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quarta-feira, 18 novembro 2020 06:03

As maternidades flutuantes

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No imaginário infantil, txopelar nunca foi, tão só, uma aventureira e arriscada viagem de alguns segundos ou minutos. Muitas, pelo contrário, simbolizavam a realização de sonhos que exorcizam vontades recalcadas. Noutros tempos, as crianças se penduravam nos taipais dos Land Rovers, dos Bedfords e Ifas, até nas bicicletas, e se boleavam, aproveitando a distracção dos pedalantes, para provarem ao mundo a sua agilidade e destreza.

 

A modernidade transformou os veículos, mas nunca o sentido da aventura. Hoje, txopelamos em chapas feitos transportes públicos. Carroçarias empilhadas e necessidade que perdeu a ingenuidade. As emoções e os prazeres, não se algemaram ao tempo e testemunham, ainda, essa fantasia que se estende pelo infinito. A verdade foi sempre a filha do tempo, e a sabedoria, a filha da experiência. De geração em geração, txopelamos nossas vidas no Centro, no Sul e no Norte deste país que busca esse horizonte de comunhão e prosperidade. Umas vezes por aventura, outras, não raras, por condição. Txopelar dá sentido as carências e vivências.

 

Os veleiros, nacalenses por designação, se transformaram na única salvação para a sitiada população dos distritos costeiros do Norte de Cabo Delgado. Os txopelas da salvação. De noite ou de dia, eles passaram a transportar milhares de vidas e almas ansiosas pelo reencontro com a própria vida, serenidade e razão para terem nascido. Estes moçambicanos não procuram portos-seguros, antes, procuram as razões da discórdia, da falta de irmandade. Buscam, neste percurso, o sentido da serenidade e da racionalidade. 

 

De Quionga a Olumbi, de Panguane a Pundanhar, Quiterajo a Mucujo, a debandada quase não deixou de ter mãos a medir. O último campeonato pela sobrevivência, mas, nunca, a última corrida em busca de conforto e bem-estar. Distâncias nebulosas, permeadas por ventos e monções do Norte ou Sul. Uns a estibordo e outros à bombordo. Como carga levam seus parcos haveres. Os sobreviventes patos e galinhas, também eles deslocados, como se fossem o maior tesouro de um passado sem tantas carências. Estas aves, sequer precisam de explicações para entenderem as razões da fuga. Como qualquer racional, agradecem aos seus deuses e espíritos pela salvação. No desespero e aflição, não importa as condições e muito menos a comodidade dos txopelas. Elas nunca existiram. Por isso, são txopelas. Ser transportado sem segurança e na aventura. Precisam de se apinhar para zarparem.

 

Embarcados, e na precariedade do desconforto, viram todos insulares e sem história e nem nomes, procurando refúgio no continente, um espaço que os deixe olhar para os outros seres na condição humana. Porém, a ondulação e os silêncios, atravessadores pelas ordens dos ventos, se fracturam com os choros de crianças não contabilizadas no horário da partida. O txopela, quando todos mesmos esperam, se reconverte em maternidade. Um parto sem assistência e dignidade, mas com a solidariedade das matronas e assistidos por capulanas salgadas pelas ondas. Os mais inapropriados e inconcebíveis espaços para se chegar ao mundo. O mar de tantos mistérios reserva para si o direito de conservar, em suas profundezas, as placentas que registam a incredulidade da malícia e fúria assassina insurgente.

 

Hawa ou Eva, nessa etimologia bíblica, foi uma de tantos que vieram e chegaram ao mundo flutuando. Embalados pela sinfonia combinada de ondas que testemunham tantos outros nascimentos, no interior de suas profundezas, porém, quase nunca, na superfície de suas águas. Mas, são estas águas que se acalmaram para receber cada uma destas crianças. Receber e transportar para outros mundos inundados de dissabores e imperfeições.

 

No mar florescem para a vida os pequenos guerreiros ávidos de rescrever sua própria história, alterar o curso da humanidade e fazer valor a historicidade de tantas gerações de Manis que souberam viver da pesca e caça ou recolecção, mas, jamais, de fratricida e inexplicadas disputas. Hawas, Faridas e Omares, Anchas e Ibraimos, Naziras e Salimos, tantos que agora parecem ser números, mas que transportam fascinantes histórias de trabalho, vida e amor. O tempo se encarregará de escrever a sua própria história. Estas crianças nascidas em maternidades ambulantes e flutuantes serão candidatas a navegantes fugidos da barbárie e crueldade, em busca da terra prometida, como Moisés procurou Jerusalém, partindo para essa fé que alimenta a religiosidade.

 

Vivemos txopelados para essas esquerdas e direitas, com rajadas de vento nem por isso tão favoráveis. Para tanta desgraça não pode ser apenas a natureza que dita o nosso destino. Somos nós próprios. O bom senso e condução colectiva terão de nos orientar para um porto de calmarias. Assim, a sorte acompanhará os audazes. 

 

De maternidades flutuantes os txopelas podem, lamentavelmente, transformar-se em pequenos calvários, espaços onde a vida deixa de fazer sentido. Neste mesmo mar de tantas alegrias e salvação, os afogamentos sepultam corpos em suas águas cristalinas. Junto da placenta dos recém-nascidos, jazem heróis e famílias com destinos interrompidos. As paradisíacas ilhas assistem com a mesma cumplicidade, o gerar e o desfazer de vidas. São estas águas que retiram o melhor de nossos concidadãos. São os txopelas das múltiplas tragédias de tantos refugiados e fugitivos. Nestas horas, o idílico azul se converte num túmulo sufocante e frio, para deixar nas suas profundezas os sonhos de quem nunca entendeu a génese de tanta conflitualidade, descrença e vandalismo.

 

Entre maternidades e calvários, só tem um nome, esperança de um outro futuro e novos horizontes. Estes txopelas são as imagens do sofrimento, narradas de formas tão cruzadas, incompletas e incoerentes, insensíveis e arrepiantes, que viajam em sentido inverso do aceitável e tatuando as nossas consciências e memórias. Os txopelas revelam a plenitude de uma tragédia e crime humanitário cujas proporções, só mesmo Deus poderá, algum dia, justificar.

 

Na linha do horizonte, os txopelas vão chegando silenciados e com a réstia de esperança restabelecida. Invadem as místicas praias do Paquitequete. Areias brancas transformadas em pequenos hotéis desprovidos de tudo.  Um céu aberto e a última redenção divina para quem alcança terra firme.  Paquitequete abraça a todos com a mesma gentileza que recebe dezenas de pescadores. Para trás, as narrativas de uma longa aventura, os relatos da crueldade e descaso, a matriz de sentimentos, de pequenez da nossa solidariedade e generosidade e de um presente que não quer ser passado, pois, o futuro também parece ter deixado de existir.  

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