Não tem sido fácil localizar o povo. Já lá vão os tempos em que o povo era todo o moçambicano do Rovuma ao Maputo. Bastava estalar os dedos e lá estava o povo no local e hora da chamada para mais uma jornada de construção do Homem Novo. Sobre a dificuldade em localiza-lo que o diga o Doutor Fofa, um militante-mor e consultor-turbo da sociedade civil, que numa das suas expedições pelo país procurou o povo para nutri-lo de conteúdos da nação e recolher da base as sensibilidades mais fortes para serem esmiuçadas no topo.
A tal expedição - relacionada com o fortalecimento da cidadania – iniciara com um seminário central por si ministrado e dirigido às organizações da sociedade civil sedeadas na capital do país e de âmbito nacional. No final e face a importância dos conteúdos os participantes recomendaram que os mesmos fossem levados para as províncias, locais “onde está o povo”.
Uns tempos depois foram programados e realizados os seminários provinciais. Nestes ficou assente e sugerido pelos participantes que o assunto também fosse levado aos distritos, pois é “onde está o povo”. Não tardou os seminários distritais foram programados e realizados. As organizações e plataformas distritais presentes concluíram e aconselharam que se devia descer para os Postos Administrativos, pois é “onde está o povo”. Nos Postos Administrativos a observação foi de que se levasse o assunto às localidades, pois é aqui “onde está o povo”.
Já exausto e sempre solícito para mais uma expedição - e desta vez às localidades e ao encontro do que seria finalmente o povo - o Doutor Fofa equaciona e opta por uma breve paragem de relaxamento numa das paradisíacas praias deste país.
Depois do descanso o Doutor Fofa decide que se retiraria da unidade hoteleira depois do almoço e logo que acabasse um dos serviços noticiosos de uma das estações de televisão. Para o seu espanto e numa reportagem da TV um participante de um seminário - que por coincidência decorria numa localidade deste país - sugeria aos organizadores que se criassem condições logísticas para levar o assunto em pauta para “lá na base”, nos sítios mais recônditos que é “onde está o povo”.
O Doutor Fofa não aguentou e caiu em resposta clara a um fulminante Ataque Vascular Cerebral (AVC). Felizmente sobreviveu e teve que regressar a capital e aqui – enquanto se recuperava e para matar o bichinho dos seminários – resolve frequentar seminários locais. Um dia desses decide participar numa auscultação pública sobre o processo de encerramento da Lixeira do Hulene que decorreu no bairro do mesmo nome e localizado no Distrito Municipal Ka Mavota. Para a sua estupefacção, nessa auscultação pública, um jovem - visivelmente agastado - disse aos presentes o que abaixo cito:
“Parte dos problemas que o lixo está a causar em Hulene é um problema que não é do bairro (Hulene). É um problema que vem da base (se referindo e apontando em direcção ao Distrito Municipal Ka Mpfumo, o centro da capital), pois o povo de lá não se comporta com urbanidade, vulgo civismo, porquanto misturam e deitam todo o tipo de lixo na via pública e nessa condição (misturado) o mesmo é transportado para cá”.
Enquanto o jovem continuava a expor os seus argumentos o Doutor Fofa foi transportado para uma unidade hospitalar próxima. Desta vez fulminado por um outro tipo e recomendado AVC: Ataque de Vergonha na Cara.
A cidade de Maputo - por sinal a capital do país - completou, no passado dia 10 de Novembro, 132 anos de elevação à categoria de cidade. Não acompanhei os festejos, mas acredito que tenham sido à altura da idade. Embora não tenha estado por cá no dia da festa a data não me passou despercebida. Em algum momento do dia 10 reflecti sobre a cidade que um dia foi a das acácias. Em conversa com um amigo, este desafiou-me a responder aos problemas da cidade na qualidade de Edil. E eu – sem pestanejar – respondi: “devolver a cidade aos seus munícipes” seria a primeira medida. E a eleição do chefe de quarteirão a primeira acção da medida.
Paradoxalmente nos tempos do partido único o chefe de quarteirão era eleito e nos tempos da democracia multipartidária – dos dias que correm – o mesmo é apontado para o cargo (suponho pelo Município) sob critérios que não se conhecem. Existem casos em que dois ou mais quarteirões são chefiados pelo mesmo chefe. Urge que se recupere as boas práticas. A democracia nas autarquias não se esgota na eleição do Edil e ainda mais através da lista (que o mesmo encabeça) do partido ou grupo cívico que o suporta.
Tenho fé de que uma "cidade bela, limpa, segura, empreendedora e próspera" (a visão municipal da cidade) só será possível alcançar quando os próprios munícipes se apropriarem da cidade. Não se vai combater os males e lutar pelo desenvolvimento da cidade sem a participação activa dos seus munícipes. E para tal “devolver a cidade aos seus munícipes” devia merecer a devida atenção dos munícipes e dos seus governantes. Por tabela os baixos índices de participação eleitoral e de interesse pela governação autárquica podiam ser invertidos com a devolução da cidade aos seus munícipes.
Estendo a minha fé ao alcance do que - em tempos - um colega disse a propósito da escolha do chefe da comissão organizadora e dos desafios de gestão de uma festa da universidade: “Não se pode entregar a organização da festa de recepção de caloiros a alguém que nunca deu festa do seu próprio aniversário natalício”. O mesmo penso - acreditando que a eleição do chefe de quarteirão seja uma realidade a breve trecho – que para a gestão de um Município conste nos requisitos ou nos próprios CVs dos candidatos a Presidente de Município a gestão de um quarteirão.
Na senda das recentes eleições dei por mim a pensar no que um amigo sindicalista disse-me uma vez – e passam anos - sobre a maldade da democracia. A tal malvadez era a própria democracia traduzida na alternância governativa, sobretudo, a decorrente da limitação de mandatos.
“O meu antigo chefe é uma vítima da democracia”. Com estas palavras e enquanto indicava para mim o seu antigo chefe, o meu amigo sindicalista dava por concluída a narração do historial da exemplar governação do seu ex-superior que se viu na contingência estatutária de abandonar o cargo depois de cumprir o limite de dois mandatos.
“Um bom chefe e o melhor que a instituição conheceu, mas, infelizmente, a democracia impediu a sua continuidade”. Foram as outras palavras do meu amigo sindicalista e ditas com profunda e dolorosa amargura. Para ele a democracia devia ser como no futebol: em equipa que ganha não se mexe (e nem se põe à prova).
Este episódio veio-me à memória à corrente das reflexões corriqueiras atinentes às últimas eleições, notadamente os seus contornos a ponto dos mesmos terem ditado - eventualmente - a goleada infringida pela Frelimo aos seus opositores. Em resultado desse desfecho, tenho ouvido - amiúde e com algum desassossego - que o país devia abandonar a democracia pluralista e voltar à democracia de partido único e terceiro-mundista das pós-independências.
Sendo assim – face aos resultados retumbantes e aos subsequentes prognósticos do “back to the past” - quem seria(m) a(s) vítima(s) da democracia? A oposição que não se impôs? Os eleitores (que votaram na oposição e/ou que não tenham ido às urnas)?O Ocidente (os patronos da democracia)? Ou os vencedores das eleições (os candidatos e os respectivos votantes)?
Procurei pelo meu amigo sindicalista (hoje um devoto democrata) que para o caso em apreço disse bem alto e em bom-tom: “Os vencedores é que são as vítimas da democracia”. Em defesa da sua posição argumentou que uma equipa que sempre ganha cansa. E por perto - não alheio à conversa - um outro amigo e das hostes dos vencedores, questiona: “Cansa ou dança?” E o primeiro – com uma dose de sarcasmo - retruca: “Um dia desses, dança!”
E cá entre nós - a fechar - e bem na pele das metamorfoses democráticas do amigo sindicalista: o ser ou não ser uma “vítima da democracia” é uma questão que retumba a um dilema shakespeariano. Ademais e à luz das adaptações “workshopistas” do Doutor Fofa (um militante e consultor-turbo dos meandros da sociedade civil): dançar ou indagar, eis a questão.
Num texto anterior falei da reconfiguração do vocabulário popular por conta de narrativas de acontecimentos políticos, internacionais e nacionais. Hoje e no contexto das recentes eleições volto a partilhar uma parte (e adaptada) do referido texto e com alguns acréscimos cujo título também foi sujeito a ajustes para o do presente texto.
Na segunda guerra do golfo/Iraque (2003) foi despoletado um debate cujo foco era saber se os americanos atacariam Bagdade, a capital iraquiana, por ar ou por terra. E creio que um general americano – se a memória não me atraiçoa - tratou de encerrar o pretenso debate valendo-se da frase: “O objectivo é Bagdade!”. E de que era indiferente se a invasão fosse terrestre ou aérea. Depois, com a tomada de Bagdade e do resto do Iraque, era frequente que se registassem - num e outro local - ataques dos iraquianos que o mesmo general apelidou de “Bolsas de Resistência”.
Certo dia e no decurso de preparativos de um evento de “copos & papo” de um grupo de amigos subsistia a dúvida em relação a compra de um barril de cerveja 2M ou de Laurentina Clara, atendendo a austeridade imposta pela falta de verba. O impasse foi sanado quando um dos amigos – que adequando os novos termos da guerra do golfo ao vocabulário - sentenciou à americana: “Não interessa se o barril é de Laurentina Clara ou de 2M: o objectivo é Bagdade!”.
O dia “D” para os “copos & papo” amanheceu com chuviscos. Um elemento de avanço - já no local de batalha e preocupado com a chuva - ligou para um outro a manifestar alguma apreensão quanto a comparência do resto da legião. E ele só ficou descansado quando do outro lado da linha ouviu que a chuva era apenas uma “Bolsa de Resistência” e insignificante para impedir o assalto à “Bagdade”. Nesse dia “Bagdade” foi tomada de forma retumbante e inequívoca.
Um outro episódio e à reboque de acontecimentos políticos resulta da sequência e contexto da assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP), nomeadamente, no que se refere ao acantonamento das forças militares das partes signatárias - Governo e RENAMO - em quartéis/bases até que fossem desmobilizadas ou reorientadas.
O mesmo conceito – acantonamento – foi acomodado no vocabulário de uma determinada residência universitária onde os quartos eram partilhados por dois a três estudantes. Nos finais de semana era comum um visitante chegar à dita residência e encontrar um ou dois quartos apinhados com a maioria dos estudantes. Segundo eles, estavam acantonados por força de outras assinaturas – as da paz biológica – que decorriam em paralelo e de forma sonorosa nos restantes quartos.
Recordei-me destes dois episódios a propósito das recentes eleições (15 de Outubro de 2019) e por duas situações. A primeira prende-se com as recomendações “votou, ficou” (no local) e “votou, partiu” (para casa) que se assemelham ao acantonamento forçado que acontecia na residência universitária em dias de flexões locais. E a segunda situação tem a ver com o enchimento das urnas. Isto e considerando os relatos de que as urnas foram enchidas, é suposto que a palavra de ordem tenha sido - nada mais e nada menos - a célebre frase: “O objectivo é Bagdad!”.
Por fim e por alguma razão - na residência universitária e nos dias aludidos - a opção de ficar no local do voto não era necessariamente proibida. Contudo, há quem preferisse ai acantonar e observar todo o processo in loco, tal “bolsa de resistência” (ou de assistência na esperança do avesso “ficou, votou”), mas - no final do dia - insignificante para travar a grande e ofegante marcha pela tomada completa de “Bagdade”.
PS. Este final de semana (25, 26 e 27 de Outubro) e face a agressividade propagandística do “Eixo Jardim-Bobole” (CDM-Heineken) paira mais um impasse em relação a escolha do que sorver para deleitar a abertura da estação de verão. Mas seja como for: “O objectivo é Bagdade!” e tenha um final de semana feliz!
O resultado que à conta-gotas é publicado pelo braço operacional (STAE) da Príncipe Godido, a rua da sede da Comissão Nacional de Eleições (CNE) – por sinal o nome do príncipe herdeiro do Império de Gaza (outra vez Gaza) - e referentes às eleições de 15 de Outubro lembra-me um outro resultado e de matéria similar na arte da conquista.
E bem a propósito quem não se recorda de situações corriqueiras das noites de Maputo (e não só) em que uma prendada garota é cobiçada até a exaustão por todos que se fazem à discoteca. Por toda a noite e por ela passam todos – na sua maioria jovens e adultos - exibindo atributos que se resumem aos de ordem física, financeira (com algum esforço) e papista. Entre os concorrentes algumas apostas são feitas cujo vencedor será o afortunado que lograr sair com a prendada garota.
Uma certa noite - enquanto os jovens concorrentes afinavam as estratégias e ajustavam as apostas - um cota aproveita a brecha e se aproxima da prendada garota do dia. Ele sussurra algo no ouvido dela, arrancando-a um sorriso de matar. Em segundos os dois estavam na pista de dança. Aqui o cota capricha e incha a inveja dos mais novos. E estes – sem ideias para o contra-ataque – reconhecem que o adversário é de peso, mas concluem que não os punha em causa. “O cota não é uma ameaça, “O cota não passa de uma bolsa de resistência” e que “ O cota é um cansado”. Eram os prognósticos dos mais novos. E os novos mais velhos – feitos em grandes analistas – ficavam pelo refrão de que a dama aceitou o passo de dança apenas para se exibir e os provocar. “Uns fanfarrões”, diria o cota.
E o cota - acostumado aos comentários desabonatórios e sobre os quais nem liga - depois de exibir os seus dotes de dançarino e em grande estilo, acompanha a prendada garota ao seu lugar de proveniência: uma mesa que se transformara em cardápio dos olhares e apetites dos que se achavam elegíveis para o assalto às fartas riquezas da prendada garota.
Uma hora depois o cota abandona a discoteca. Logo em seguida foi a vez da prendada garota fazer o mesmo, deixando curiosos os ditos elegíveis. E estes se apresam à porta e desta observam a presa a entrar no velho Toyota do cota e não restavam dúvidas quanto ao vencedor da noite. No dia seguinte a confirmação do VAR (Vídeo Árbitro) - no exacto momento em que alguns dos ditos elegíveis viram o cota e a prendada garota de mãos dadas e aos beijos na praia - de que o golo aconteceu e foi legalizado.
Em conversa – baixa e alta - os ditos elegíveis e correligionários questionam o que terá aquele cota de excepcional? Todos tinham respostas. Uns e outros alegavam que era o taco acumulado. Outros e uns juravam que eram os anos de experiência do cota na arte da conquista e por isso sabia do que elas realmente gostam. E de outros tantos que citavam truques mágicos, pois o cota só conseguia conquistar à noite e que de dia não via “game”. Enfim, um leque de justificações para contrariarem o sucesso ruidoso do cota na praça.
No final da conversa – e por sinal inconclusiva no seu todo - todos os elegíveis e correligionários foram unânimes num único ponto: o cota é lixado! E o “lixado” foi a alternativa a uma outra palavra que por questões de pudor não será aqui chamada. E cá entre nós – mesmo a fechar – e adicionando o outro sucesso ruidoso da praça nada melhor que se recorrer ao latim dos juristas: Quid Juris?
Conheci Anastácio Matavel num seminário na província de Gaza em Outubro de 2001. Na sala de conferências do munícipio de Xai-Xai ele estava sentado numa das cadeiras da frente. A partida pensei que estivesse diante de um descendente de Ngungunhana (ou mesmo do próprio), o último imperador de Gaza, tal o porte e o jeito de sentar. Também chamou-me atenção - durante as apresentações dos temas e no debate - a sua notável concentração e a exposição das suas dúvidas, questionamentos e comentários. Uma característica, incluindo sentar a frente, que lhe era congénita conforme e desde então fui certificando.
O seminario foi no âmbito de um programa de divulgação de assuntos sobre a dívida externa de Moçambique e do Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA). Eu fazia parte de uma equipe de activistas do Grupo Moçambicano da Dívida (GMD) que se deslocou à Gaza para orientar um seminário e dai a instalação de um Núcleo Provincial do GMD. Deste núcleo seriam eleitos 03 representantes a fim de participarem - no mês seguinte - num seminário nacional na cidade da Beira, província de Sofala. No ano anterior (2000) o mesmo tipo de seminário tinha decorrido nas outras províncias e que por conta das cheias do mesmo ano não foi possível em Gaza.
O propósito do programa era a disseminação dos resultados positivos da campanha internacional para o cancelamento da dívida externa (Jubileu 2000) e do principal condicionalismo imposto pelos credores - capitaneados pelo Banco Mundial - aos países beneficiários do alívio reforçado da dívida, os ditos países pobres e altamente endividados e que incluía Moçambique na lista. Estes países deviam possuir uma estratégia de redução da pobreza (o nosso PARPA) de médio prazo (5 anos) e que contasse com a participação da sociedade civil na sua elaboração, implementação, monitoria e avaliação. Um condicionalismo que a sociedade civil recebeu com simpatia, pois constituía uma oportunidade efectiva para participar e influenciar o rumo dos processos e políticas de governação em Moçambique.
Na altura e era estratégico que depois de apresentado o tema era recolhido o feedback e só depois do intervalo é que se debruçava sobre os dados colhidos. Assim e durante o “lobby” do intervalo, dava tempo para esfriar os ânimos dos mais críticos e até dos hostis com uma dose de empatia, fora a do frango do almoço. E nesse dia, no intervalo do almoço, sentei-me com o Anastácio Matavel. Foi o nosso primeiro encontro de tantos que se seguiram.
Em Novembro de 2001 voltaria a ver o meu amigo Matavel no evento da Beira. No encontro nacional em seguimento das sessões provinciais de divulgação. De todas as províncias participaram representantes e o encontro resultou na consolidação da implantação dos Núcleos Provinciais do GMD e da estratégia nacional de participação da sociedade civil nos processos de governação, sendo o PARPA a porta de entrada.
Desse evento retenho um momento que aos olhos de hoje classifico de grande alcance estratégico e que teve influência significativa no trabalho que a sociedade civil moçambicana viria a desenvolver. No primeiro dia, depois da apresentação sobre o PARPA - na verdade sobre o que devia ser um PRSP (Poverty Reduction Estrategy Paper), na linguagem do Banco Mundial - a sessão termina com a pergunta: de onde começar para monitorar o PARPA?
Uma vez que a participação na elaboração do PRSP/PARPA não seria possível pois o documento já havia sido elaborado e submetido ao Banco Mundial no âmbito do alívio da dívida, a leitura foi de que a participação não se esgotava no processo de elaboração. Aliás, um dos requisitos de um PRSP/PARPA era de que fosse um documento rolante e dinâmico o que abria espaço para novos “inputs” no seu processo de implementação.
Na noite desse dia e porque teria que apresentar no dia seguinte a proposta da estratégia do GMD para a participação em todas as fases do PRSP/PARPA compulsei um dos documentos do Governo e nele estava escrito que para a implementação e monitoria do PRSP/PARPA não se produziria nenhum documento adicional e que para o efeito seriam usados os documentos operacionais anuais do Governo: o Orçamento do Estado (e o seu relatório anual de execução) e o Plano Economico e Social (e o respectivo balanço anual). Adicionei este item na apresentação da estratégia do GMD e pouco antes de terminar uma mão já estava no ar: era o suspeito do costume, Anastácio Matavel.
Em poucas palavras e no seu tom de imperador, Matavel disse que doravante tudo passava por nos concentrar nos documentos anuais de governação e de que urgia conhecer profundamente tais documentos. No final da sua intervenção foi ovacionado em cadeia nacional. Foi algo como o primeiro tiro para o início efectivo da participação da sociedade civil na monitoria da governação. Um momento histórico que recorda um outro: o do tiro de Alberto Chipande que deu inicio a luta de libertação nacional.
E foi do tiro de Matavel a gênese de um programa nacional e ambicioso de divulgação e formação rumo a monitoria anual do PARPA 2001-2005 (PARPA I) e tendo como horizonte a participação efectiva da sociedade civil na sua revisão e elaboração do que seria o PARPA II (2006-2009) em 2005. E neste exercício e outros da sociedade civil que se seguiram contou com a mão crítica e a sabedoria de Anastácio Matavel, em particular no comando da província de Gaza, sendo o fundador e o impulsionador-mor da cidadania nesta província.
Na passada segunda-feira, dia 07 de Outubro, volvidos 18 anos do nosso primeiros encontro e por coincidência na hora do almoço e na companhia de um amigo, recebo uma chamada que me informa que o Anastácio Matevel foi baleado por volta das 11 horas na cidade de Xai-Xai e que veio a perder a vida duas horas depois no Hospital Provincial. Eu ainda permanecia em linha e o amigo que estava comigo – depois de “googlar” sobre o baleamento de Anastácio Matavele – mostrou-me o resultado: era de facto Anastácio Matavel. O “Parpa” como carinhosamente nos tratávamos em homenagem ao nosso primeiro encontro.
Da última vez que falei com o amigo Anastácio Matevel foi no mês de Junho passado. Liguei para ele depois de acompanhar uma notícia televisiva sobre assuntos internos de funcionamento do FONGA, o Fórum de ONGs de Gaza que ele liderava. Do outro lado da linha o habitual “Viva Parpa”. E porque ele sabia a razão da minha ligação tratou de dizer que tudo estava a funcionar dentro da normalidade, tendo até citado algumas actividades em curso. Era o Matavel no seu melhor.
Na despedida ele disse e repetiu que os anos de combate cívico tornara-o resiliente a intempéries internas e externas. Infelizmente a sua resiliência não cobria a resistência a uma tempestade de balas. E de balas perdemos o Imperador (da cidadania) de Gaza e um activista de dimensão nacional e além-fronteiras.
Saravá, Imperador Anastácio Matavel!
Ao fim de quase cinco minutos a porta deixa de bater, dando lugar a um duplo silêncio: o meu e o da batida da porta. E do outro lado da porta uma voz anuncia que o “boss” (Samora Machel) mandou avisar que passará depois das eleições, pois o tempo eleitoral não é propício para visitas que não sejam de caça ao voto. Confesso que a notícia foi um alívio e assim preencho o resto da noite com algumas e pequenas lembranças de episódios urbanos de protesto pacífico nos tempos de Samora Machel.
Por muito tempo guardei de pequeno a imagem de um marinheiro branco da tripulação do barco à gasolina que fazia a travessia Maxixe- Inhambane. Da escadaria da porta do barco, o marinheiro contemplava nostálgico as ondas do mar como se estivesse a despedir de algo especial e que também lhe pertencia. Recordo que eu me interrogava: o que será que ele tanto vê nas ondas? Na segunda visita de Samora Machel tive a resposta: eram as ondas da liberdade. As ondas que naufragaram quinhentos anos de domínio colonial. E de certeza que foram as mesmas ondas que depois da independência comprimiram paulatinamente a liberdade conquistada.
Na época, à escassez de alimentos se juntou a de liberdade. E uma das formas de protesto foi o significado que o povo atribuía ao nome das marcas dos automóveis que circulavam com dirigentes na altura. Os famosos LADA e NIVA. Estes automóveis, para quem não se lembra ou que não saiba, proviam dos países ditos aliados naturais e socialistas: as defuntas URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e a RDA (República Democrática Alemã). O LADA ao passar pelas artérias da cidade o povo, em voz baixa, dizia: Leva Atrás Dirigente Analfabeto. E a resposta vinha logo no carro seguinte, o NIVA: Não Importa Vamos Andando.
Uma outra maneira de protesto urbano foi através do desporto, sobretudo o futebol. Tenho dúvida que era só o bom futebol que justificava as enchentes do Estádio da Machava ou de outro recinto desportivo. Penso que boa parte do público ia ao estádio para viver em pleno 90 minutos de liberdade. E o trio de arbitragem – coitados – era sempre usado como o alvo do destino dos protestos.
Outra forma de protesto era não acompanhar o “viva” ou saudar o dirigente. Uma vez, eu e um amigo arriscamos esta opção. Nos comícios orientados por Samora Machel, fora longos e obrigatórios, não se deixava sair até que se anunciasse a retirada do presidente. Uma das vezes, na praça da independência, eu e o tal amigo fomos violentamente impedidos por militares, os célebres “PMs”, numa tentativa inglória de saída. Éramos miúdos e não sabíamos que a liberdade conquistada tinha horário de funcionamento e nem havia excepção de idades.Por conta da dor e de não podermos sair decidimos que da próxima vez que nos avistássemos com o presidente não lhe saudaríamos como gesto de protesto.
O dia não tardou. O presidente acabara de receber um seu homólogo (creio que foi o presidente Pinto da Costa de São Tome e Príncipe) e vinham no Jeep presidencial. O Jeep Já por perto, todo o mundo saudava e menos nós. O presidente Samora Machel nota, deixa de saudar a multidão e segura com firmeza a barra do Jeep. Em seguida direcciona e executa um zoom fulminante do seu temido olhar, culminando com a nossa tímida saudação.
Por esses tempos e na ex-metrópole, Portugal, um amigo conta que em Lisboa, capital portuguesa, ficou estupefacto com o nível de protesto popular. Numa parede e a propósito de uma visita de Ronald Reagan, na altura presidente norte-americano, estava gravado: “Reagan go home and take Soares with you”. Soares era na altura presidente ou chefe do governo português. Por cá e nos anos oitenta quando rebentou a febre de pichar os muros da cidade (outra forma de protesto) não se chegou a esses níveis. Não imagino algo parecido numa visita ao país de Mikhail Gorbatchev, então alto dirigente da URSS.
Outro episódio marcante e que o tal amigo presenciou em Lisboa foi a ousadia de um casal de idosos que lançava impropérios contra uma comitiva governamental em sinal de protesto contra o pessoal que vivia, folgadamente, às custas do erário público. O marido mandava vir e bem alto gritava “seus marqueses de pombal” em alusão a um estadista que marcou a política portuguesa nos tempos da monarquia.
A mulher corrigiu o marido, dizendo que a referência estava desactualizada. Para a senhora devia ser: “seu primeiro-ministro, seu deputado, seu secretário de estado”, entre outros cargos da vida pública portuguesa que vivem sugando o erário público. Imagino que o estimado leitor esteja a pensar o mesmo por estes lados da pérola do índico. Acrescente à lista: “seu cabeça-de-lista”.
Depois da independência uma das primeiras obras de vulto na cidade de Maputo foi o processo de instalação de cabos subterrâneos da empresa Telecomunicações de Moçambique (TDM). Não me recordo o ano, mas provavelmente depois da morte de Samora Machel. A empresa encarregue da obra foi uma oriunda da Itália de nome SIETTE. Esta empresa foi quem iniciou com a política de abrir buracos na estrada e não tampar. Em protesto e de surdina, o povo dizia que SIETTE significava “Somos Italianos Esburacamos Todo o Tipo de Estradas”. Aliás, outros tipos de buracos, estes de ordem financeira, devem ter iniciado por estas alturas.
Já se faz madrugada e oiço o roncar de um carro. É tempo de dormir. Este ronco lembra-me histórias dos mais velhos sobre um outro carro oriundo dos aliados naturais de Moçambique. O ronco inconfundível do não menos famoso UAZ/WHAZ, um carro esverdeado ou da cor de caqui que os mais velhos temiam. Outros tempos.
Tenho medo dos meses de Setembro e de Outubro. Temo que Samora Machel, o saudoso 1º presidente da pérola do índico, venha à minha casa e como sempre a altas horas. Da última vez em que bateu a minha porta foi no dia 19 de Outubro de 2016, data da sua partida em 1986. Abaixo uma transcrição considerável (e com alguns arranjos) de um texto (“a propósito de mais um 19 de Outubro”) que publiquei num dos semanários da praça. Depois volto aos meus temores.
“Dia 19 de Outubro de 2016!De dez em dez anos, Samora Machel bate a minha porta. O som da batida é já do meu domínio, embora desta vez fosse menos sonoro, mas mais incisivo. Abro! Samora esboça um sorriso diferente, enquanto entra e caminha militarmente pela casa. Faço um compasso de espera e fecho lentamente a porta. Feito o reconhecimento, Samora conclui que estou só. Vou ao encontro dele para a saudação e, já próximo, ignora-me. Entre rodopios e assobios, vai andando pela casa dentro. Era a terceira visita de Samora. Bem ao estilo da ofensiva política e organizacional.
Isto está nublado. Penso. O que terá acontecido desde a última visita há dez anos (2006)? Pergunto aos meus botões. Silêncio total. Decido que o melhor é sentar e relaxar ao som das melodias revolucionárias e do sapateado das botas russas, calculo. De rompante, Samora interrompe a orquestra e com o indicador em riste pergunta:
- Então! O Livro?
- Que livro? Respondo, dissimulando que não me lembrava.
Nessa última visita, a segunda, tinha-lhe prometido que escreveria finalmente o livro, retratando a “nossa amizade” com o título “Samora e Eu”, cujo prefácio (na verdade um postufácio) seria escrito por ele, conforme ficou combinado. Passam já dez anos.
A primeira visita (1996) foi depois de eu ter participado numa palestra ou algo semelhante orientada pela viúva (de Samora) Graça Machel, no Sindicato Nacional dos Jornalistas. Nesse dia, já madrugada, Samora encontrou-me a escrever os primeiros rabiscos, inspirado na palestra e num texto (redacção/composição) que escrevi num teste de língua portuguesa, anos antes, em que o mote tinha sido um artigo publicado, salvo erro, no jornal electrónico media-fax. No artigo, o autor referia-se a Samora como um homem amado por uns e odiado por outros.
A conversa foi tanta e prolongou-se até ao amanhecer. Confessei os 11 anos da “nossa amizade”. Na verdade, narrei factos e momentos vivenciados ou acompanhados por mim durante o seu consulado, desde o primeiro dia em que o avistei até ao dia em que me zanguei e cortei unilateralmente a amizade, observando uma trégua no período da sua morte. No livro de condolências, recordo-me de ter registado: Samora. Para os amigos, o amigo. Para os inimigos, o inimigo!
Na despedida, já com o sol a raiar, ocasião em que brindamos o reatamento da “nossa amizade”, Samora pediu que eu acrescentasse aos factos as minhas reflexões e pensamentos de forma imparcial. O desafio estava lançado. Acredito que esse desafio não seja só para mim e tão pouco para os que privaram directamente com Samora quer no seu dia-a-dia, quer no processo de libertação e governação do país.
-O Livro? Insiste Samora. E com um olhar de quem diz “daqui não saio, daqui ninguém me tira”, anota que no lugar de visitas periódicas de década em década, estará de olho todos os dias.” (fim da transcrição)
Por “ de olhos todos os dias” entendi que ele não iria esperar mais dez anos (2026) para voltar a bater a minha porta (a altas horas) e exigir o livro. Feliz ou infelizmente Samora ainda não me visitou desde o “encontro” de 19 de Outubro de 2016. Presumo que esteja ocupado com dossiers dos últimos desenvolvimentos do país. O facto de ele não ter vindo foi óptimo para mim, pois ainda não tenho o Livro ou algo que se pareça. E já passam dois anos.
Hoje é dia 22 de Setembro. Dentro de seis, sete dias será a data do seu 86º aniversário natalício. Temo que ele venha por estes dias. Sinais não faltam. Tenho ouvido passos nocturnos com a cadência típica dos de Samora Machel. Se não for por estes dias de Setembro ainda resta o mês de Outubro que está à porta.
Já é madrugada. Estou diante do computador. Na secretaria o manuscrito - já com cor de ganga de caqui - em que repousam as primeiras notas, escritas na altura da primeira visita. Um trecho do manuscrito diz: “o que sinto por ele (Samora Machel) é uma miscelânea de amizade e animosidade. Em conversa com amigos uma vezes defendo-o e outras ataca-o veementemente”.
Seja como for tenho que apresentar alguma coisa caso ele apareça. Enquanto cogito, cochilo em busca de inspiração. Em seguida um silêncio. Um frio na barriga. De repente oiço a porta a bater de forma insistente. Será Samora Machel?