiiiiiiiiiiiii! Vocêgiiiiiii! Morreu aquele senhor?

 

Em Inhambane são poucos os que podem se gabar de o terem conhecido. Zarpou em 1959. Eu também não tenho memória dele por estas bandas onde nasceu, a não ser do dia em que fui entrevista-lo, na sua casa, na Av. Ahmed Sekou Touré, em 1999, em Maputo. Ele também não vai-se lembrar de muitos. Morreu com medo de que não fosse reconhecido. Se um dia voltasse. Por isso dizia,

 

Nhi veleguidwe Nhambane (Sou natural de Inhambane)

 

Nhi veleguidwe Nhambane sewi (Sou natural de Inhambane Sewi)

 

Nhi tonga biho, kha nhi langui (sou bitonga, não me escondo)

 

O tigre não precisa proclamar sua tigritude. E Chico parecia ter medo depois dessas longas décadas de ausência. Então era preciso que nos lembrasse: Nhi veleguidwe Nhambane (Sou natural de Inhambane), Nhi tonga, biho kha nhi langui (sou bitonga, não me escondo).

 

Seja como for não nos resta mais nada, senão a rendição  perante a partida deste pássaro sagrado. Que vai cantar as últimas canções ao fim da tarde, de recolha definitiva ao ninho.

 

Adeus Chico!

 

  • Texto de homenagem ao Chico da Conceição, falecido em Outubro, vítima de doença
terça-feira, 19 novembro 2019 12:08

Dandara

Quando conheci esta miúda, ainda estava na barriga da mãe, passam vinte anos. Estou sentado numa das mesas da Associação dos Escritores Moçambicanos, com os meus amigos, onde a palavra é o expoente máximo de tudo, e a terapia de grupo é o pilar fundamental para que a utopia subsista. É uma noite adulta, e aqui todos vão falar, rebuscando sem cessar, a enxurrada das páginas corroidas,  consumidas na dor das pestanas. Na verdade, toda esta tertúlia, é um empreendimento rumo ao fortalecimento das narrativas escritas na parede da memória.

 

Chovem as metáforas, e de repente vejo uma mulher com barriga avantajada, entrando calmamente, olhando de soslaio para o ambiente capitaneado por um punhado de homens da pena, em redor de um tampo,  falando em liberdade, sem se importarem com o nível dos decibeis. Está sozinha, e eu pergunto-me, depois de olhar para o relógio, o que é que esta mulher grávida, ainda por cima sem companhia, quer aqui à esta hora! Porém, antes de obter a resposta, esbatida nas lucubrações, fiquei assustado quando vi o garçon servindo-lhe dois cálices de John Walker de rótulo preto, num copo sem gelo.

 

Está sentada, recatada num dos cantos do espaço que nos acolhe, numa noite que daqui a pouco vai dar lugar à madrugada. Parece uma fêmea determinada. Pronta para todas as intempéries no meio dos machos, incluindo a predisposição de se defender das calúnias. Pega no copo, sem gelo, e despeja goela abaixo, de uma vez, todo o conteúdo, e logo a seguir  faz sinal com o dedo indicador para que o servente repita a dose. É incrível!

 

Levanto-me e vou a casa de banho, passando por entre algumas mesas cujos ocupantes não falam, ou seja, eles limitam-se a escutar a conversa animada que vem do grupo onde as palavras saem em catadupa, anunciando a qualidade dos seus oradores. Aquilo é uma tecelagem, que se pode confundir com a esquizofrenia em si, com a diferença de que os esquizofrénicos não são as pessoas, mas os personagens que essas pessoas encarnam.

 

Estou na casa de banho, e enquanto me disponho diante do mictório, libertando com prazer o ácido úrico por demais contaminado pelo álcool, penso na mulher grávida que está ali, bebendo John Walker com rótulo preto, em dozes galopantes. Mas isto não é subreal porque eu estou lúcido. Aliás, se estiver alucinado, então essa alucinação começou com a entrada em cena desta barriguda.

 

No meu retorno, reparo que ela já não depende do “garçon”. Tem a garrafa inteira de John Walker por sobre a mesa, servindo-se pessoalmente, e um dado novo é que está a fumar. Bolas! Cheguei perto dela, levado pelo vaipe do vinho que venho bebendo desde as primeiras horas da noite. E em pouco tempo já conversavamos como se fossemos velhos conhecidos.

 

- Dessa barriga vai sair uma menina

 

Ela sorriu. Pegou no copo e entornou o whisky na boca de lindos lábios, e disse assim, quem me dera!

 

- Vai se chamar Dandara

 

Revolveu a carteira e de lá tirou uma pequena agenda e disse assim, escreve aqui esse nome tão lindo.

 

O tempo deixou de contar. O que conta é que estamos aqui, por conta das emoções.

 

- O que é que significa dandara?

 

- Dandara é harpa, em xitswa, língua do meu pai.

 

- Que lindo!

 

No último sábado, vinte anos depois, recebo no meu celula uma chamada proveniente da Bélgica, e do outro lado oiço uma voz com sotaque francês a dizer assim, daqui fala Dandara, lembra-se de mim?

 

- Desculpa, a minha memória está a vacilar.

 

- Tem razão, quando o senhor me conheceu, eu ainda estava na barriga da minha mãe, na Associação dos Escritores Moçambicanos.

Pág. 19 de 24