Director: Marcelo Mosse

Maputo -

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É líquida a ideia  de que a implantação de (grandes) projectos de exploração de recursos naturais e parte deles esgotáveis, fora os seus entretantos, gera benefícios para as comunidades locais. E uma vez que a terra dos rongas acolhe a capital do país - igualmente um grande projecto - há quem pergunte pelos benefícios locais disso, sobretudo, e como qualquer projecto, a capital também tem o seu tempo (indeterminado) de duração. Foi assim pelo mundo, incluindo o caso da Ilha de Moçambique, a antiga capital de Moçambique, que em 1898 foi preterida a favor de Lourenço Marques, actual Maputo. Tal possibilidade, a de um dia  Maputo deixar de ser a capital, e no quadro do debate  sobre a sustentabilidade da exploração dos recursos naturais, leva à reflexão sobre a sustentabilidade da exploração da terra dos rongas como a capital do país, atendendo, e a história prova, que o recurso terra-capital  é também esgotável.

 

E depois que o recurso terra-capital esgotar do que se sustentará Maputo? Não será uma nova Ilha de Moçambique que mal consegue preservar o património erguido por ser a capital, um estatuto que lhe fora retirado, e que se saiba,  sem nenhuma indemnização e de nenhuma alocação orçamental  anual por ter sido  a capital. Provavelmente haja quem não tema a mudança e ache que a cidade das acácias  sobreviverá assim como a cidade brasileira do Rio de Janeiro que, em 1960, perdeu o estatuto de capital para Brasília e nem por isso perdeu o seu fulgor. Mas, segundo alguns escritos que não vêm ao acaso, a perca do estatuto de capital do Brasil é apontada como a responsável da crise crónica em que o Rio vê-se  mergulhado até hoje, incluindo a da auto-estima do carioca (o ronga do Rio de Janeiro), nunca recuperado desde que a cidade maravilhosa perdeu o estatuto de capital.

 

Curiosamente, nos dias que correm, parte das razões que ditaram a mudança da capital da Ilha para a então Lourenço Marques – alguns apontam as de ordem económica/financeira (minas sul-africanas) e de soberania (receio da tomada do estratégico porto de Lourenço Marques) face a interesses ingleses, colonizadores da África do Sul -  estão novamente à superfície (cofre à norte e soberania ameaçada também à norte) e não me admira que se comece a futurar uma nova mudança. Aliás, este debate não é novo, e por existir uma experiência amarga de uma vítima entre nós o seu desfecho  merece um tratamento constitucional no sentido de assegurar direitos vitalícios para a cidade que perca o estatuto de capital. Certamente um assunto para ser ponderado no devido tempo, mas que não deixa de ser um bom ponto de reflexão por ocasião da passagem de mais um aniversário da cidade de Maputo (10 de Novembro). Parabéns cidade das acácias pelos seus 133 anos e também, por arrasto, embora não saiba o dia e mês, pelos 122 anos com o estatuto de capital.   

segunda-feira, 23 novembro 2020 07:37

Estamos a combater o mesmo combate que Cardoso combateu

No 'feicibuki'. 

 

- Posso ter o teu contacto? 

 

Talvez ele estivesse a espera no 'inbox', mas eu lancei o meu 'voda' ali mesmo nos comentários num instante. Minutos depois o meu cell toca.

 

- Alô, Juma! Boa tarde! É o Marcelo deste lado... Marcelo Mosse. 

 

Como pode um ídolo se apresentar ao seu fã com tanta etiqueta? Nunca tinha falado com o Marcelo antes, e nem no sonho pensei que isso fosse possível. Aquele gaguejar era jazz e blues para os meus ouvidos. 

 

- Boa tarde, ilustre! É um prazer enorme. 

 

Era eu titubeantemente procurando uma intimidade que nunca existiu. Queria manter o colóquio ao nível do remetente. Não queria decepcionar. 

 

- Olha, mano, quero fazer uma parceria contigo. Estou a desenvolver um projecto e queria contar contigo. Vou lançar um jornal daqui a quase três meses, concretamente no dia 22 de Novembro, Dia Carlos Cardoso. 

 

Confesso que estou perdido. Confuso. Não estou a gostar. Mas, o que faria eu num jornal? E onde entro eu no Dia Carlos Cardoso? Não tenho tempo para ser correspondente de tablóides. Para piorar, já não me lembro da última vez que havia escrito e publicado um texto jornalístico num jornal. Mas, também, escrever notícia nunca foi o meu forte desde os tempos de faculdade. Se o Jornalismo fosse somente escrever notícias, eu acho que ainda estaria a fazer algumas cadeiras do primeiro semestre. Sempre achei a notícia - no conceito clássico - muito sem graça. 

 

- Okey! Mas o que queres que eu faça nesse projecto? 

 

- Quero que escrevas no meu jornal. Quero que assines um espaço, uma coluna. Quero-te como colunista. 

 

- Colunista, eu?!

 

- É isso aí, colunista. Eu não te conheço, mas alguém me referiu a ti, um amigo em comum. Vi alguns dos teus textos e acho que podemos avançar. 

 

- Mas, ilustre, eu só escrevo umas coisinhas no 'feicibuki'. Coisas sem interesse. Coisas do 'feicibuki' mesmo, sabe! Não tenho certeza que há quem queira ler aquelas coisas num jornal... um jornal sério.

 

- Pois é, mano! É exactamente aquilo que eu quero. Nada mais, nada menos. É assim que eu gostaria que escrevesses. Assim mesmo. Escreves como se estivesses a escrever para o 'feici' e nós publicamos. E blá blá blá.

 

Faz hoje dois anos que estamos a lançar mísseis terra-ar via 'Carta'. Quando o inimigo está perto demais, não gastamos munições; damos-lhe uma bofetadas retumbantes, asfixiantes e qualquerizantes. De resto, é uma luta que vinha travando informalmente com outros companheiros desde os tempos da blogosfera nos primórdios dos anos dois-mil, nos tempos da facul, do Parlamento Juvenil, do CEMO, etecetera. Uns tombaram em combate, outros desertaram das fileiras. Uns deram o peito às balas, outros deram repolho ao cérebro. Não há epopeias sem desertores e traidores. O que importa é que estamos aqui a continuar o combate do Cardoso, e está a ser um bom combate, diga-se. 

 

Estamos aqui neste combate que Cardoso combateu e tombou heroicamente há 20 anos. Não sei o que o Marcelo realmente viu em nós, mas ele podia muito bem ter lançado um concurso público para preenchimento de vagas com requisitos extravagantes: ter nível superior; ser antigo combatente; ter 10 anos de experiência em combates de guerrilha; ter pontaria afinada; rapidez comprovada em arremessar granadas; ter flexibilidade em aplicar coronhadas; etecetera. Mas, não! Talvez o Tenete-general Carlos Cardoso, antes de partir, teria dito ao comandante Marcelo Mosse que não é disso que esta guerra precisa. Talvez não são diplomas e certificados que combatem neste combate. Para esta luta, dois tomates bem maduros e bem colocados é suficiente. Não é para lançar os tomates para o inimigo e fugir. Não! É para tê-los bem contigo. É para conservá-los. Aqui come-se feijão. Muito feijão. Aqui ninguém tem CERELAC na língua.

 

Estamos aqui lutando a mesma luta que Cardoso lutou e foi martirizado há duas décadas. É uma luta arriscada, mas prazerosa. Uma luta sem quartel. Uma luta da qual só sairemos no dia da vitória, com bandeira em punho... a bandeira do povo. É o mesmo combate que o Cardoso combateu. Um dia alguém irá contar a história destas trincheiras inóspitas. Uma história vanguardista e patriótica. Uma história de coragem. A história do povo. Um dia alguém terá de esculpir as estátuas destes heróis e mártires e erguer no coração de cada cidadão. 

 

Acorde o Carlos Cardoso que vive em ti e venha combater este combate! 'Aqui trata-se um combatente; é duro, mas temos de vencer', é Samora esse.

 

- Co'licença!

 

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No entanto, seu conteúdo não vincula a empresa.

sexta-feira, 20 novembro 2020 07:06

Eleições na Cê-Tê-A: um campo inclinado

Quem me conhece sabe que eu sou apaixonado por eleições. Sei lá! Onde há processos eleitorais, eu estou lá a meter o bedelho. Então, nesse meu 'mete-mete' tenho estado a notar que as eleições na Cê-Tê-A de Dezembro próximo são mais do que eleições. Há muita poeira. Muita sujeira. Há quem quer impedir que os seus adversários concorram. A ideia é sujar social e politicamente os adversários. O objetivo é vencer antes das eleições; fora das urnas. Estão a tentar inclinar o campo do jogo. Perdeu-se a urbanidade. 

 

Mas, o que mais me preocupa é o envolvimento de uma nata jornalística nesse jogo sujo. Deliberadamente ou não, é visível que há certa imprensa fazendo consultoria ao candidato Agostinho Vuma, o atual presidente da Cê-Tê-A. O que é deveras preocupante. Quem quiser fazer assessoria que saia dos holofotes e venha cá para este lado. Que não se aproveite dos espaços nobres para se promover clientes. 

 

Ora, as manchetes desta semana são uma sentença contra o possível adversário do Vuma. Fora de serem parangonas especulativas são também condenatórias. Os jornais viraram tribunais contra o Álvaro Massinga com base em 'informações em nosso poder' e 'nossa fonte bem posicionada na Cê-Tê-A' sem a respeitada presunção de inocência. Hoje, o Massinga é o sujo e o Vuma, o menino bonito. Na verdade, ninguém conhece o Massinga, mas querem fazer de conta que é uma figura sobejamente conhecida no mundo da travessura. Agora só falta dizerem que o Álvaro não pode ser candidato porque roubou mangas da vizinha quando era criança. O Vuma é, hoje, a eterna vitima. O eterno coitado. Não sei como jornalistas que inspiraram gerações se deixam usar como ratoeiras. 

 

Está claro que uma das causas de perpetuação dos africanos no poder é a imprensa. Certa imprensa tem a mania de assumir apetites e dogmatizar pessoas. Uma imprensa idólatra. Uma imprensa mesquinha. Aquela entrevista ao Vuma na tê-vê, aquelas manchetes do 'Público' e do 'Zambeze' são uma autêntica sopa. Uma sopa de legumes geneticamente modificados. 'Tutu mafia!'

 

Recados e especulações deixem connosco que escrevemos coisas sem interesse! Vocês deviam se preocupar em escrever notícias e em informar com isenção e transparência. Deixem de ser acólitos do Vuma! Deixem que o Vuma vença por mérito próprio! Não inclinem o campo do jogo! Podem estar a criar um Trump.

 

- Co'licença!

 

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No entanto, seu conteúdo não vincula a empresa.

quinta-feira, 19 novembro 2020 06:52

Fazilange

O celular vibrou no bolso das calças  e eu achei que podia atender noutra altura, depois de descer do barco. Eram oito horas da manhã de um sábado, e o meu destino era Linga-Linga, onde tenho ido amiúde ver a Fazilange, minha tia. Há dois caminhos para se chegar lá, a partir da Maxixe. O primeiro passa por Móngwè, e o outro por Murrombene. As duas vias têm o seu fascínio próprio, é por isso que me entrego a elas de forma aleatória. Mas existe ainda a esplendorosa estrada do mar, que nos leva ao êxtase da beleza, como se tudo aquilo fosse um paraíso.

 

Somos seis ocupantes da embarcação, incluindo dois tripulantes experientes, capazes de preverem a mudança dos ventos sem recorrerem ao barómetro, o barómetro são eles. Conhecem pelos nomes, cada lugar deste tapete azul que se estende entre os palmares da Maxixe e Murrombene, e outros palmares que ressurgem em Mucucune e Guidwane. Depois temos uma enorme vaga que nos deixa ver o Índico,por onde vão entrar os barcos de cabotagem que nunca mais apareceram por aqui.

 

Na verdade estamos no paraíso, e perante esta sumputuosidade da natureza, qualquer palavra será desnecessária. É como se nos prostrássemos a ouvir boa música, interepretada ao som das harpas. Não se fala quando é assim. Fica-se em silêncio, assim como nós estamos, deixando que as emoções triunfem. Também porque neste lugar quem manda são as gaivotas, que escolatam a nossa barcaça, susceptível dos sopros.

 

Mas eu vou a Linga-Linga ver a Fazilange.  Providenciei um pequeno cabaz, que inclui duas garrafas de vinho, as quais vão proporcionar alegria a minha tia que me espera desde ontem, após uma ligação que fiz a dizer assim, Fazi, amanhã estou aí! É minha amiga. Ela gosta muito de mim na mesma proporção em que eu a admiro. Há uma afinidade entre nós. Falamos a mesma linguagem. De paródia.

 

Fazilange vive numa casa modesta virada eternamente para o mar. É uma mulher muthswa, levada para ali pelo marido, um bitonga pescador atacado e morto por um tubarão em plena faina. Então, a vida da minha tia, mesmo sem perder sentido, ficou profundamente abalada. Pior porque nunca teve filhos, nem ela, nem Khwambe Makwandra, e os dois eram felizes.

 

Agora vou a casa da minha amiga para matar saudade. Para lembrar momentos vibrantes que passamos juntos com Khwambe Makwandra, um homem jovial  que vivia a vida profusamente. Quero ouvir a voz de soprano da Fazilange, tendo como catalizador o vinho que levo. Quero sentir o abraço profundo da minha tia. E já no auge, cantaremos canções dos nossos ídolos, onde não faltará Yimpi ya mafilista (guerra dos filisteus), do hinário da Igreja Metodista Unida.

 

Fazilange agora move-se com dificuldades, ela treme nas pernas, mas por dentro emana energia, testemunhada pela voz equalizada que canta versos antigos. É isso que me leva a visitá-la constantemente, como hoje, que vou passar aqui todo o sábado e todo o domingo, sem atender a nenhuma chamada do telefone que não pára de vibrar. Estou pouco me lixando para os que querem falar comigo, nem que seja para me comunicarem a última tragédia. Deixem-me ao menos desfrutar deste pedaço de paz, depois voltarei às azáfamas!

quarta-feira, 18 novembro 2020 06:03

As maternidades flutuantes

No imaginário infantil, txopelar nunca foi, tão só, uma aventureira e arriscada viagem de alguns segundos ou minutos. Muitas, pelo contrário, simbolizavam a realização de sonhos que exorcizam vontades recalcadas. Noutros tempos, as crianças se penduravam nos taipais dos Land Rovers, dos Bedfords e Ifas, até nas bicicletas, e se boleavam, aproveitando a distracção dos pedalantes, para provarem ao mundo a sua agilidade e destreza.

 

A modernidade transformou os veículos, mas nunca o sentido da aventura. Hoje, txopelamos em chapas feitos transportes públicos. Carroçarias empilhadas e necessidade que perdeu a ingenuidade. As emoções e os prazeres, não se algemaram ao tempo e testemunham, ainda, essa fantasia que se estende pelo infinito. A verdade foi sempre a filha do tempo, e a sabedoria, a filha da experiência. De geração em geração, txopelamos nossas vidas no Centro, no Sul e no Norte deste país que busca esse horizonte de comunhão e prosperidade. Umas vezes por aventura, outras, não raras, por condição. Txopelar dá sentido as carências e vivências.

 

Os veleiros, nacalenses por designação, se transformaram na única salvação para a sitiada população dos distritos costeiros do Norte de Cabo Delgado. Os txopelas da salvação. De noite ou de dia, eles passaram a transportar milhares de vidas e almas ansiosas pelo reencontro com a própria vida, serenidade e razão para terem nascido. Estes moçambicanos não procuram portos-seguros, antes, procuram as razões da discórdia, da falta de irmandade. Buscam, neste percurso, o sentido da serenidade e da racionalidade. 

 

De Quionga a Olumbi, de Panguane a Pundanhar, Quiterajo a Mucujo, a debandada quase não deixou de ter mãos a medir. O último campeonato pela sobrevivência, mas, nunca, a última corrida em busca de conforto e bem-estar. Distâncias nebulosas, permeadas por ventos e monções do Norte ou Sul. Uns a estibordo e outros à bombordo. Como carga levam seus parcos haveres. Os sobreviventes patos e galinhas, também eles deslocados, como se fossem o maior tesouro de um passado sem tantas carências. Estas aves, sequer precisam de explicações para entenderem as razões da fuga. Como qualquer racional, agradecem aos seus deuses e espíritos pela salvação. No desespero e aflição, não importa as condições e muito menos a comodidade dos txopelas. Elas nunca existiram. Por isso, são txopelas. Ser transportado sem segurança e na aventura. Precisam de se apinhar para zarparem.

 

Embarcados, e na precariedade do desconforto, viram todos insulares e sem história e nem nomes, procurando refúgio no continente, um espaço que os deixe olhar para os outros seres na condição humana. Porém, a ondulação e os silêncios, atravessadores pelas ordens dos ventos, se fracturam com os choros de crianças não contabilizadas no horário da partida. O txopela, quando todos mesmos esperam, se reconverte em maternidade. Um parto sem assistência e dignidade, mas com a solidariedade das matronas e assistidos por capulanas salgadas pelas ondas. Os mais inapropriados e inconcebíveis espaços para se chegar ao mundo. O mar de tantos mistérios reserva para si o direito de conservar, em suas profundezas, as placentas que registam a incredulidade da malícia e fúria assassina insurgente.

 

Hawa ou Eva, nessa etimologia bíblica, foi uma de tantos que vieram e chegaram ao mundo flutuando. Embalados pela sinfonia combinada de ondas que testemunham tantos outros nascimentos, no interior de suas profundezas, porém, quase nunca, na superfície de suas águas. Mas, são estas águas que se acalmaram para receber cada uma destas crianças. Receber e transportar para outros mundos inundados de dissabores e imperfeições.

 

No mar florescem para a vida os pequenos guerreiros ávidos de rescrever sua própria história, alterar o curso da humanidade e fazer valor a historicidade de tantas gerações de Manis que souberam viver da pesca e caça ou recolecção, mas, jamais, de fratricida e inexplicadas disputas. Hawas, Faridas e Omares, Anchas e Ibraimos, Naziras e Salimos, tantos que agora parecem ser números, mas que transportam fascinantes histórias de trabalho, vida e amor. O tempo se encarregará de escrever a sua própria história. Estas crianças nascidas em maternidades ambulantes e flutuantes serão candidatas a navegantes fugidos da barbárie e crueldade, em busca da terra prometida, como Moisés procurou Jerusalém, partindo para essa fé que alimenta a religiosidade.

 

Vivemos txopelados para essas esquerdas e direitas, com rajadas de vento nem por isso tão favoráveis. Para tanta desgraça não pode ser apenas a natureza que dita o nosso destino. Somos nós próprios. O bom senso e condução colectiva terão de nos orientar para um porto de calmarias. Assim, a sorte acompanhará os audazes. 

 

De maternidades flutuantes os txopelas podem, lamentavelmente, transformar-se em pequenos calvários, espaços onde a vida deixa de fazer sentido. Neste mesmo mar de tantas alegrias e salvação, os afogamentos sepultam corpos em suas águas cristalinas. Junto da placenta dos recém-nascidos, jazem heróis e famílias com destinos interrompidos. As paradisíacas ilhas assistem com a mesma cumplicidade, o gerar e o desfazer de vidas. São estas águas que retiram o melhor de nossos concidadãos. São os txopelas das múltiplas tragédias de tantos refugiados e fugitivos. Nestas horas, o idílico azul se converte num túmulo sufocante e frio, para deixar nas suas profundezas os sonhos de quem nunca entendeu a génese de tanta conflitualidade, descrença e vandalismo.

 

Entre maternidades e calvários, só tem um nome, esperança de um outro futuro e novos horizontes. Estes txopelas são as imagens do sofrimento, narradas de formas tão cruzadas, incompletas e incoerentes, insensíveis e arrepiantes, que viajam em sentido inverso do aceitável e tatuando as nossas consciências e memórias. Os txopelas revelam a plenitude de uma tragédia e crime humanitário cujas proporções, só mesmo Deus poderá, algum dia, justificar.

 

Na linha do horizonte, os txopelas vão chegando silenciados e com a réstia de esperança restabelecida. Invadem as místicas praias do Paquitequete. Areias brancas transformadas em pequenos hotéis desprovidos de tudo.  Um céu aberto e a última redenção divina para quem alcança terra firme.  Paquitequete abraça a todos com a mesma gentileza que recebe dezenas de pescadores. Para trás, as narrativas de uma longa aventura, os relatos da crueldade e descaso, a matriz de sentimentos, de pequenez da nossa solidariedade e generosidade e de um presente que não quer ser passado, pois, o futuro também parece ter deixado de existir.  

Os terroristas decapitaram o professor Damião Tangassi. O professor Tangassi era sobejamente conhecido em Muatide e Matambalale; nesta última aldeia leccionava numa escola devastada pelas bárbaras acções dos terroristas.

 

Damião Males Tangassi era um autêntico autodidata. De étnia makonde e marido dedicado, foi surpreendido junto com a sua família nas matas de Muatide, em Muidumbe quando em redor de uma lareira procuravam afugentar os ferozes animais e suportar o medo e fazer algo para comerem. No fatídico dia, os terroristas não olharam para aquilo que ele representava para milhares de crianças, jovens e pais de família que durante duas décadas passaram por suas mãos.

 

O professor Tangassi trabalhava abnegadamente na formação de uma geração diferente, mas que a guerra foi interromper este processo. Hoje, com todos seus alunos desperso, ele tinha a esperança de recomeçar, onde haviam parado. Infelizmente, os terroristas se apossaram dele e zombaram da sua dignidade com recursos a baionetas e diferentes tipos de tortura. Ode ao professor Tangassi. Ode a todas vítimas do terrorismo em Cabo Delgado e no mundo.

 

Em vida, o professor Tangassi, sonhava em um dia contar às crianças e seus netos o sofrimento que o seu povo está a ter hoje com os actos bárbaros dos terroristas. Conforme uma publicação sua feita numa canoa em Abril quando fugia a um dos maiores ataques aquele distrito. Tangassi escreveu na sua conta de Facebook "ainda tenho esperança de um dia contar aos mais novos sobre algumas das atrocidades deste ponto do país, na confiança de que tudo tem seu início mas também conhece o seu fim".

 

Infelizmente, depois de no passado dia 23 de Outubro, o governo distrital de Muidumbe, na província de Cabo Delgado, ter emitido uma circular a solicitar apresentação ao sector de trabalho de todos os funcionários e agentes do Estado até o dia 01 de Novembro, eis que os terroristas, que haviam atacado o distrito em Abril, regressaram àquele local onde destruíram propriedades e mataram  civis e militares. Entre as vítimas estava um professor que em vida respondia por Damião Males Tangassi; foi assassinado com sua sobrinha que estava em gestação; a mesma foi feita cesariana a sangue frio pelos terroristas.

 

Os familiares do professor actualmente encontram-se em Pemba. Relata-se que a esposa foi obrigada a assistir ao acto macabro do assassinato do professor, seu marido. A mulher encontra-se em estado de choque e traumatizada. A família do professor Tangassi estava em segurança em Pemba desde Abril, mas o sentido de dever e patriotismo levou com que acatasse as ordens superiores.

 

Damião Males Tangassi, de 44 anos de idade, pai de quatro filhos e que em vida vivia numa união marital, nasceu em Muatide, no distrito de Muidumbe e começou a leccionar em 2001, na altura como contratado. Tangassi estava afecto a Escola Primária Completa de Matambalale, uma das onze atacadas pelos terroristas. 

 

Entretanto, entre os dias 31 de Outubro a 01 de Novembro junto com a família e outras; algumas conseguiram escapulir-se e com a situação da sobrinha que não conseguimos apurar o nome foram encontrados nas matas pelos terroristas.

 

O professor Damião Males Tangassi foi decapitado em frente aos filhos, hoje nas mãos dos terroristas, a mulher e a sobrinha que estava em gestação. A morte do professor Tangassi demonstra uma outra faceta dos terroristas; pelas circunstâncias e para o poder do Estado em defesa dos seus agentes e funcionários...

 

Ode ao professor Tangassi!

 

Ode a todas vítimas do terrorismo em Cabo Delgado..!