Abdul Magid Osman faz hoje 80 anos. É um dos nossos melhores. Não tivesse outros motivos para o celebrar, haveria de assacar as razões da amizade que nos ligam há anos. Mas acontece que o Magid é muito mais do que um amigo, é um dos moçambicanos exemplares, uma daquelas personagens que a nossa distracção ou a nossa abulia colectiva se atreve a abandonar no limbo do esquecimento ou do descaso. Parece uma patologia da nossa nacionalidade: esta reiterada arte de deslembrar.
Ele foi um desportista emérito, tanto no futebol de salão como (ou sobretudo) no atletismo. Excelente nos 110 metros barreiras. Ele foi dos primeiros e raros quadros deste País quando acedemos à Independência. Formara-se em Economia e Finanças no Instituto Superior de Economia em Lisboa. Ele foi o ministro das Finanças que fez a transição entre a I e a II República, entre a economia centralmente planificada para uma economia mais liberal (o que em termos políticos correspondeu a uma transição). Provavelmente, ainda estamos a viver as dores dessa transição imperfeita. Antes fora secretário de Estado e, subsequentemente, ministro dos Recursos Minerais. Ele foi um alto funcionário das Nações Unidas (PNUD).Ele criou o BCI. Ele foi administrador não executivo do Mercantile Bank na África do Sul. Ele criou a Épsilon. Ele foi um dos fundadores e presidente da Biofund. Ele foi Presidente do Conselho de Administração do Banco Único. Ele esteve no Conselho de Administração da GALP Energia. Ele é um dos mais reputados economistas moçambicanos. Ele é um intelectual público. Pensa políticas públicas. Um grande intelectual. Preocupado sempre com o nosso destino comum.
Reputo-o, sobretudo, nesta última qualidade. A de intelectual, a de pensador. Ele se indaga, ele nos indaga, ele se interpela, ele nos interpela. Conversar com o Magid – socorro-me a um famoso ensaísta recentemente perecido – é melhorar o silêncio. É fascinante escutá-lo. A sua conversa, o seu método, a sua pedagogia. Há interlocutores cuja conversa vale o nosso silêncio ou pelo menos a inteligência da nossa interposição. Magid é um deles. Um sábio.
Cultivo, cultivamos, com o Magid, uma bela e velha tertúlia. À nossa pândega (à falta de melhor termo) curamos chamar Vergelegen, um vinho de que somos adictos. O Deus Baco sabe da nossa folia e nos tem penitenciado da depressão, da prostração, da melancolia. Porque às vezes, muitas vezes, somos confrontados com a desesperança, a ausência de rumo, a ameaça do infuturo, a incerteza. Vivemos tempos aziagos.
Não me lembro de uma conversa, de um almoço, de um jantar onde o Magid não se ativesse ao País. A Pátria antes de tudo, a Pátria doí-lhe as entranhas, a Pátria é urgente e visceral nele, ele sofre com a Pátria, ele não vive para além da Pátria. Magid Osman é indefectivelmente patriota. Não é necessariamente ufano. É um crítico. Mas quem disse que praticar a contradita é divergir da Pátria? Penso, aliás, que a benquerença patriótica nos impele ao exercício da réplica, da disjuntiva. Bem sei que há por aí muitos defenestradores do espírito da liberdade. Mas acredito, como o Magid, numa sociedade aberta. Bem sabemos nós dos seus inimigos...
Ao longo destas décadas de amizade aprendi a escutá-lo e a intentar a replicação. Também convergimos e muito. O Magid é um romântico, um pouco quixotesco talvez, alguém que acredita, um utópico. Um lírico, diria eu. Ele sempre encontra motivos para acreditar. Onde nos vemos impossibilidades, ele vislumbra um postigo. Certa vez, perante uma mensagem de fim de ano seca minha, ele reclamou que lhe faltava esperança. E acrescentou palavras que nos serviam de lenitivo.
Magid é também um amigo magnânimo. Ele cobre de generosidade os seus amigos. Dá-se-nos em transbordante altruísmo. A amizade é uma insígnia para ele, uma divisa. Exerce-a com prodigalidade. Provavelmente, o mote da sua vida. Os amigos são a sua família. Trata-os como trata os seus. Um homem de uma grande humanidade. Um homem de uma grande bondade. Um ser superior. Um grande senhor. Um senhor nobre. Majestosamente nobre. Nobilíssimo!
Ele sabe reconhecer e reconhecer-se na inteligência e na cultura dos outros. Ele admira quem o é. A sua devoção ao conhecimento e à cultura é uma das marcas distintivas da sua personalidade. A argúcia na argumentação, a perspicácia na análise, a sagacidade no raciocínio. A abertura e o espírito livre. A humildade e a sapiência. Estas são as epígrafes de Abdul Magid Osman. Tudo isto com afeição. Tudo isto com dilecção.
Devo-lhe uma amizade irrepreensível, uma comunhão de ideias e de sonhos, uma solidariedade sem limites. Devo-lhe muito do que sou. Devo-lhe eu, devemo-lo todos aqueles que com ele temos tido a felicidade de conviver e de fazer parte do seu círculo de amigos. Somos, também, por isso, a sua família.
Nunca ouvi uma palavra de censura ao amigo Magid. Ouço palavras em seu abono: aclamação, aplauso, reconhecimento. É o que oiço dos seus amigos. Isto significa que não haja quem se amofine? Haverá, por certo. É, no entanto, daquelas personagens que nos lembram os antigos: digno, elegante, justo. Decente. Um tipo de alta categoria, de uma estirpe rara. Magid é de uma correcção, de uma honestidade, de uma lealdade ímpares. É um homem bom. Probo. E isso já não se diz a muitos ou com esta intelecção.
Há anos que o desafio a escrever. O Magid tem um pensamento fino, uma interlocução viva e inteligente, com ironia e sem soberba. Tem uma trajectória belíssima, tem mundo. Ele está bem à conversa com um estadista ou com alguém sem pergaminhos. Vi muita gente humilde devotar-lhe amizade e anuir em seu favor. Reitero: ele é um ser único. Um livro do Magid poderia ser um testemunho capital sobre o nosso tempo. Sobre o destino de Moçambique e sobre o estado do Mundo.
O País deve-lhe muito. Como economista. Como homem público. Como moçambicano preocupado com o destino dos outros moçambicanos, de todos os moçambicanos. Como empreendedor. Como pensador. Como intelectual. O País deve-lhe uma homenagem, uma honraria – prerrogativa para os melhores. Essa distinção é uma franquia que nos fica bem. Temos que aprender a fazê-lo. Longe da contenda política. A nossa sociedade não se pode resumir à altercação entre partidos ou ao monopólio daqueles que ditam a condição dos paladinos da Pátria.
Temos que ser audazes e poder dizer sem medo, ousar proclamar, apregoar ou conclamar os nossos melhores. Abdul Magid Osman é um desses moçambicanos intrépidos, personagem ou intérprete do devir moçambicano, protagonista do nosso tempo, cuja vida e exemplo põem-no numa craveira que faz dele inspiração e bitola como cidadão distintíssimo. Aqui lhe deixo, neste dia 11 de Junho, dos seus 80 anos, o meu breve tributo, este louvor canhestro de quem se reconhece na láurea da sua amizade.
Elciego, País Basco, 11 de Junho de 2024