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quinta-feira, 09 abril 2020 06:10

Moçambola, Unidade Nacional e a COVID-19

O debate sobre a “Unidade Nacional” em Moçambique fora inacabado, e talvez por isso, é um assunto espinhoso, pois agita muitas sensibilidades e algumas delas altamente inflamáveis. À distância, e sem que vá à fundo, entendo a “Unidade Nacional” como o sentimento de pertença à uma nacionalidade e para o caso, a moçambicana. A realização do campeonato nacional de futebol, vulgo “Moçambola” (sobretudo nos moldes clássicos de todos contra todos), é apontado – e até nos círculos do poder - como uma das vias da consolidação da “Unidade Nacional” e desse entendimento são mobilizados fundos e mundos para assegurar a sua periódica concretização anual.

 

Confesso que nunca engoli que o “Moçambola” fosse (merecesse) assim tanto. E porque gosto de Basquetebol (até podia ser uma outra modalidade), sempre exigi o mesmo tratamento. A resposta é de que este desporto não movimenta massas (muita gente). Aliás, nenhuma outra modalidade desportiva no país movimenta massas como o futebol e talvez por isso, a justificação do reiterado carinho do Estado ao “Moçambola” e em detrimento das outras actividades desportivas que movimentam menos massa e assim, e já agora, com menor ou nulo potencial para contribuírem para a “Unidade Nacional”.   

 

Neste contexto e com o impacto da pandemia COVID-19, a não realização do “Moçambola” não será uma ameaça para a “Unidade Nacional”? Por força ou não da COVID-19 a sua não realização não constitui nenhuma ameaça, pois julgo que o “Moçambola” não é e nunca foi um factor de “Unidade Nacional”. Para mim, e para citar um de tantos de índole desportivo, um exemplo de factor de unidade nacional – o sentimento de pertença a uma nacionalidade (moçambicana) – foi o gerado pela Lurdes Mutola quando conquistou a medalha olímpica de atletismo, que é, a propósito, uma modalidade que não movimenta massas no país.

 

Como ameaça, a COVID-19 é apenas para o “Moçambola” e não para a “Unidade Nacional”, pois, fora o uso quotidiano da máscara e outros, a COVID-19 deixará como legado da sua passagem o facto de ter desmascarado a utopia de que o “Moçambola” é um factor de “Unidade Nacional” e daí a luz verde para o assalto aos parcos recursos das empresas e do Estado. Ademais, e a ser uma ameaça, provavelmente fosse contra um outro tipo de unidade e para o caso em questão (futebol), a passional.

 

E a fechar, nem tanto a ver, e pelo que se consta dos meandros da bola e com uma certa naturalidade e tradição, não fica bem que o Estado insista em drenar recursos em algo conotado, entre outros, com a alta corrupção, tráfico de influências, sonegação de impostos, falsificação de documentos, lavajem de dinheiro, pancadaria, racismo e o tribalismo. Isto sim: talvez atente contra a “Unidade Nacional” e como prevenção, rezo que não falte muita água e sabão, um outro legado da COVID-19 para o “Moçambola” e não só.

quinta-feira, 09 abril 2020 06:07

A longa espera do madjerman

Aqui ao lado da minha casa mora um homem despromovido a categoria de alcoólatra. Um indivíduo que passa a vida no “Senta-baixo”, onde não pára de contar as mesmas histórias de uma Alemanha Democrática que agora só existe na memória. Repete-as de tal forma que já ninguém as presta atenção. Mas ao que parece, a vida do meu vizinho só fez sentido uma vez, quando ele esteve na Europa nunca antes sonhada, amealhando a provisão para os tempos de estiagem que provavelmente viria enfrentar em Moçambique, sua mátria.

 

Lembro-me dele quando acabava de chegar, nos princípios da década de noventa, cheio de vigor,  inesperadamente repatriado sem nada no regaço, a não ser a moto da marca MZ, uma mulher loira rendida aos encantos do negro, e uns poucos marcos (antiga moeda alemã) que passou a esbanjar em esbórnias sem fim, se calhar sem saber que toda aquela exuberância era falsa, e que a loirinha não iria suportar viver em condições de miséria. Aliás, ele próprio  não percebeu de imediato que tinha regressado  a miserabilidade, por isso ainda andou por aí, espalhando um charme de nada.

 

Tinham-lhe dito que regressaria ao trabalho e ao frio da Europa, logo que passasse a tempestada provocada pela derrocada do muro de Berlim, e isso dava-lhe alento. Podia gastar tudo, pois, as mãos para trabalhar estarão sempre prontas para repor o que se tirou do celeiro. Sou jovem e forte, dizia ele, e tenho o amor da minha namorada. Com a força que ela me dá, nada vai abalar a minha alma, nem o meu corpo, nem os meus sonhos.

 

Porém o que o meu vizinho não sabia, é que o seu destino estava nas mãos de outras pessoas. Algumas delas sem honestidade. Capazes, por isso mesmo, de apagar em definitivo o sol que começou a descer para o poente, no dia em que os barcos de cabotagem atracaram e de lá foram descarregadas as motos e as geleiras e pouco mais, e algum dinheiro no bolso, que nem era nada. Ele não previu a desgraça que lhe esperava, nem pressentiu que todo o amor florindo a sua volta, corporizado pela mulher loira que trazia nos braços, iria cair no escuro. Ela capitulou e deixou o madjerman no meio do oceano, como uma bóia a deriva.

 

Passam mais de trinta anos, e o meu vizinho continua na longa espera de nada. Aliás, pode ser que esteja a espera de partir profundamente magoado, rumo ao desconhecido, pois já percebeu que da Alemanha, provavelmente não haverá mais sinal. Nem do governo. O Próprio Jehová, segundo diz este homem que vai minguando a cada gole de aguardente, não tem certeza de que algum dia cairão nas nossas mãos, as notas do sangue que vertemos.  E se Deus de Jacob e de David e de Abrahama não tem certeza sobre o nosso futuro, isso significa que o diabo já tomou conta de tudo”.

 

Na verdade o meu vizinho faz-me lembrar um piloto de guerra que, impedido de voar por lhe terem amputado um pé como consequência dos nefastos efeitos da diabetes melittus, ia todos os dias à base para ver os pássaros metálicos em pleno gozo de liberdade. No ar. Sentia como se fosse ele a pilotar, voando como águia, que voa com as suas próprias asas. É como o meu vizinho, fala constantemente de Dresden onde viveu e trabalhou, como se ainda estivesse lá. Está louco!

 

Basta uma “garrafinha” para toda a Alemanha descer-lhe a memória. Conta com entusiasmo as mesmas histórias já deturpadas pelo tempo e pelo álcool, e ninguém lhe escuta. Mesmo assim não pára, é como se estivesse no palanque, discursando para uma multidão só existente na sua imaginação. E ele tem uma necessidade urgente de delirar, de uivar como um cão selvagem abandonado e despojado de todos os seus haveres, na floresta de pedras pontiagudas. Removeram-lhe o coração!

O Estado de Emergência já está em vigor em Moçambique há sensivelmente 5 dias – este foi decretado pelo Decreto Presidencial n° 11/2020 de 30 de Março, ratificado pelo Parlamento através Lei n° 1/2020 de 31 de Março e as competentes medidas de execução administrativa foram aprovadas pelo Decreto n° 11/2020 de 2 de Abril.


​O objectivo central deste regime jurídico e das medidas de excepção aprovadas pelos indicados órgãos de soberania, no âmbito do Estado de Emergência, é de conter a propagação da pandemia do Covid 19, com vista à salvaguarda da vida de da saúde pública dos moçambicanos.


​Todavia, as medidas impostas nesse contexto excepcional são - como não podiam deixar de ser – anormais e extraordinárias (por exemplo, proibição ou limitação de circulação de pessoas, imposição do confinamento domiciliar ou do regime de quarentena a certas categorias de pessoas, redução ou encerramento obrigatório da actividade económica, fecho de fronteiras e aeroportos, proibição de viagens, etc); tendo como corolário um negativo impacto jurídico-económico nos indivíduos e empresas, afectando na maior parte dos casos as respectivas possibilidades reais de cumprirem com os contratos a que se encontram vinculados ou de os cumprirem nos termos precisos em que se obrigaram.


​Assim, num período muito curto, foram tomadas uma série de medidas excepcionais que, na prática, deixaram muitas pessoas (singulares e colectivas) sem saber como cumprir as respectivas as obrigações contratuais.


​Ciente dessa relação causa-efeito, o legislador estabeleceu no artigo 25 do Decreto n° 11/2020 de 2 de Abril a ineficácia jurídica das consequências do vencimento de créditos bancários (constituição em mora, interpelações judiciais e extrajudiciais e execuções), determinou no artigo 29 do mesmo diploma legal a protecção dos inquilinos de imóveis para habitação proibindo os despejos (sem os desonerar do dever de pagar a renda) e proibiu a cessação de relações de trabalho com fundamento na ausência do trabalhador do local de trabalho em decorrência das medidas de prevenção e controlo do Covid 19 (cfr. art. 28).


​Essa preocupação do legislador mostra a sua consciência relativamente ao forte impacto negativo que estas medidas excepcionais podem causar na capacidade de cumprimentos das obrigações pelos cidadãos e empresas. Porém, no nosso modo de ver tais previsões isoladas e esparsas mostram-se claramente insuficientes para regular o problema em toda a sua extensão. São casos pontuais que apenas revelam uma ponta do iceberg da torrentes de problema jurídico-económico similares que desaguarão nos próximos tempos.


​O trabalhador cujo contrato de trabalho foi suspenso, com uma redução salarial progressiva de 75%, 50% e 25%, como irá pagar a renda de casa no próximo mês, sobretudo de gastar o seu salário e as suas parcas economias a aprovisionar bens essenciais raros e vendidos a preços especulativos? Como vai o dono do bar pagar ao fornecedor a bebida fornecida a crédito se não a consegue vender por ter o estabelecimento encerrado? Como irá a proprietária da agência de viagens honrar com o pagamento do serviço de internet e de telefonia móvel e de segurança privada após a redução abrupta das suas vendas? Como irá o dono do restaurante pagar a renda do seu estabelecimento ao seu senhorio se a sua actividade comercial está subitamente limitada à venda de comida para “take away”? Como irá o dono de uma banca no tchungamoyo pagar a exigente prestação mensal do crédito que tem com um banco de microfinanças cerceado pela quebra da demanda e pelas dificuldades de se reabastecer? Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas devido à notoriedade indubitabilidade deste tipo de situações de extrema dificuldade ou de incapacidade de cumprimento de contratos, ficar-nos-emos por aqui.


​Não obstante, as dificuldade e impossibilidades não se ficam, previsivelmente, pelo período do Estado de Emergência. A incerteza e a insegurança estendem-se também para além do período Estado de Emergência, no qual se espera que a crise se mantenha ou agrave, fruto da caótica conjuntura internacional, da falta de capacidade do Estado para apoiar sobretudo as pequenas e médias empresas, da previsível redução colectiva da procura de bens e serviços por falta de capital, do colapso de muitas empresas, do crescimento do desemprego, entre outros males. Como disse e bem o Advogado Arlindo Guilamba, numa publicação recente feita no seu Facebook, relativa ao cumprimento e incumprimento dos contratos bancários: «uma coisa é certa, desta crise sairemos falidos, mal pagos e desempregados».


​Portanto, não se coloca só o problema da situação de excepcionalidade jurídica condicionar a capacidade de cumprir obrigações por parte das pessoas. Este Estado de Emergência, por muito gravoso que seja, cessará a curto prazo. Todavia, os problemas jurídico-económicos e sociais causados pela catástrofe pandémica e pelas restrições executadas durante o Estado de Emergência tenderão previsivelmente a persistir ou até mesmo a agravar-se, por um período muito maior tempo, cuja extensão e termo ainda não poderemos estimar.


​Daí que as circunstâncias que conduziram as pessoas (singulares e colectiva) às decisões de celebrar determinados contratos e a assumir as inerentes obrigações jurídicas foram alteradas de forma anómala com a declaração do Estado de Emergência e as consequências desta situação de anormalidade, previsivelmente, subsistirão por um período de tempo muito superior à sua cessação.


​O que deve acontecer, nestas circunstâncias extraordinárias, com as pessoas (singulares e colectivas) com dificuldades e/ou incapacidade de cumprir os contratos que de forma livre, consciente e voluntária subscreveram? Serão judicialmente processados? Deverão sofrer impiedosamente as comunicações legais estabelecidas para o incumprimento?

 

Quid júris?


​A resposta a esta preocupação pode estar alojada na chamada teoria da imprevisão ou da pressuposição reflectida nos preceitos dos artigos 437° e 438° do nosso Código Civil. Trata-se no fundo de questionar se é justo, perante uma alteração anómala, excepcional, imprevista e imprevisível das condições que conduziram as partes a celebrarem contratos, obrigar a parte que se sente lesada com as consequências igualmente extraordinárias de tais alterações a continuar a cumprir com o contrato ou a cumpri-lo nos precisos termos em que o outorgou.​


​Ora, o contrato não é um fenómeno isolado, ele constitui-se e vigora no contexto de uma realidade social e humana, imerso num determinado ambiente ou background que não pode ser ignorado. A economia do contrato pode ver-se radicalmente alterada por factores que as partes não controlam e sobre os quais podem nem sequer ter formado qualquer representação. Em tais hipóteses, há até quem questione se o contrato cujo cumprimento é exigido ainda seja o mesmo que as partes celebraram noutras circunstâncias (PINTO, Carlos Alberto da Mota, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pp. 607 e 608).


O artigo 437°/1 do Código Civil preceitua o seguinte «Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anómala, tem a parte lesada o direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que as exigências das obrigações por ele assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos do próprio contrato».


Decorre deste preceito legal que, mediante o preenchimento dos pressupostos cumulativos nele ínsitos, o contraente que se sentir lesado com o ónus de cumprir um contrato perante tão extraordinárias e imprevistas alterações pode rescindi-lo ou exigir a sua modificação segundo juízos de Equidade. Aceitar que essas superveniências possam justificar um não cumprimento – ou um cumprimento não cabal – poderá surgir como uma exigência de justiça (CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil, Livro II Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2010, p. 263).


Atentemos nos pressupostos legais desta figura jurídica, a saber:


  1. a) Alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar:
    É imperioso que exista uma modificação tão grande das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; de tal sorte que se elas pudessem ter previsto a sua ocorrência não celebrariam o contrato em causa ou, pelos menos, não o teriam celebrado nos termos em que o celebraram.


Embora a prova da existência deste pressuposto tenha de ser feita pela parte lesada com as alterações anómalas e significativas das circunstâncias, no caso vertente a sua demonstração está facilitada pelos conhecidos efeitos da pandemia do Covid 19 e pela declaração do Estado de Emergência com fundamento em calamidade pública. Quer a existência desta pandemia, quer a excepcionalidade do próprio Estado de Emergência e das suas exigências, facilitam a demonstração deste pressuposto legal, dispensando a parte interessada do ónus de provar a anormalidade da situação que se vive actualmente; pois, factos notórios e do conhecimento geral não carecem de prova (cfr. artigo 514°/1 CPC).


b) Afecção grave da boa-fé pelas exigências das obrigações contratuais anteriormente assumidas:


A questão essencial aqui é a de apurar se exigir que a parte lesada com as referidas alterações anómalas cumpra o contrato pode-se considerar dentro os limites da boa-fé. Seja, se nessas circunstâncias pode-se considerar justo que a parte afectada cumpra o contrato nos precisos termos originariamente convencionados.


Um dos princípios sagrados do Direito das Obrigações é o princípio da estabilidade dos contratos (pacta sunt servanda), transposto para a nossa lei civil no artigo 406°/1 do Código Civil, segundo o qual «O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos previstos na lei». Este princípio demanda o cumprimento escrupuloso dos contratos, nos precisos termos acordados pelas partes, sem modificações e sem extinções, salvo o caso de mútuo consentimento. Porém, não é um princípio absoluto - como nenhum princípio jurídico é-o - devendo ceder quando em confronto com outros princípios jurídicos relevantes. Precisamente por isso, e para isso, é que na parte final do referido dispositivo legal o legislador salvaguardou essa possibilidade de modificação ou extinção «nos casos previstos na lei». Este caso em discussão, da alteração das circunstâncias, é precisamente um daqueles casos excepcionais previstos na lei em que a regra contida no princípio deve ceder o suficiente perante acomodar os ditames da boa-fé.


​Note-se que a lei não exige apenas que o devedor haja com boa-fé no cumprimento da obrigação, mas também impõe que o credor «no exercício do direito correspondente» actue com boa-fé (cfr. art. 762°/1 CC).


​Se a alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar provocarem para uma das partes um desequilíbrio contratual tal que se considere objectivamente injusto exigir-lhe que cumpra o contrato nos termos previamente convencionados ou afectar gravemente os pressupostos em que assentava a sua capacidade de cumprir com o contrato nos termos acordados, não se pode considerar que o devedor incapaz de cumprir com a sua obrigação – ou incapaz de fazê-lo nos precisos termos contratuais -, esteja a agir de má-fé.


Ao lado, se o credor, conhecendo a alteração anormal das circunstâncias em que decidiu contratar com o devedor e estiver ciente do sacrifício excessivo que tal alteração anómala, imprevista e imprevisível provoca na situação do devedor e ainda assim exigisse que aquele cumpra pontualmente com o contrato anteriormente celebrado, também não estaria a agir com boa-fé no exercício do direito correspectivo. Ao lado, até certo ponto poderia considerar-se que essa actuação do credor configura abuso de direito, por exercício desse direito de crédito em ultrapassagem dos limites impostos pela boa-fé (cfr. art. 334° CC) – v. PRATA, Ana, Código Civil Anotado, Almedina, Coimbra, 2019, p. 594.


Resumindo, ao abrigo da disciplina do princípio da boa-fé não será lícito a uma das partes exigir que a outra cumpra escrupulosamente as suas obrigações contratuais sempre que uma alteração do estado de coisas, posterior à celebração do contrato, tenha conduzido a um desequilíbrio das prestações gravemente lesivo para essa parte ( LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, Vol. II, 17ª Edição, Almedina, Coimbra, 2017, p. 129).

c) Que tais obrigações contratuais não estejam cobertas pelo risco do próprio contrato.


A lei exige também, para que o contrato possa ser modificado ou extinto, que as alterações anómalas não excedam os riscos do próprio contrato. Pois, se tais alterações estiverem ainda dentro do risco do contrato em vigor, esse risco deve ser assumido pelas partes segundo dos critérios de distribuição de risco do regime legal do direito dos contratos (cfrs. arts. 796° e 797° CC). Ou seja, cada decisão de contratar envolve sempre a assunção de determinados riscos, não se podendo recorrer ao regime da alteração das circunstâncias sempre que a lesão sofrida pela parte não ultrapasse o círculo de riscos considerados como normais naquele contrato (LEITÃO, ob. cit., p. 137).


Com efeito, só quando essas alterações extraordinárias sejam consideradas tão graves e anormais que exorbitam o perímetro de risco do próprio contrato é que se considera preenchido este pressuposto, para fins de modificação e extinção do contrato em causa por alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar.


Tudo visto, podemos afirmar com facilidade, e sem necessidade de grandes lucubrações teóricas, que a situação de calamidade pública que vivemos e o impacto das suas consequências económicas, jurídicas e sociais na esfera jurídica das pessoas, justifica com alguma facilidade a aplicação do regime da alteração das circunstâncias para muitos contratos em vigor.


Importa aqui abrir um parêntesis para sublinhar que a lei proíbe que a parte lesada, que esteja em mora no momento em que a alteração das circunstâncias se verificou, se beneficie deste regime da alteração das circunstâncias (cfr. art. 438° CC). Isto implica, ilustrativamente, que o devedor que se encontra atrasado no pagamento das prestações do mútuo bancário ou o inquilino que devia rendas ao seu senhorio, possam, por causa da decretação do Estado de Emergência e dos seus efeitos, solicitar à sua contraparte renegociação do respectivo contrato.
A questão que se segue é a abordagem das consequências jurídicas da activação desta disciplina da alteração das circunstâncias. Diz-nos a lei, no artigo 437° do Código Civil, que «tem a parte lesada o direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade […]”. Esta previsão legal determina que a parte lesada – só ela tem essa faculdade de escolha – pode apelar para a rescisão do contrato ou para a sua modificação.


Pergunta-se: tal escolha pode ser arbitrária ou indiferenciada?


Entendemos que não. Que se deve recorrer à disciplina do princípio da preservação contratual para dele extrair o entendimento segundo o qual a prioridade deve ser dada à preservação do contrato em vigor, através da sua modificação segundo juízos de equidade. Só se a manutenção do contrato, mesmo que modificado equitativamente, ainda assim não se mostrar viável e nem justa, em face da gravidade do desequilíbrio económico e jurídico que continuaria a afectar a parte lesada é que permitira que esta se socorresse da competente rescisão contratual. Ainda assim, requerida a resolução do contrato pelo contraente lesado, o outro contraente pode opor-se a tal pedido declarando, em alternativa, que aceita a modificação equitativa do contrato (cfr. art. 437°/2 CC).


Diríamos, com a algum risco, que nestas circunstâncias a modificação equitativa do contrato seria a regra e a rescisão contratual a excepção. Dito de outra forma, a prioridade do Direito das Obrigações é a renegociação do contrato, mantendo-o em vigor sempre que se mostrar viável, ao invés da sua extinção.
À frente, Nuno Oliveira alerta-nos para um «contra-direito» da parte lesada de recusar a realização da prestação nos termos acordados anteriormente. Deixemo-lo expressar-se nas suas próprias palavras: «caso o credor actuasse ou exercesse o seu direito subjectivo propriamente dito, exigindo que o devedor realizasse a prestação prometida; o devedor poderia actuar ou exercer um contra-direito, recusando realizá-la». O mesmo autor considera ainda que estando preenchidos os pressupostos cumulativos da alteração das circunstâncias, a cláusula geral da boa-fé constitui ambas partes no dever jurídico de renegociação do contrato, para o adaptarem às circunstâncias actuais, modificando-o ou revogando-o (OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pp. 580 a 582).


Por isso, quando ocorra a alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar - situação de mais fácil preenchimento em circunstâncias de Estado de Emergência por calamidade pública - o contraente lesado pode exigir da contraparte a modificação do contrato ou a respectiva rescisão, conforme o caso. Caso a exigência seja de modificação do contrato, o outro contraente não se pode opor, terá o dever jurídico de renegociá-lo. Por outro lado, caso a exigência do contraente lesado seja no sentido da cessação do contrato, a sua contraparte pode opor-se a esse pedido declarando estar disposta a negociar.


Entretanto, a questão mais polémica aqui neste domínio, é relativa a aplicabilidade prática do critério de renegociação do contrato. A lei erige a equidade como critério determinante, isto é, demanda que perante a alteração das circunstâncias o contrato deve ser equitativamente modificado.


Acontece que a equidade é um conceito indeterminado, por isso, de difícil adequação abstracta a uma multiplicidade de casos. Em abstracto, é muito vago falar-se em renegociação equitativa do contrato sobretudo quando existiam interesses fortemente antagónicos em presença: de um lado, o interesse do contraente lesado de reduzir ou adiar ao máximo a sua prestação contratual para mitigar o dano que o apoquenta; por outro lado, a sua contraparte tem normalmente o interesse que o contrato modificado não contenha grandes modificações em relação ao contrato originário, sob pena de passar ela própria a constituir-se parte lesada ou parte mais lesada.


Em nosso entendimento, a ideia de equidade prevalecente deve ir no sentido defendido por Aristóteles que via nela um critério de justiça para o caso concreto. Com efeito, enquanto forma superior de justiça para o caso concreto ou revestida de uma função rectificadora da justiça legal, a equidade é uma mediadora entre o princípio abstracto da justiça legal e as exigências dos casos singulares e concretos. Transparece de facto, no apelo à equidade assim entendida, a preocupação de transcender a justiça abstracta e genérica da lei para alcançar a justiça concreta e individualizada ( CHORÃO, Mário Bigotte, Temas Fundamentais de Direito, cit., p. 86. Não muito longe, Freitas do Amaral define Equidade como a forma de solução de conflitos jurídicos que assenta na aplicação da Justiça conforme as circunstâncias específicas de cada caso concreto (AMARAL, Diogo Freitas, Manual de Introdução ao Direito, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2012, p. 127).


Deste modo, uma renegociação equitativa do contrato em crise apelaria para soluções baseadas na flexibilidade, no bom senso, na justa medida das coisas, na proporcionalidade e na justa repartição dos encargos pelas partes; sendo que só no caso concreto se pode avaliar se determinado contrato renegociado foi (ou não foi) equitativamente modificado.


Neste domínio, cada caso é um caso. A nosso ver, só casuisticamente se pode afirmar que as partes culminaram o processo de renegociação do contrato com um acordo equitativo sobre os termos da respectiva modificação.


Neste campo da alteração das circunstâncias, dificilmente se pode encontrar justiça em soluções generalistas aplicadas a um vasto conjunto de casos. Precisamente porque a equidade é avessa ao generalismo. Tal qual a régua de Lesbos, a equidade só é útil e eficaz devido à sua flexibilidade e adaptabilidade às situações concretas, ela visa adaptar-se ao circunstancialismo concreto do caso, privilegiando uma solução individualizadora para aquelas situações que o legislador entenda que as inflexibilidades dos critérios gerais e formais plasmados na lei gerariam distorções e injustiças – tal como é o caso vertente da alteração das circunstâncias.


Talvez por isso é que alguns bancos da praça surgiram na linha da frente, e com notável senso de antecipação, a anunciar publicamente a concessão de moratórias no pagamento das prestações dos créditos bancários por eles concedidos aos seus clientes. É sempre de louvar quando isso acontece por iniciativa própria do contraente menos lesado com a alteração das circunstâncias.


Porém, sendo este um campo no qual o legislador impõe a equidade como critério determinante da modificação dos contratos, sempre diríamos que a generalidade dessas soluções é susceptível de gerar injustiças na sua aplicação a realidades específicas.


No domínio da modificação equitativa dos contratos, por alteração das circunstâncias, o que é justo para uns pode ser injusto para outros; sobretudo por causa da especificidade do impacto dos efeitos da crise na esfera concreta de cada pessoa (singular ou colectiva). Exemplificativamente, nas actuais circunstâncias, uma moratória de 2 meses no pagamento de um crédito concedido a uma empresa da área farmacêutica pode ser considerada uma modificação contratual equitativa; contudo, essa mesma medida pode-se revelar iníqua quando seja imposta a uma empresa do ramo hoteleiro. Definitivamente, não estamos no domínio do «pronto a vestir»; estamos no do vestuário confeccionado à medida do interessado. 

 

Gilberto Correia

(Doutor em Direito/Advogado)

segunda-feira, 06 abril 2020 06:16

O estranho caso de Comiche

Se for verdade que, de facto, o edil de Maputo, Eneas Comiche, é o primeiro caso curado da Covid-19, então, estamos perante um caso muito estranho que só pode ser explicado pela Ametramo. Só quem assistiu o filme "o estranho caso de Benjamim" vai entender o que está a acontecer. 

 

"O estranho caso de Benjamim" é um filme-drama lançado em 2008, baseado no conto homónimo do escritor Scott Fitzgerald, de 1921. Escrito por Eric Roth e dirigido por David Fincher, o filme foi interpretado por Brad Pitt e Cate Blanchett e conta a história da vida de Benjamin Button, um homem que, com o passar dos anos, vai se rejuvenescendo, enquanto a sua parceira envelhece. Isto é, a vida de Joaquim Button decorria de forma regressiva, do fim para o princípio. Só para começar, ele nasceu com 80 anos. Este filme recebeu 13 nomeações ao Óscar, incluindo "Melhor Filme". 

 

Dizia, se for verdade que Eneas Comiche é o primeiro doente curado da Covid-19 em Moçambique, então, temos aqui também um "estranho caso", onde, pela primeira vez na vida real, estamos a viver com uma pessoa cuja vida é vivida de forma regressiva. Pela primeira vez, temos um curado que nunca foi tratado, porque nunca esteve internado, porque nunca adoeceu. Um indivíduo que, primeiro, é curado e, depois, se infecta. 

 

Tudo o que se sabe até hoje é que, no Palácio da capital, quem está doente é a Primeira Dama. Aliás, que pode até ser paranóia dela, uma vez que ela não recebeu os resultados dos exames médicos realizados no dia 23 de Março juntamente com o seu marido. Portanto, o seu marido (o edil) está a espera de dois resultados dos testes feitos nos dias 19 e 23.

 

Se Eneas Comiche está curado da Covid-19 (repito, se for ele a pessoa curada), então, dentro de dias, vai circular um comunicado - assinado e estampado com carimbo do Conselho Autárquico de Maputo - a comunicar (passe a redundância) que o edil está a ser tratado no ICOR; mais logo vai circular outro comunicado dando conta que o edil acaba de ser internado; em seguida, um outro a dizer que o edil acusou positivo ao teste de coronavírus; dias depois, um comunicado referindo que o governante decidiu ficar em quarentena domiciliária voluntária; depois um outro dando conta que o edil acaba de regressar de Londres e; finalmente, um comunicado anunciando a viagem de Comiche à Londres. Quer dizer, vamos assistir estranhamente a vida de Comiche de frente para trás. 

 

Esta situação só pode não ser considerada estranha num país onde os governantes pensam que comunicação institucional é brincadeira. Onde se pensa que dirigir um departamento de comunicação é fazer fifias. Onde se entende que trabalhar em comunicação institucional é ser especialista em desmentidos. 

 

Conheço alguns colegas que trabalham em comunicação institucional do Estado cuja principal tarefa é comprar bilhetes de espectáculos do director, acompanhar a esposa do director ao salão, comprar comida de cachorro da filha do director, fazer reservas do director nos "escondinhos", arranjar gajas com "matunas" carnudas para o director, cambiar dólares do director na esquina, encobrir boladas do director, e quejandos. Gajos que só sabem imprimir e circular comunicados de imprensa que nem sabem quem escreveu. Ao fim do dia, o departamento de comunicação institucional acaba se transformando em caixa de ressonância e morgue de desmentidos. 

 

Compatriotas, comunicação é ciência. Tem suas teorias, modelos, métodos, metodologias, abordagens, paradigmas, axiomas, etecetera. Vale a pena não comunicar do que comunicar mal. Uma comunicação incoerente cria uma cadeia de comunicações igualmente incoerentes. A má comunicação persegue. Hoje, a capital do país e o seu edil estão reféns da sua incompetência comunicativa. 

 

- Co'licença!

Se a Lei de Probidade Pública protege o Estado de possíveis conflitos de interesse por parte dos seus gestores, devíamos ter também uma "Lei de Ignorância Pública" que proteja o Povo de exacerbados conflitos de ignorância dos seus governantes. Devíamos ter uma lei que olhasse para a quantidade e qualidade do desconhecimento dos nossos dirigentes. 

 

O conflito de ignorância é quando a estupidez e a descortês podem levar o indivíduo a decisões lunáticas que podem prejudicar a comunidade. Aquele nível em que a ignorância começa a roçar o analfabetismo, como diria um jovem nos tempos em que era na Esse-Tê-Vê onde a gente se via. Quando se perde a humildade. Quando a postura pública vaza.

 

O mais estranho nisso tudo é que, no ano passado, o governo - de que a ministra hoje faz parte - rendeu homenagem oficialmente ao "mai-love" lançando o "mai-love-EKSSI-PLAZ" como transporte público misto oficial. Então, uma ministra que não conhece "mai-love" - o transporte do povo, de certeza que também não conhece um "badjimburguer" - o alimento do povo.

 

Afinal, vive "awondi"?! Não domina a cultura geral da zona?! Então, não sabe que temos um físico-nuclear, com experiência na NASA, que subiu de cargo porque descobriu que quem come "tseke" a noite caga côcô mole de manhã?! Não sabe que um ministro da indústria mandou-nos comer mandioca para termos músculos fortes?! Não sabe que frango costuma a ter derivados no Natal?! 

 

Se assim for, é mais do que justo que não saiba da existência de malta Nhangumele, Chang e Boustani! É justo que não sabe que temos um tabuleiro de gatunos de estimação que deve ser protegido! Obviamente que não sabe que temos uma coleção de ladrões codificados. Nem val'apena falar então da tabela de Teo, então! Sem dúvidas também nunca ouviu falar da EMATUM! Dívidas ocultas, então, hummmmm. Nem sabe dizer em que ano estão a viver em Gaza.

 

Nada, não sabe. Mas quem é o culpado? Nós! Muito nós! 

 

- Co'licença!

sexta-feira, 03 abril 2020 06:25

O país da última hora

O jornalista Marcelo Mosse escreveu, recentemente, algo parecido com a falta de prontidão e desorganização na resposta à emergência que a COVID-19 impõe ao país. Será que era expectável o contrário? Infelizmente, e dói ter que afirmar, uma das marcas “Made in Mozambique” e parte do ADN da Pérola do Índico é a “Última Hora”. Ou seja: deixar tudo para o fim.

 

E nessa linha, e à hora da refeição, um moçambicano que se preze, deixa o melhor pedaço de carne para o fim. Na escola, o trabalho de investigação é entregue no último dia e até em casos de prorrogação do prazo. Na vida adulta não se difere tanto, conforme os casos - a título de exemplo - da ida ao médico e ao posto de recenseamento eleitoral e ainda no momento de pagamentos às finanças e do manifesto automóvel. Contudo, uma excepção e de ouro: o pagamento de “comissões” (os famosos 10%) que é - sem prejuízo para o infractor - efectuado de forma antecipada. 

 

Neste diapasão, e deveras preocupante, temo, em relação à pandemia COVID-19, que se esteja a confiar em estratégias que fazem também parte do ADN da Pérola do Índico. Uma delas e dos idos tempos infanto-juvenil é o jogo “às escondidas” em que o último escondido, desde que não tivesse sido apanhado, goza de plenos poderes para salvar os apanhados assim que tocasse o ponto da contagem de partida para o esconderijo. A outra estratégia, e das lides do futebol, é o recurso a uma “arma secreta”, que é um jogador que entra nos derradeiros momentos do jogo como a solução final para a vitória.  

 

Dito isto, seria expectável o contrário? Ou não estarão os acontecimentos a desenrolar dentro do quadro lógico do Modus Operandi da “Última Hora” e num cenário - para agravar - em que se desconhece o último dia da acção da fulminante COVID-19. É caso para dizer que os contornos patológicos da dupla pandemia, a COVID-19 e a “Última Hora”, constituam matéria de estudo para a nossa academia, a menos que esta seja uma outra e circunscrita pandemia.