“Eu nasci em KaTembe, a 2 de Novembro de 1920, um Domingo, às 11 horas da manhã. A minha mãe chamava-se Jinita Libombo e o meu pai Jeremia Dick Nyaka. Os meus pais conheceram-se em KaTembe, onde ambos cresceram e frequentavam a mesma Igreja. Foi lá que eles se casaram, e tiveram os primeiros dois filhos: o meu irmão Daniel e eu. Tiveram ao todo sete filhos, quatro rapazes e três meninas.”
Começa assim Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade), de Nely Nyaka, o prodigioso relato e testemunho e testamento da Vovó Nely. O seu activismo social começou cedo, primeiro no seio da Igreja Metodista Wesleyana e, mais tarde, no Instituto Negrófilo (que depois assumiu a designação de Centro Associativo dos Negros da Colónia de Moçambique), organização de que o seu pai foi sócio-fundador. Recentemente, esteve na criação e é uma das mais notáveis dinamizadoras da associação Pfuna, dedicada a mitigar a pobreza e a miséria de crianças órfãs.
Vovó Nely é uma das grandes intérpretes do devir moçambicano. Não só pela sua experiência, mas sobretudo pelo seu exemplo e valores. Neste livro, editado pela Marimbique, em 2018, cartografa não só a sua trajectória individual, mas estabelece um atlas de um tempo e de uma sociedade.
Os pais, Jinita e Jeremia, a KaTembe, Lourenço Marques, a vida na periferia (mahanyela: xitiki, bajiyas, machambas e outras formas para ganhar a vida), a casa e os rituais, o namoro, o casamento, a gravidez e parto, o falecimento.
A Moamba e a vida lá nas terras do Sabié. O nascimento dos filhos. A cegueira do filho Raúl. Os tempos duros. Os tempos sombrios. A prisão do marido Raúl. O retorno à Lourenço Marques, a casa de Ximphamanine. A prisão do filho Luís pela PIDE. Os assassinatos políticos. A sordidez do colonialismo no seu estertor.
O livro fala dos alvores da Independência, do 7 de Setembro, do Governo de Transição, do entusiasmo e da euforia, de Samora Machel, dos erros da nacionalização das barracas e casas de madeira e zinco, dos excessos da revolução, da Operação Produção, do seu tempo como Juíza eleita, das transformações sociais, da língua e cultura, das novas práticas e das narrativas e brincadeiras da nonagenária com o seus netos e bisnetos.
Estas memórias percorrem uma longa e enriquecida vida de uma extraordinária personagem deste século moçambicano, mulher dotada de uma memória prodigiosa, exemplo de probidade e repositório de valores. Profunda conhecedora de Lourenço Marques (Maputo) e, mais particularmente, dos seus bairros periféricos, onde cresceu, Nely Nyaka fala-nos, em Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade, dos marcos geográficos e sociológicos da sua cidade, das famílias que a habitavam, das práticas e dos costumes da comunidade e dos artifícios a que se recorria para mitigar a pobreza, e para vencer as enormes barreiras criadas pelo poder colonial a todos os que não fossem brancos.
Aqui estão 100 anos de uma vida plena, não isenta de provações, contudo absolutamente instigante. Impressiona-me sobretudo o seu olhar. A perspicácia do seu olhar. A candura do seu olhar. O acerbo espírito crítico e o poder de observação. A filha Gita Honwana Welch, que ajudou na fixação do texto e é autora do prefácio, fala da “candura da observação”, uma expressão felicíssima.
O ingente livro de contos Nós Matámos o Cão Tinhoso (1964) ou mesmo o recente e brilhante livro de ensaios A Velha Casa de Madeira e Zinco (2017), de Luís Bernardo Honwana, as incontornáveis Memórias (1985), de Raúl Bernardo Honwana, ou ainda os escritos de Raúl Honwana (filho), autor da obra O Algodão e o Ouro (1995), cruzam-se com este (2018), de Nely Nyaka, e denunciam, se quisermos, uma estética que lhes é comum. Uma mesma ética. A ética é, aqui e sempre, uma espécie de estética da responsabilidade, individual e colectiva. No fundo, estão imbuídos de uma mesma poética.
Não deixo de assinalar que vivemos um contexto adverso, onde a cultura e os valores, onde a ética e a estética, onde o património e o acervo cultural, onde tudo isto perdeu a centralidade. A grande violência das últimas décadas é, para além do aniquilamento de vidas que se perderam, esta degenerescência em que nos atolamos.
O lançamento deste livro, em Novembro de 2018, nos seus 98 anos, foi um momento de júbilo, facto que hoje não se repetiria dadas as circunstâncias supervenientes deste ano pandémico. O átrio do Museu dos CFM estava cheio: filhos, netos, bisnetos, amigos, familiares, admiradores. Quando chegou o momento de a autora se pronunciar, ela fez uma oração profunda e acutilante, assombrosa e generosa, lúcida e corajosa.
A oração foi feita em ronga, transcrevo parte da tradução:
“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo
...os três nomes que nos dão a medida da tua grandeza.
Agradeço-te Deus nesta hora, agradeço-te meu Deus as bênçãos que derramas sobre a minha vida e a generosidade de teres permitido que eu escrevesse este livro.
Escrevi este livro, sim, meu Deus, porque tu abriste a minha mente para que eu tivesse a ideia de o escrever.
Move-me a vontade de tentar explicar a maneira como se vivia antigamente. Sempre ansiei por contribuir para que os mais novos tivessem consciência de como eram as coisas nesta terra, muito antes de eles nascerem.
No meu dizer, meu Deus, é um pouco da história de Moçambique o que quero contar àqueles que me rodeiam.
Agradeço-te meu Deus por teres permitido o tempo e a força para que eu pudesse fazer o que tanto desejava fazer.
E é por isso que uma vez mais rogo que tu estejas connosco também neste momento e neste lugar para que o nosso trabalho de hoje se cumpra em boa ordem.
Sem me esquecer meu Deus de orar pela nossa terra.
Quero orar pela nossa terra.
A nossa terra vive tempos muito atribulados.”
“Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade”, de Nely Nyaka, é uma obra notável, surpreendente e generosa. Disse-o e aqui repito: testemunho e testamento majestoso, sumptuoso, soberbo. A Vovó Nely cumpriu o seu dever e aqui está o seu livro, a sua vida, o seu exemplo e os seus valores. Aqui está ela nos seus belos 100 anos! Deus deu-lhe esse tempo e essa força. Espero que a oiça quanto à nossa terra e quanto a estes tempos atribulados que vivemos.
KaMpfumu, 2 de Novembro de 2020