Há poucos dias, compulsando caixotes de arquivo, achei o original do livro “O Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora que prometera oferecer a Marcelino dos Santos, histórico nacionalista, poeta e político moçambicano. A decisão de oferta foi em resposta a curiosidade dele em conhecer a minha biblioteca, manifestada durante uma de duas longas reuniões em que eu participara com ele e outros convidados no mês de Janeiro de 2007. Recordei-me da promessa no texto “Por onde andas, Kalungano?” escrito e publicado, em Maio de 2019, por ocasião da celebração do seu 90º aniversário natalício.
Na publicação do texto, um dos comentários dizia: “Há que saldar igualmente a promessa oculta” (oculta no sentido de que Marcelino não sabia de tal promessa). Confesso que me arrependo por não tê-lo feito e hoje, 11 de Fevereiro de 2020, com a sua morte, a dívida - fazer chegar “O Processo Histórico” a Marcelino dos Santos, também Kalungano, Lilinho Micaia ou ainda “Dôs Santos”- ainda continua por saldar. Segundo Óscar Monteiro, outro nacionalista moçambicano, o “Dôs Santos” era o toque francês pelo o qual o mundo chamava a Marcelino dos Santos nos corredores das conferências internacionais.
Enquanto penso numa alternativa à física para a entrega do livro e fora os episódios dos “meus encontros” com Marcelino dos Santos, narrados no texto a que me referi acima, vêem-me à memória outros momentos e circunstâncias, não tão importantes, mas interessantes, que têm em Marcelino dos Santos o foco central.
Nos preparativos das duas e longas reuniões citadas anteriormente, o interlocutor destacado por Marcelino dos Santos contou-me um episódio de ambos quando da participação de Marcelino dos Santos - como convidado e orador - numa conferência internacional em Paris, França, algures em meados da década de 2000. Creio que foi por ocasião da celebração cinquentenária de um encontro internacional da nata intelectual de nacionalistas e poetas africanos, e não só, que se realizara igualmente em Paris no qual Marcelino esteve presente. Aliás, nessa celebração ele seria um dos ainda vivos participantes desse memorável encontro. Na preparação do discurso, o interlocutor conta que Marcelino dos Santos estava relutante em usar uma certa frase por si recomendada, mas no final aceitou-a. Na apresentação, essa frase foi muito apreciada o que levou Marcelino dos Santos a comunicar ao interlocutor que ele, o interlocutor, passaria a citá-lo quando a empregasse.
Numa recente viagem a Angola, visitei, em Luanda, o Majestoso Mausoléu Agostinho Neto, nacionalista e 1º presidente de Angola. Na sequência de fotografias emblemáticas que passam numa tela gigante vi o inconfundível “Dôs Santos” nos tempos passados e de esforços nacionalistas para as independências africanas. Emocionado, enchi-me de orgulho e ao virar para os lados por pouco dizia aos outros visitantes: aquele é meu “amigo, meu camarada, meu líder!”.
Muitos países africanos exaltam os seu líderes históricos. O Senegal, Gana e a África do Sul aclamam Senghor, Nkrumah e Mandela, respectivamente, e Moçambique aclama Marcelino dos Santos, correligionário das mesmas andanças nacionalistas. Nelson Mandela, o líder histórico sul-africano, um pouco depois de ser liberto (por coincidência no dia 11 de Fevereiro de 1991) perguntara por Marcelino dos Santos num dos primeiros encontros que tivera com delegações moçambicanas. Aliás existem fotografias que testemunham um encontro de Mandela com “Dôs Santos” antes de Mandela ser encarcerado por 27 anos e até da Frelimo ser criada em 1962.
Fora as recordações habituais de ocasião , Marcelino dos Santos também deixa outras facetas para serem lembradas. Uma delas, a de temido dirigente, foi eternizada na sua passagem pela Beira, na qualidade de Dirigente-residente/Governador da Província de Sofala. Há poucos dias, essa faceta foi recordada a reboque de um suposto recrutamento militar à moda da temida “operação tira-camisa”, atribuída a ele nessa passagem pela Beira nos anos de 1983 à 1986 .
Uma outra faceta que retenho era a sua veia desportiva e solidária. Ir a um recinto desportivo , fosse qual fosse a modalidade, e cruzar-me com Marcelino dos Santos era tão normal que passou a ser uma regra. Uma das vezes, nos anos 80, num domingo de futebol, não me cruzei com ele, mas senti inveja de adolescente por causa da sorte de um amigo que pedira e apanhara boleia de Marcelino dos Santos no seu carro protocolar, do centro da cidade até ao Estádio da Marchava.
Ainda no campo das múltiplas e conhecidas facetas de Kalungano , uma a registar é a de boémio. No livro “O meu coração está nas mãos de um negro: uma história da vida de Janet Mondlane”, escrito por Nadja Manguezi , uma das passagens se refere a essa particularidade. A propósito testemunho que as noites de Maputo não eram indiferentes para ele. No início dos anos 90, numa dessas noites e na febre das festas nas flats, cruzei-me com Lilinho Micaia. No decurso da festa e a pretexto de apanhar ar, eu procurava, no espaço comum do prédio, um lugar recatado para trocar algumas palavrinhas. Feito o diagnóstico e enquanto me aproximava, oiço uma voz poética e familiar pronunciando: “Olha para o outro discreto”. Foi bem baixinho, mas o suficiente para que eu ouvisse e partisse para uma outra freguesia.
Com a sua morte - a partida de Kalungano, Lilinho Micaia, “Dôs Santos” - acredito que o vazio que deixa será preenchido por inúmeros testemunhos que imortalizarão Marcelino dos Santos. Um Homem cuja dimensão e trajectória a História deve o seu registo do mesmo jeito que me cabe ainda cumprir a promessa oculta: oferecer a Marcelino dos Santos o original do livro “O Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora.
O dia 11 de Fevereiro de 2020, será apenas o de partida terrena de Marcelino dos Santos. Em jeito de despedida, chamar à colação uma das suas célebres frases: “Enquanto houver revolução por refazer, não há tempo para morrer!”. E a propósito da frase e da pergunta “Por onde andas, Kalungano?” o país inteiro responde: “Estou aqui!”
Saravá, “Dôs Santos”!
Espero que o leitor não chore no final do texto. E já adianto que o assunto não são os impostos e muito menos os últimos acontecimentos políticos do país. Aí vai: guardo lembranças da luta cívica do Reverendo Desmond Tutu , o primeiro Arcebispo negro da Igreja Anglicana da cidade sul-africana de Cabo. Ainda guardo de outras do tempo em que ele - também Prémio Nobel da Paz em 1984 - chefiara no período pós-apartheid a Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul. Nesta comissão o relatado pelos agentes ao serviço do Estado sul-africano e respectivas vítimas na época do apartheid, levara com que Desmond Tutu chorasse. Abaixo volto ao assunto depois de contar dois episódios intramuros.
O primeiro: um dia e na temporada da revolução dei de caras com uns polícias no cruzamento da Vladimir Lenine com a Rua da Rádio. Foi do lado do Jardim Tunduru. Não portava comigo o BI e como alternativa o polícia procurou saber onde eu morava. Apoiado com um caniço de uns 50 centímetros indiquei a direcção de casa que por coincidência foi na exacta direcção do brasão da república cravado no chapéu do polícia. Foi um 31 cujo desfecho foi graças a uma intervenção solidária de solícitos transeuntes. Não me recordo dos argumentos do polícia, mas creio que o único mal tenha sido a “coincidência” dos aposentos: o meu e O do Estado. Do episódio retenho a lembrança da choradeira de menino em direcção à casa.
O segundo: há uns dias contei o episódio acima a um amigo de Nampula. E este disse que tal não foi nada e que o polícia apenas excedera no zelo. Segundo ele, muito grave e desagradável foi o dia em que ele vira um polícia, em Nampula, a exceder na falta de zelo e sentido de estado. Um 31 de avesso: um 13 da sexta de Agosto em pessoa. Nesse dia e numa acção rotineira (de saque) de um polícia este interpela um cidadão estrangeiro – a partida oriundo da África ocidental ou dos Grandes Lagos - que farto de ser interpelado pela polícia e quiçá pelo mesmo polícia desobedece a ordem de paragem e continua a sua caminhada. O polícia insiste e o forasteiro, uns bons metros distante , vira e com elevado desprezo atira ao ar uma moeda, provavelmente de cinco meticais, caindo a bons passos de distância do polícia.
- O que fará o polícia? cutucava curioso o meu amigo. Em seguida o polícia – imbuído com as insígnias do Estado - caminha lastimosamente em direcção do local da queda da moeda e agacha vergonhosamente para apanhá-la. Segundo o meu amigo: foi horrível e arrepiante ver o Estado moçambicano (território, poder político e população) a ser vulgarmente humilhado e espezinhado em praça pública por conta de uns míseros cinco meticais jogados ao ar e com altivo desdenho. Nem que o polícia tivesse tirado o chapéu – como o fazem ao entrar num bar - ou que fossem milhões de dólares atirados à rua tal acto é inaceitável e imperdoável para a dignidade de um Estado que se preze e queira ser respeitado.
Enquanto o meu amigo contava o episódio fúnebre à rodos decolavam lágrimas nos nossos olhos. E aqui aterra de regresso o Reverendo Desmond Tutu. Sobre ele é contado que no tempo da Comissão de Verdade e Reconciliação a dada altura ele fizera questão de reservar uma bacia no gabinete anexo ao de trabalho. E cada vez que ele ouvisse um relato funesto dos tempos do Apartheid era em tal gabinete em anexo que se refugiava e chorava aos prantos. Consta que a bacia chegara até a transbordar de tanta lágrima.
Aposto que se a mesma ou semelhante bacia estivesse diante de nós – do meu amigo e eu no dia do relato das exéquias do Estado e hoje, adicionando o leitor depois da leitura deste texto - transbordaria do mesmo jeito que transbordara com Desmond Tutu.
A professora e académica Iraê Lundin (1951-2018) contara uma vez – na verdade mais do que uma – que no seu tempo de juventude e estudante universitária na Suécia ela perdeu o verão por culpa de umas horinhas a mais de sono. Ela contara que certo dia e depois de meses molestada pelo frio sueco foi anunciado que no dia seguinte seria o esperado verão e daí uma oportunidade tropical para ela matar as saudades do sol e reviver o Brasil, a sua terra natal. O momento mereceu uma saída “by night” de despedida do inverno da qual se arrependera pelo resto da vida: por conta de excessos dessa noite ela teve que dormir um pouco mais e quando acordara o verão já se tinha ido.
Imagino que o mesmo esteja a acontecer com os actuais Governadores Provinciais (GPs): logo que os Secretários de Estado da Província (SEPs) tomaram posse de repente o verão que se pensava igual aos anteriores durou apenas umas horinhas. Assim e contra todas as previsões “políteorológicas” da corrente do Poder o inverno cinzento do processo político moçambicano continua com a diferença de que para além de longo, agora chove intensamente no inverno.
Nas cerimónias oficiais de abertura do ano lectivo e mais recentemente as do 3 de Fevereiro, o dia dos heróis, foram avistados - logo pela manhã - aguaceiros locais no semblante dos GPs que denunciavam uma temporada de intensa chuva cujas inundações a História encarregar-se-á de registar e estudar as consequências. Agora e diante das inundações cabe aos GPs escolher a melhor estratégia para a própria sobrevivência política.
E em matéria estratégica de sobrevivência recomendo aos GPs que recorram à uma estratégia dos tempos de moleque do bairro. Nesses tempos e perante um sinal de algum perigo, principalmente de agressão exterior e diante da nítida inferioridade na capacidade de resposta, a estratégia de defesa (preventiva) passava pelo recurso ao “agarrem-me senão não respondo por mim”. No caso, os GPs podem adaptar a estratégia para o “agarrem-me se não desisto/bato-lhe”.
E assim segue a democracia à moda moçambicana onde a política também ( como em outros quadrantes) não se difere tanto do clima. Nos dois casos não se celebra uma previsão, sobretudo quando a partida ela é boa. E por estes tempos de mudanças climáticas/políticas não se guie pelo embrulho é necessário que saiba previamente o seu conteúdo e o quanto é resiliente às intempéries dos ventos que sopram do norte.
Um grupo de assaltantes de bancos depois de uma das suas incursões - das mais ousadas e lucrativas - delibera que a divisão do dinheiro seria feita no dia seguinte logo que soubessem do valor através da imprensa. Para eles não havia necessidade para tanta massada, pois alguém faria por eles. O mesmo raciocínio para a limpeza que é feita nas praias do Conselho Autárquico da Cidade de Maputo (CACM), sobretudo as situadas na Av. Marginal: porquê deixar limpa se alguém (associações/voluntários) virá limpar?
Num texto recente e sobre a cidade defendi que não se consegue combater os males e lutar pelo desenvolvimento da cidade sem a participação activa dos seus munícipes e visitantes. E de que uma “cidade bela, limpa, próspera e empreendedora” ( a visão do CACM) só seria possível ser alcançada quando os próprios munícipes (e visitantes) se apropriarem da cidade e no caso das suas praias.
O intróito foi a propósito da realização (30 de Janeiro) da primeira auscultação pública da proposta de postura sobre a protecção, gestão e utilização da costa de Maputo e em particular das jornadas regulares/sistemáticas e pontuais de educação cívica e de limpeza que são feitas tendo como epicentro as praias de Maputo. Pelo que se consta o resultado não difere do da Ajuda Pública ao Desenvolvimento: os respectivos destinatários resistem veementemente aos esforços empreendidos por quem quer ajudar. Alguma coisa não está a bater bem. O que será?
Creio que a abordagem que é feita devia ser alterada. A boa vontade e os recursos existentes deviam ser reorientados/centrados na capacidade municipal de encaixe e recolha do lixo (recipientes e transporte) nos pontos previamente definidos. Quanto a limpeza ao longo das praias que ficasse uma responsabilidade cívica dos seus utentes. Estes - na sua maioria frequentadores cativos - seriam os próprios protagonistas e fiscais do asseio da praia.
Em resumo e uma dica para a postura em elaboração: recolher apenas o lixo depositado nos pontos definidos e o resto deixar ao critério dos utentes. Do caos pode emergir a ordem. Mboralá experimentar!
Em tempos infanto-juvenil o Brasil – o país do futebol, da mulata e do samba - representava, no meu imaginário, uma terra que também era minha. O colorido da sua miscigenação era o íman e o “verde e amarelo” da bandeira a marca identitária. Na verdade e à distância do olhar do tempo: o Brasil era o país para um provável pedido de Asilo Político - “instituição jurídica que visa a protecção a qualquer cidadão estrangeiro que se encontre perseguido em seu território por delitos políticos, convicções religiosas ou situações raciais”.
À época - anos 80 - era normal que as querelas do bairro desembocassem em palavreado hostil sobre o tom da pele de cada um. A mim e a outros com o tom de pele semelhante era dirigido o inevitável: Mulato não tem bandeira/não tem pátria. E a resposta era automática: a nossa bandeira/pátria é “verde e amarelo”.
Anos depois - no início do actual século - tive a oportunidade de viajar ao Brasil. Afortunadamente por nenhuma das razões que justificasse um pedido de asilo. Mas e por outras razões afins/contrárias, nomeadamente: as de combate à ordem mundial (então e ainda prevalecente) que criam e alimentam as condições para que os pedidos de asilo continuem na ordem do dia.
No dia da partida - depois da praxe das despedidas caseiras e cercanias - fui ao aeroporto no limite do tempo. Desço do táxi e um bagageiro - notando a minha aflição - pergunta: “Mulatinho, posso carregar a pasta?”. Ainda não lhe tinha respondido, lá tratou de fazê-la chegar ao ponto do “check-in”. Na despedida e com o peso da amável gorjeta o bagageiro sorriu e dedicou uma “boa viagem mulatinho”, terminando com a típica (e enciumada) recomendação (que é sempre dada à quem vai ao Brasil): não se distraía só com o futebol e o samba. É preciso completar a tríade.
No Brasil , concretamente na cidade de Porto-alegre, fui convidado a uma “peladinha” de basquetebol. Em pleno jogo eu fui ouvindo, entre outros, “corta ai, Neguinho” e “cuidado com o Negão”. Depois de um certo tempo – e até então não entendera nenhuma jogada - é que me apercebo que o “Neguinho” era eu e o “Negão” , um cara adversário e bem corpulento que para as minhas lentes do índico era mais para branco do que para mulato ou negro. De “Negão” apenas delatado por algumas características físicas no rosto que lhe expediam (os brasileiros) para a África.
No avião e de regresso à Perola do Índico veio-me à memória as brigas que sempre - na ausência de argumentos - culminavam no tom da pele. Assim foi até ao dia em que Mia Couto, escritor moçambicano, deu outro sentido ao debate, escrevinhando: “Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça…” .
No banquete por ocasião da investidura do Presidente da República (PR), o investido, Filipe Jacinto Nyusi, proferiu alguns pronunciamentos que despertaram a curiosidade dos que acompanham a vida política nacional, mormente quanto a composição do novo governo. Pairou a ideia de que na composição do novo governo o PR não se contentaria com o “balneário partidário”, abrindo alas para o “ balneário da sociedade “ que é, quiçá, mais vasto e nas palavras do PR: de altíssima qualidade.
Abaixo e de forma breve, partilho um apanhado do que foram as expectativas, conclusões e lições aprendidas a partir de excertos do “ Discurso de Sua Excelência Filipe Jacinto Nyusi, Presidente da República de Moçambique, no Banquete oferecido por ocasião da Sua Investidura como Presidente da República” vis-à-vis a composição do novo governo.
“O Estado não se esgota no governo, como muitos pensam. Há várias posições relevantes no tão diverso quadro institucional de Moçambique. Esse quadro diversificado pede o concurso do talento e da experiência de um amplo leque de quadros, cuja vontade seja servir Moçambique./O meu governo irá capitalizar esses talentos nacionais… ”: com o anúncio do novo governo ficou patente, fora o entendimento contrário, que o grosso ou a totalidade dos membros do governo é formado por membros do partido do PR. O resto que aguarde a possível chamada para as outras posições relevantes fora as do governo.
“…A inclusão é muito mais do que a acomodação de um grupo restrito de compatriotas, seja qual for a sua origem. Incluir é ouvir os que pensam diferente. Incluir é dar oportunidades iguais a todos, é exercer justiça social, é promover o emprego.”: fora os cargos, para o PR o moçambicano é convidado “…a participar com o seu saber, experiência e espírito crítico no processo de identificação de soluções para os desafios que os moçambicanos irão enfrentar no próximo quinquénio” (discurso da tomada de posse)
Em suma, nada esta perdido e as expectativas transitaram para o preenchimento das vagas do governo em falta e ainda dos cargos por preencher de muitas outras posições relevantes do quadro (refeitório?) institucional moçambicano. Quem sabe se no que falta preencher e em tempo de compensação o PR marque um golo na própria baliza.
Em Moçambique é normal que o Poder recorra a expressão “mão externa” para acusar as organizações da sociedade civil moçambicana de estarem (e existirem) ao serviço de interesses estrangeiros, sobretudo do Ocidente. Pelo que se crê o móbil da acusação é o facto de estas organizações receberem doações/financiamento do Ocidente e de supostamente no verso do cheque constar uma agenda do que fazer . Sobre a acusação - e do mesmo jeito que o acusador também bebe (e bem antes) da mesma fonte - já diz o ditado: quem fala assim não é gago (risos).
Trouxe a expressão (mão externa) à mesa, não para debruçar sobre acusações, mas para partilhar algumas considerações que se prendem com o seu alcance ( e dos órgãos adiante) e a razão da escolha da mão (externa) e não de um outro órgão do tipo, por exemplo: coração , estômago ou cérebro.
Imagino que se tenha recorrido a este termo (mão externa) porque dos dedos da mão sai a assinatura do cheque. Dos mesmos dedos a direcção a dar ao valor inscrito. E também – a parte dolorosa – dos mesmos dedos sai um gesto que se assemelha com o nome de uma fruta da corrente época. Deste gesto e por ter recorrido à empréstimos na calada da noite, o país ainda se ressente da sua profundidade.
Uma outra expressão e com a mesma intenção acusatória de “ mão externa” com o tempo saiu de moda. Era a não menos famosa “mão invisível”. A razão por ter saído de moda talvez fosse porque as ditas agendas escondidas deixaram de ser segredo e em nome da transparência passaram para o fórum público de tal sorte que é perfeitamente identificável o dono da dita “mão externa”: os países do Ocidente que condicionam o seu apoio à questões de ordem política e económica.
Para o apoio recebido de outros países - caso da China - o termo (mão externa) não é aplicável, pois a China – pelo o que se consta da fala oficial – não condiciona a sua ajuda à nenhuma imposição de natureza política ou económica. Enquanto que o apoio do Ocidente é considerado mau, o da China é bom. Neste contexto, uma expressão adequada para caracterizar a abordagem da ajuda chinesa e recorrendo a outros órgãos do corpo humano e de tão amorosa a ajuda chinesa, quem a recebe devia ser acusado de “coração externo”.
O denominador comum e o culpado da dependência externa é um outro órgão: o estômago. Este (já interno/nacional) ainda não se libertou dos hábitos e costumes gastronómicos coloniais e pelos dias que correm, os da globalização . Para ilustrar chamo a atenção de uma entrevista (dada depois da independência) de Ricardo Rangel, o saudoso fotojornalista moçambicano, que perguntado sobre o que mais gostava de comer respondeu que adorava um bom cozido à portuguesa. E em seguida lamentou que o seu estômago não se tenha descolonizado. Presumo que não tivesse sido matéria da agenda do processo de descolonização.
A par do estômago está o cérebro. Isto para falar do último órgão (também interno/nacional). Não é segredo para ninguém que o grosso da literatura (científica e religiosa) que alimenta (doutrina) o cérebro da Pérola do Índico é externa e boa parte proveniente das fontes do apoio. Logo e a partida: um órgão exposto, vulnerável e à reboque da “mão externa” e do “coração externo”.
Nestas circunstâncias - diante das incursões externas ( da mão e do coração) e da capitulação interna (do estômago e do cérebro) – haverá alguma luz no fundo do túnel? Acredito que haja e tenho fé que um outro órgão e local (devidamente identificado) venha à terreiro em socorro da Pérola do Índico .
Temo que o próximo mandato inicie e o PR (Presidente da República) não ache ninguém para os cargos a nomear e muito menos para ser governado. A razão? É muito simples: em Moçambique ninguém conta que o outro e semelhante esteja vivo. Basta que um e um outro não se avistem para que se considerem parte das estatísticas de “lhanguene” (cemitério). E sobre tal - na passada quadra festiva - tirei as dúvidas atinentes, sobrando o receio de que em 2020 o país não volte a dar certo, simplesmente – e mais uma vez – porque não conta contigo. Já explico.
No ano passado fui alertado - por um amigo da terra na diáspora - a propósito do jeito dos moçambicanos cumprimentarem-se, mormente depois de algum tempo sem contacto. Ele contara que todos os anos que passa as suas férias no país e sempre que se cruza com um amigo este mal esconde o espanto, expelindo o típico: “Hei, estás vivo, pah!?”. No papo e quando arrolado o nome de um amigo comum, um outro e sonoro assombro: “Hei, esse tipo tá vivo!? Pensei que já tivesse bazado”. E por ai avante, passando pela minuciosa revista dos que verdadeiramente partiram. E não prolongo, pois acredito que o estimado eleitor bem conhece o assunto e certamente é parte deste modo de estar à moçambicana.
Na última quadra festiva - um bom momento de encontros ocasionais entre conhecidos que não se comunicam há algum tempo – fiquei muito atento a este fenómeno e a conclusão foi aterradora: é geral (e preocupante) a estupefacção mútua pelo outro estar “Vivinho da Silva”. E dito isto, abro uns parênteses: perdoe o “teu amigo de peito, teu camarada” que bem acomodado no poder não se tenha lembrado de ti no último mandato. E já agora: faço votos de que na quadra festiva tenha estado “ocasionalmente” com ele. E para os que pensam em altos voos no próximo mandato - e em jeito de atenção a chamada - vai um aviso à navegação: só resta uma semana para a tomada de posse do PR.
Voltando ao amigo que me alertara para este fenómeno, perguntei-o - na altura - como era pelas terras do Ocidente (o dito mundo desenvolvido), local onde ele assentara arraiais. Fiquei a saber que por aquelas bandas e nas mesmas circunstâncias – encontros ocasionais depois de um certo interregno - os avistados questionam-se mais ou menos nos seguintes termos: “Então, esses projectos?”. Um detalhe, mas substancial e quiçá a nota que diferencia o ritmo do desenvolvimento entre o grosso do Ocidente e o país.
Será por aqui que o país - há mais de quatro décadas - não dá certo? Não sei, mas seja como for é recomendável e urge que se inverta a prática dos cumprimentos à moda moçambicana. Assim - e nesta década que se inicia – vai uma dica: quando o estimado leitor encontrar alguém que não se avistam há algum tempo não se admire que ele esteja vivo. Pelo contrário. Pergunte: “Então, esses projectos?”
Tenho fé e acredito piamente que deste modo o estimado leitor estará a contribuir para que este país - a partir de 2020 - não seja mais um dejecto à maneira das caracterizações de Donald Trump, PR norte-americano, mas um projecto e sério de desenvolvimento de e para vivos. Quem sabe se assim e contigo (bem vivo, naturalmente) o país possa dar certo.