Nasceu Zaida Mucavel, atingiu a imortalidade como Zaida Chongo. Ou Lhongo, como alguns grafam o apelido que lhe advém do casamento com Carlos Chongo. Nascera a 17 de Junho de 1970 e o seu ocaso aconteceria a 4 de Junho de 2004. Fez a passagem com a idade de Cristo e deixou o seu rastilho de génio no mesmo páramo que a recebeu prematuramente. Mais do que um nome, é um mito. Uma das lendas que fazem a nossa pobre mitologia. Recordo-a sobretudo como a mais iconoclasta das cantoras moçambicanas. A sua rebeldia encantava-me. Ela tinha mandiga no corpo e naquela voz maviosa. Vê-la no palco, nas suas coreografias provocadoras, era fascinante. Era assombroso. Aquela sua figura indómita, aquela sua paixão revolucionária, aquela sua subversão. Era uma rebelde com causas. Um talento espantoso. Uma artista sublime. Um daqueles raros cometas.
Zaida cantava o quotidiano. O dia a dia. Os problemas aparentemente corriqueiros dos seus iguais. Era despretensiosa e, no entanto, libertária. Era uma mulher livre que lutava para nos libertar. De quê? Dos preconceitos. Perseguia e lutava pelos direitos das mulheres. A sua crítica social era acutilante. Provavelmente, o que ela cantou persista ainda hoje e, se calhar, com maior expressão. Vivemos mergulhados em contradições insanáveis, a nossa sociedade está cada vez mais enferma. Zaida é, por isso, actual, terrivelmente actual. Permanece cortantemente actual. A sua crítica severa ressoa. Era um verdadeiro tratado de sociologia. Escrutinava as tensões sociais, as relações problemáticas na sociedade. As relações sociais. Cantou o amor. Cantou a mulher. Cantou os homens. Cantou as anomias da sociedade. As nossas complicações, os nossos distúrbios, os nossos tumultos.
Iniciara como bailarina no grupo de Carlos Chongo. Mesmo quando se transfigurou em ícone da música, não deixou de encantar com a sua ginga, a sua candura na dança e o seu dom provocador. Tinha panache. Era elegante. Era bonita. Tinha um sorriso bonito. Não era exibicionista, expressava a sua arte, o seu génio. Das parcas biografias sobre Zaida reza a história que ela filha da vasta prole de Amélia Cossa e Jaime Mucavel. O seu nome de baptismo era por isso Zaida Jaime Mucavel. Nascera em Boane (Mahubu) a 17 de Junho de 1970. O pai tocava xizambi, um instrumento tradicional, em forma de arco. Dos filhos de Amélia e Jaime, apenas Zaida cantou e dançou.
Zaida foi muito popular. A sua morte e o seu funeral foram momentos de grande comoção nas ruas. Só quase 20 anos depois um outro músico, também extremamente popular, iria ter do público semelhante afectividade. Nós amámos a Zaida, nós admirámos a Zaida, nós queríamos a Zaida. Como nenhuma outra cantora. Lembro-me de ver os populares a cantarem à passagem do seu féretro. De ouvir a sua voz prolongada na dor e no desespero de muitos. Muitos que eram simples, iguais. Deixaria para o futuro: “Zabelane”, “N´dzuti”, “Sibô”, “Toma que te dou”, “Drenagem”, “Alfândega”, “Ma take away” ou “Sifa Sihlile”. Não foi consensual. Os geniais nunca o são. A arte divide. A grande arte não busca a mesma avença de todos. A grande arte contesta, duvida, indaga, interroga. Lembro que um grande poeta meu amigo achava-a um kitsch, algo ridícula, a roçar a libertinagem. Eu discordava dele. Para mim, Zaida era genial, tinha o dom, o engenho, a aptidão. Era uma rebelde, uma revolucionária.
Tinha uma candura, era tão catita a cantar, o seu sorriso quase infantil, algo maroto, algo inocente, o seu encanto e a sua desenvoltura, o seu estilo despojado, a sua doçura irreverente. Estava à frente do tempo, muito à frente. Cantou a nossa tragédia, a tragédia dos moçambicanos e a sua morte não foi o desmentido da mesma. Foi uma espécie de ironia trágica que cobriu o seu destino. O reiterar desse fatalismo. Os deuses são caprichosos.
Passam hoje 20 anos que ela que se apartou dos vivos. Tudo nela foi precoce: o talento, o palco, o brilho, o casamento. O sucesso. O apogeu. O ocaso. Eclipsou com a idade de Cristo e subscreveu provavelmente um aforismo grego. Os deuses amam os que partem cedo. Chamaram-na cedo demais. Queriam-na por perto. Provavelmente para ter o privilégio da sua playlist: de “Quiribone” a “Sibo” passando por “Drenagem” ou “Toma que te dou”. Zaida brilha ainda hoje no firmamento, naquele páramo para o qual a levaram.
Zaida, tsova, kurufela!
Lisboa, 4 de Junho de 2024