É início de noite de domingo. Setembro na pele da cidade e o cheiro do Outono mais próximo de nós, como o molho picante que se evade da cozinha do restaurante indiano da minha rua. A cada dia o sol deita-se um minuto mais cedo. O céu azul, rasgado por pássaros mecânicos, mais escuro que nos dias anteriores. Vinte horas e dois minutos e o céu azul mais escuro que nos dias anteriores e as luzinhas dos pássaros mecânicos às piscas. O campus da universidade iluminado pelas lâmpadas fluorescentes que ajudam as árvores a fintarem a escuridão. Espreito pela janela e a noite tranquila lá fora.
Na quinta-feira passada pernoitei no Estoril. Uma noite um pouco mais fria e tranquila que a de muitas freguesias de Lisboa. Claro que não podia ser diferente, no Estoril as ondas do mar rastejam com coragem e a praia do Tamariz sempre no mesmo lugar. O escritório para o qual trabalho pôs-nos lá para umas sessões de imersão à vida de advogado associado que se avizinha, razão pela qual no dia seguinte almocei no restaurante do hotel.
Durante o almoço, a mulher que serviu aos meus colegas e eu fez uma centena de visitas à nossa mesa e sempre que se aproximava ignorava os meus colegas, olhava para mim, abria um sorriso que se estendia de uma ponta à outra da boca e cantarolava para mim com aquele jeitinho e tempero brasileiros que ela transbordava:
está tudo bem? você quer mais alguma coisa?
Os olhos dos meus colegas em cima de mim e eu todo constrangido com a situação, sem saber se era aquilo mesmo que me apetecia responder:
está tudo óptimo! Muito obrigado…
Cinco minutos depois, a mulher voltava com um sorriso mais brilhante que o da vez anterior, olhava-me nos olhos com ternura e cantarolava novamente:
está tudo bem? você quer mais alguma coisa?
As batatas a murro e a bifana estateladas no prato branco a rirem-se de mim, os olhos dos meus colegas mais acusadores que nunca e eu a pensar em como ia reagir àquela situação. De repente, a minha colega com um sorriso à queima-roupa disparou:
acho que ela gostou de ti, ilustre!
Não perdi tempo, deixei escapar um risinho maroto e retruquei imediatamente:
o Brasil e eu temos alguma coisa…
As noite de Setembro, de facto, mais fresquinhas que o meu coração. As noites mais escuras. Sinceramente, eu não menti:
o Brasil e eu temos alguma coisa.
No dia 7 de Setembro, o Brasil, um país com mais de duzentos milhões de habitantes, celebra duzentos anos de independência. Tal como para muitos moçambicanos da minha geração, o Brasil chegou-me pela televisão na primeira década do século XXI. Lembro-me de ver o Brasil, um país que só mais tarde descobri colorido, chegar-me aos olhos através das telenovelas que passavam todas as noites na televisão à preto e branco que os meus vizinhos tinham estacionada no centro da cristaleira colada à parede da sala. Lembro-me de ouvir o Brasil chegar-me aos ouvidos através das melodias de Leonardo e Leandro, Zezé de Camargo e Luciano, Almir Sater, Chitãozinho Xororó, Caetano Veloso, Chico Buarque, Alexandre Pires e Alceu Valença. Lembro-me de ver o Brasil chegar através de Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa e de Capitães de Areia de Jorge Amado. De tal modo que modo que não menti quando disse:
o Brasil e eu temos alguma coisa.
São duzentos anos de independência e o Brasil, meu amor, chega-me através dos brasileiros afetuosos e simpáticos que encontro no meu dia-a-dia. O Brasil chega-me através dos vários amigos brasileiros que não cabem em nenhuma das minhas mãos sempre secas. E sem dúvida, Brasil é poesia, negro, metrópole, cachaça, futebol, música, favela, sofrimento, índio, Aparecida, alegria, samba, sertão, amizade, paixão, Domitila, carnaval, vulcão, quilombo, trabalho árduo, esperança, branco, grito, sonho, pimenta no arroz, serena, beleza, vida. De tal modo que a voz no meu ouvido, bem devagarinho, cantarolando:
Arrumadjinho!
Setembro na pele da cidade, a noite mais noite que em Agosto. As luzinhas dos pássaros mecânicos às piscas. As luzes fluorescentes iluminando o campus da universidade e as árvores esquivas a fintarem a escuridão.
Justamente um dia depois de comprar mais uma embalagem de máscaras, para variar, desta vez não eram nem azuis, nem brancas, nem pretas daquele carregado, mas daquele menos carregado, aparentemente lavado, digamos preto esbranquiçado, ou acinzentado, o Chefe do Estado veio à Nação, alto e bom tom, indicar que… “já não é obrigatório o uso da máscara” na via pública, seja nos locais de muita aglomeração, ou de pouca concentração; ou ainda, abertos ou fechados… e que já não há limitações no números de convidados para qualquer que seja a cerimônia, excepto um funeral em que o finado perdeu a vida por causa da ainda pandemia!
Ainda que não a exteriorizemos, nem a formulemos de forma directa, a questão que perpassa a alma de todo o mundano nestes dias correntes, esteja ele onde estiver, é a seguinte: a COVID-19 acabou? Passou mesmo? Mesmo…? Nao estará escondida algures numa esquina, invisível, ou na escuridão?
Não se trata de nenhuma cobardia a não enunciação da pergunta. É que se trata de uma pergunta bem difícil, que diz respeito muito ao futuro, ao amanhã; mas que carrega consigo toneladas e toneladas de pesadelos vivenciados, mas ainda bem vivos no nosso quotidiano, nas mentes e nos olhos. Como bem diz o adágio popular, ninguém conhece o amanhã. O futuro, esse, só a Deus pertence, como bem dizem os crentes. De facto, em nenhum momento o Presidente disse que a pandemia acabou. Disse, isso sim, que vamos viver, mas vamo-nos precaver, porque o amanhã pode voltar a ser o… ontem tenebroso!
Quem não se lembra desse ontem… tenebroso? Funesto! Cáustico. Carrasco. Macabro! Impiedoso. Desumano!…
Não pode não haver quem não se lembre. A humanidade que passamos ontem foi de tal sorte desumana que não deixou nada nem ninguém incólume, na mesma, sem sequelas. Todos os mundanos sofreram, de forma directa, na pele, na família, nos amigos; ou de forma indirecta, nos conhecidos e pessoas de diversa utilidade. Todos sofremos. Em texto de homenagem ao amigo e colega João Matola, que Deus o tenha na sua paz e graça, escrevia que a COVID-19 é/era aquele diabo que nos matava ainda que vivos; uma parte de nós morreu ao longo desses tenebrosos três anos.
Muitos de nós vimos nossa vida escapar por um triz… por milagre de Deus! Muitas foram as pessoas que foram a unidades sanitárias com os seus próprios pés para não mais de lá saírem com os seus próprios pés… milhões foram os que perderam directamente as suas vidas, outros milhões foram as famílias que foram dilaceradas, destroçadas para todo o sempre! Milhões foram os amigos, conhecidos e pessoas de inspiração que se foram para a eternidade, levando consigo grande parte de nós! Milhões foram as almas humanas desconhecidas de nós que, silenciosamente, nos deixaram!
Impossível apagar tudo isto. Impossível acreditar que perdemos os familiares, os amigos, os colegas e os conhecidos que perdemos. Impossível acreditar e ou esquecer!
Como é igualmente difícil esquecer que milhões foram as “coisas” que devíamos parar de fazer na nossa vida, muitas das quais sempre fizemos desde que nos conhecemos como pessoas. A vida tinha perdido completamente o seu sentido: o ser humano não é de permanecer no mesmo sítio durante um infindável período de tempo, mas tínhamos a impiedosa e desumana recomendação, com carácter de lei, o “fica em casa”! Ir ao mercado, à loja, era um acto de… muita coragem! Ir aos copos com os amigos, um dos maiores prazeres da vida, festas, convívios, passeatas, praias… tudo, tudo ficou literalmente proibido: fica em casa! Tudo tinha que se feito e só se podia fazer… na clandestinidade, com o perigo de se ir parar na esquadra dentro de um mahindra!…
Momentos tenebrosos poderão voltar, por isso, continuemos a precavermo-nos! Mas os que passamos não o foram menos! Continuemos a usar a máscara, a desinfectar as mãos, a evitar as aglomerações e os apertos de mão!
ME Mabunda
E os irmãos angolanos deram razão e um voto de confiança a João Lourenço para continuar o trabalho que começou! Uns viam nele um caçador de bruxas, outros, um tirano, ditador, vingador… outros ainda, um perdido na Presidência da República!… mas os angolanos, de forma clara, falaram e disseram: continua a trabalhar! É isto que os dados da CNE angolana nos diz!
Diga-se tudo o que se disser, a questão que fica por aclarar é: como é que o MPLA sobreviveu? Muitos recorrem ao disco conhecido de fraude. Pode ser. Mas na ausência de evidências, ficamos por aí na cogitação. Porém, uma coisa é certa: é difícil acreditar que os 14 milhões… - okay, metade deles, já que 54% se abstiveram - de votantes, todos eles tenham tido daquela grossa maluca que baralha completamente a cabeça durante dias, tipo boss ou double punch!… ou tenham "phuzado mhondzo" (beber poção mágica) para… ou ainda, tenham fumado daquela da pesada para terem chegado à cabine de voto e… cambaleantemente… porem um "X" na última linha… muito menos que um carrasco, tipo Xico feio, estivesse escondido em todas as cabines do país e… tenha obrigado a 4 ou 5 milhões de pessoas a votarem no M/JLo!
Pessoalmente, não consigo compreender como é que o MPLA ganhou… e bem! 124 contra 90 não é um resultado à tangente. 34 deputados não é "à tangente…" Não é retumbante, nem asfixiante, mas também não é à tangente, convenhamos! Diga-se igualmente tudo… que perdeu não sei quantos deputados, que a UNITA se fortificou, que… não sei o que, mais o que, mais o que… sim… mas, lembre-se que não é todos os dias que o Bayern, ou o Real Madrid ganham por… 3, 4 ou 5 zero!
E porquê não consigo compreender como é que o MPLA sobreviveu? Por uma meia dúzia de razões.
Primeira e acima de tudo, porque hoje temos a verdadeira dimensão de como José Eduardo dos Santos com a cumplicidade do MPLA pilharam os recursos angolanos. Todos vimos, atônitos, os triliões ou quatriliões de dólares que Eduardo dos Santos andou a distribuir pelos seus acólitos… a começar pela sua família, depois os amigos, os próximos, os protectores, etc., etc., com tantos quatriliões pilhados durante 38 anos, As listas iam até 500 nomes..: de riquezas/valores ilicitamente conseguidas ou roubados do tesouro nacional angolano. A terra dos Kambas seria hoje um Dubai africano não tivesse sido esta desumana pilhagem! Angola seria um paraíso em África! Um orgulho… ou terra de meter inveja!…
A segunda razão foi a forma como JLo "combateu" a corrupção. Falou mais do que fez. Com tantas evidências de enriquecimentos ilícitos, camiões e camiões de malas de dólares e dólares encontrados nas ruas, armazéns e ou em moradias, muita gente teria ido parar no xilindró… prendeu e julgou menos do que o que deveria ter feito!
A terceira, foi como geriu a sua relação tumultuosa com Zé Du. Ficou menos disfarçada a vingança, a ira que nutria pelo antigo estadista - justificada ou não; ficou muito à descoberta a aparente perseguição, ódio, retaliação a José Eduardo dos Santos e à sua família.
A par disto, as mensagens acutilantemente emocionalizantes das filhas aquando da morte do pai e a subsequente disputa do óbito com a… viúva - de juri ou de facto, não releva. Particularmente as da Tchizé foram bastante incisivas e impiedosas para com o JLo e com o MPLA. E podiam ter mobilizado muitos eleitores.
Depois, os manifestos eleitorais dos dois partidos. Ainda que tenha perdido, mantenho a opinião de que o manifesto da UNITA está melhor estruturado, elaborado e completo; mais atractivo do que o do "nosso partido"! Mais desafiante, inovador, revolucionário, apelativo, ousado e… galvanizador!
Por fim, e não menos importante, a comunicabilidade dos dois candidatos. Adalberto Jr. tem uma eloquência comunicativa melhor que a do nosso líder! A eloquência conta para conquistar mentes…
Pensei que, por todas estas razões e mais algumas, o povo angolano iria dar um "basta" - como bem promoveu o nosso ídolo Bonga - a JLo e ao MPLA! Não o fez! Deu-lhe, pelo contrário, um voto de confiança. Disse: "Continua a trabalhar JLo!" Eu próprio dificilmente teria votado no M.
Pronto, assumo o meu erro de cálculo… erro que me vai custar um "12 anos". Apostei com o meu irmão de pais diferentes, o Sitoe, em como o povo angolano ia dar um "pontapé" ao partido libertador e ele, duro como não é, sempre disse, irredutível, que "o MPLA vai ganhar!" E que as imagens que pululavam/pululam as redes sociais são de Luanda e de outras poucas cidades!…
Agora, a batuta está nas mãos de JLo… os angolanos disseram alto e bom tom: "confiamos em ti! Damos-te mais uma chance para continuares a linha que começaste! Queremos ver combate à corrupção. Queremos ver Angola a transformar-se num "Dubai africano"! Queremos uma Angola melhor!"
Eu também quero uma Angola melhor! Como quero um Moçambique diferente!
ME Mabunda
Seria um lugar privilegiado de contemplação, não fosse aquela invasão toda de casas precárias que vão até à água, e as machambas que sugam essa mesma água. Há outras construções, ainda, erguidas ao gosto dos donos, à volta da lagoa de Tsivanene, sufocando uma paisagem que pertence a todos os munícipes da cidade de Inhambane, porém, agora desfrutada por poucos.
Tsivanene já foi um paraíso, um ponto de encontro onde as mulheres – antes de haver água canalizada para as casas da maioria - iam lavar a roupa, que saía perfumada pelas plantas de nenufen, abundantes nesse tempo. Era um espaço livre, espectacular, com dunas a debruarem -no, num perímetro de cerca de dois quilómetros de comprimento, e talvez pouco mais de meio quilómetro de largura. Mas hoje, toda a beleza natural que ali existia, foi encoberta.
Ainda há pouco passei por Tsivanene, com o propósito de buscar lembranças de um tempo que deixa saudade. Íamos, na companhia das nossas mães, banharmo-nos em mergulhos inocentes, cheios de entusiasmo, enquanto elas – as nossas projenitoras – lavavam a roupa, entretidas e alegres, em conversas sem fim. Sabia do que me esperava. Tinha consciência do choque que me atingiria ao não poder parar de determinada distância e assistir a uma maravilha ora mais do que esquecida. Destruída!
Fui à Tsivanene, como tenho ido a muitos sítios da minha cidade, em passeios livres, sempre que as oportunidades se me oferecem, e saí de lá profundamente esfaqueado na alma. Senti que é um espaço que podia merecer melhor tratamento, onde as construções deviam ser feitas a uma distância recomendável, à mistura com algumas casas de pasto e esplanadas para dar regalo ao espírito, à mente, e ao corpo.
Tsivanene podia ser limpo, talvez dragado, a pensar-se em canoas desportivas, há condições para isso. Seria um retiro da juventude, e não só, já que dentro da cidade não temos visto casais a passear abraçados aos fins-de-semana. Inhambane não são só as praias espalhas ao longo do Índico, entre Barra e Guindjata, passando por Tofo. Aqui também poderiamlos aliviar as cargas do trabalho que nos ocupa ao longo da semana.
Tsivanene fica perto do Aeroporto. Seria acessível e lindo, se alguém tomasse a responsabilidade de mudar as coisas como estão, e levá-las a um sonho que é possível realizar. Para gáudio de todos os manhambanas, e daqueles que nos viriam visitar.
O Poeta Alberto de Lacerda morreu há 15 anos. Li, pela primeira vez, um poema seu publicado, na vetusta “Gazeta” da TEMPO, por Luís Carlos Patraquim, que me marcaria para sempre: “Diotima”. Aqueles versos iniciais são inesquecíveis e nunca me abandonaram: “És linda como haver Morte/ depois da morte dos dias”. Isto é de uma beleza tremenda. Mas o poema tem outros versos igualmente perfeitos: “Quem te criou destruiu / qualquer coisa para sempre”. Um poeta capaz deste tipo de síntese poética tem lugar em qualquer panteão. Este poema foi inspirado pela sua sacerdotisa, a Poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, talvez a mais importante poeta portuguesa do século passado.
Alberto de Lacerda nasceu na Ilha de Moçambique a 20 de Setembro de 1928 e cedo imigrou para Londres onde viveu – com intermitências pela América – até ao fim. Luís Amorim de Sousa escreveu um testemunho pungente sobre o Poeta em “Às Sete no Sa Tortuga: um retrato de Alberdo de Lacerda”. Um comovente testemunho de amigo desde que se conheceram em Londres até ao fim. Lacerda abandona Moçambique em 1946, parte para Lisboa onde prossegue os estudos e chega, em 1951, a Londres. Aos 23 anos almoçou “Exactamente / No centro / Da liberdade” com o imenso poeta T.S. Eliot, autor desse celebrado “The Waste Land” e Nobel em 1948. Conhece, através de Edith Sitwell, o poeta Dylan Thomas.
Será na capital britânica onde publicará o seu primeiro livro: “77 Poems”, em 1955, pela Allen&Unwin. Teve um acolhimento caloroso e críticas entusiasmadas. Em Portugal, onde no início dos anos 50 conviveu com a nata da poesia portuguesa – Ruy Cinatti, Mário Cesariny, Raul de Carvalho, António Ramos Rosa, Luís Amaro e Sophia de Mello Breyner Andresen, a sua Diotima –, participou da criação da “Távola Redonda”, com Ruy Cinatti, António Manuel Couto Viana e David Mourão-Ferreira.
Poeta maravilhado e do maravilhamento, poeta deslumbrado e do deslumbramento, poeta sensível e iluminado, poeta intenso, por vezes enigmático, esfíngico, nostálgico sempre. Poeta amante da poesia, da música, das artes plásticas. É amigo, até ao fim, da grande artista Paula Rego. Outra musa. Coleccionador inveterado de arte, de livros, de discos. Vive compungido com a música, sobretudo de Mozart, exulta com Picasso. Poeta da língua, grande exegeta. A língua portuguesa esplende-se e esplende-lhe. Quem o conheceu, via nele a figura e a imagem do poeta. Homem por vezes ensimesmado, recolhido no seu ser. Soberbo conversador: Eugénio Lisboa dizia que a conversa com Alberto de Lacerda melhorava o silêncio. Aliás, Luís Amorim de Sousa, nas várias homenagens que lhe faz, não poupa elogios a essa arte de conversar e a essa festa da palavra no diálogo com Alberto de Lacerda. Da palavra exacta. Da poesia esmerada. Do silêncio.
Numa remota viagem pelo seu lugar de origem escreve um dos poemas mais belos e translúcidos sobre a Ilha de Moçambique, que lhe chama “L`isle joyeuse” no livro “Exílio”: “Ó festa de luz de mar tranquilo”. Aliás, em “A Minha Ilha”, esta mesma Ilha de Moçambique estará na origem dos mais breves e mais intensos versos de sagração da Ilha de que há memória: “Ilha onde os cães não ladram e onde as crianças brincam / No meio da rua como peregrinos / Dum mundo mais aberto e cristalino”. Este e outros versos seus, igualmente lapidares, foram recolhidos na antologia “A Ilha de Moçambique pela Voz dos Poetas”, compilada por mim e pelo António Sopa. Numa ulterior empreitada, “Nunca Mais é Sábado” (título pilhado a Rui Knopfli), antologia que organizei, sobre a poesia moçambicana, iria, igualmente, incluir poemas de Alberto de Lacerda. Para obter o seu consentimento, falei-lhe ao telefone e ele foi extremamente afável nesse único contacto que estabelecemos. Tive pena de nunca o ter encontrado pessoalmente. O Eugénio Lisboa quis muito que eu o conhecesse, mas não calhamos em Londres.
Quando vou a Londres hospedo-me em Battersea. Não raro imagino-o a percorrer as ruas de Chelsea, o seu bairro predilecto, no qual residiu até ao início da década de 70 e que está profusamente cartografado na sua poesia. Mudar-se-ia para 48A Primrose Mansions, na Prince of Wales Drive, que margina o Battersea Park, onde frequento amiúde. Certa noite fui lá em busca da sua memória. Em Julho passado ainda intentei uma visita ao Cemitério de Brompton onde ele está sepultado. Mas o calor impenitente que assolava Londres impediu-me essa romagem poética.
Das suas efemérides literárias destacaria: “Oferenda I” (1984), que inclui “77 Poemas” (1955), “Palácio” (1961), “Exílio” (1963), “Tauromagia” (1981) e “Cor: Azul”. Publicou “Elegias de Londres” (1987), “Meio-Dia” (1988) e “Oferenda II”, que acolhe “Opus 7” e “Mecânica Celeste”, para além de “Átrio” (1997” ou “Horizonte” (2001) ou ainda o póstumo “O Pajem Formidável dos Indícios” (2010).
Foi amigo do poeta brasileiro Manuel Bandeira, a quem visita no Brasil, entre 1959 e 1960, numa prolongada estada, que será preenchida com leituras e palestras. Conhece figuras estelares do modernismo brasileiro. Trava amizade com Oscar Niemeyer, este irá levá-lo a conhecer Brasília, então em fase de construção.
Da sua estada na América avulta a sua passagem por Austin, na Universidade do Texas, onde dá aulas, orienta cursos de Português, Francês e Literatura Comparada. Deixara para trás o trabalho precário de locutor e redactor da BBC. Convive à época com nomes como Octavio Paz, o poeta mexicano que seria laureado com o Nobel em 1990. Em 1969 surgem os seus “Selected Poems” nos Estados Unidos. Visita o México, que lhe inspira “Trinta e Quatro Poemas Mexicanos ou a Genealogia do Tempo”, obra inédita. Organiza um festival de poesia. Dele participam: Jorge Luis Borges, Czeslaw Milosz (outro Nobel, em 1980), Robert Duncan, Louis Zukofsky, David Wevill e Robert Creeley, entre outros.
Em 1972 vai leccionar para a Universidade de Boston. Foi, entre outros, professor de Jhumpa Lahiri, uma grande escritora americana, nascida em Londres, filha de indianos. Reencontra Octavio Paz, trava novas amizades: Jorge Guillén, Roman Jakobson, Elisabeth Bishop, entre tantas outras figuras da literatura americana. Sobretudo os da Costa Leste.
Em 1977 fez uma leitura pública da sua obra na Biblioteca do Congresso, em Washington, e gravou uma selecção de poemas para os arquivos sonoros desta instituição. É provavelmente o único poeta em língua portuguesa que mereceu até hoje esta distinção.
A sua ligação com a Universidade de Boston perdura até à sua aposentação em 1996, ano em que retorna, definitivamente, a Inglaterra. Os últimos livros que publica em vida são “Átrio” (1997) e “Horizonte” (2001).
Era um grande colecionador. Existe uma obra – “Colecção Alberto de Lacerda – Um Olhar”, com textos de Luís Amorim de Sousa, Jhumpa Lahiri, Mário Soares, John McEwen e Alfredo Caldeira. Lacerda, para além de ser grande nome da poesia em língua portuguesa, era um obstinado colecionador de livros, quadros, desenhos, discos, cartazes, fotografias. Em 1987, parte da sua colecção esteve exposta na Gulbenkian, em Lisboa, em “O Mundo de Um Poeta”. No livro “Apesar de Tudo – Em memória de Alberto de Lacerda”, Luís de Sousa Amorim relata os últimos dias e a morte do Poeta, bem como a saga kafkiana que se seguirá para a recuperação do seu vasto espólio. O testemunho de como venceu a burocracia das heranças e os obstáculos que a banca impunha é assombroso. Deve-se-lhe a recuperação do património e do nome de Alberto de Lacerda.
Alberto de Lacerda não terá voltado a visitar Moçambique depois da viagem que antecede o belíssimo livro evocativo “Exílio”. Mas o referencial poético moçambicano está sempre presente. Sobretudo o Norte de Moçambique. Na “Segunda Elegia” das suas belas e pungentes “Elegias de Londres” a infância e os seus territórios desse eterno encantamento estão cartografados de forma ineludível. E noutros versos e noutros poemas.
Rui Knopfli, no luminoso livro “Mangas Verdes com Sal” (1969), num dos seus mais belos poemas, cita-o como um dos seus predecessores: “Que subtraio de Alberto de Lacerda / e pilho em Herberto Helder e que / - quando lá chego e sempre que posso - / furto ao velho Camões.” Hoje é um poeta praticamente deslembrado. Há quatro anos foi publicada uma antologia de sua poesia (“Labareda”), em Portugal, com prefácio e organização de Luís Amorim de Sousa, seu indefectível amigo e legatário. Por sua iniciativa, tinha sido editado o livro póstumo “O Pajem Formidável dos Indícios”. Entre nós, o seu nome sempre escapou à quezilenta discussão da nacionalidade literária. Ainda bem. Nunca os ensimesmados esbirros literários se meteram com ele. Um poeta do seu quilate, um poeta do seu gabarito, não é de todo prescindível. Hoje, 27 de Agosto, passam 15 anos sobre a sua morte. Num remotíssimo breve poema intitulado “Vento” escreveu premonitoriamente: “Que a minha vida fosse para os humanos / como o vento que passa e que se esquece.” Está gravado na pedra do seu túmulo o poema de uma única palavra que também faz a súmula da sua vida e de como viu este mundo: “Paraíso”.
O PR, Filipe Nyusi, denunciou nesta semana uma ligação entre postos de abastecimento de combustíveis e o financiamento ao terrorismo que grassa em Cabo Delgado. Ele insinuou que havia indícios fortes de lavagem de dinheiro. E chamou a atenção das autoridades para a necessidade de se corrigir o problema.
Essa correcção deve ser feita pelo próprio Governo da República, em sentido lato, a dois níveis. O primeiro nível envolve a reversão do quadro legal, que foi relaxado entre 2015 e 2016, abrindo caminho à liberalização extrema da venda a retalho de combustíveis, e permitindo a operação de bombas de gasolina de linha branca, designadamente não vinculadas a qualquer gasolineira que faz importação.
Uma outra dimensão de correcção remete para a acção judicial. É de crer que Filipe Nyusi já tenha entregue as evidências de que dispõe às autoridades de justiça para que se intente uma acção penal contra quem financia o terrorismo e quem faz lavagem de dinheiro.
Da abordagem de Nyusi, subjaz uma percepção. A de que ele tem evidências. Se não tivesse, suas declarações seriam de uma gritante irresponsabilidade.
Mesmo assim, assumindo que ele tem informação cabal, sua responsabilidade era ficar calado, para não alertar os supostos prevaricadores, e deixar espaço para a justiça investigar serenamente. Suas declarações podem prejudicar as investigações, se é que existe uma investigação.
Outro problema é que Nyusi colocou todas as gasolineiras no mesmo saco. Ele não fez uma distinção operacional: a separação entre as bombas de linha branca e as bombas vinculadas às gasolineiras importadoras e distribuidoras (estas maioritariamente arregimentadas na AMEPETROL).
Essa distinção era necessária, sobretudo para o grande público, que desconhece o "big picture" do sector, seus actores relevantes e seu "modus operandi". O discurso do PR criou um certo mal-estar na indústria, tendo sido recebido com um misto de repulsa com um questionamento: E agora?
E agora? Perguntam-se as gasolineiras. Uma interrogação justa, pois nenhum posto de linha branca foi visado individualmente pelo PR, muito menos impedido em sede de contravenção administrativa ou procedimento criminal. Isto significa que as gasolineiras vão continuar a fornecer a todos, não sabendo se elas também estão, por extensão, financiando o terrorismo em Cabo Delgado.
Um peso moral demasiado grave: a possibilidade de minhas (dos distribuidores) operações estarem a financiar indirectanmente o terrorismo.
Seja como for, é percepção geral que nos meandros dos postos de abastecimento de linha branca movimenta-se muito dinheiro, cuja proveniência é duvidosa.
Nos últimos anos, este subsector teve um crescimento drástico, sob o seguinte pano de fundo. Entre 2015 e 2016, o Governo relaxou na regulação. Flexibilizou o mecanismo de fixação de preços, melhorando as margens para distribuidores e retalhistas. O negócio tornou-se altamente atractivo.
E o licenciamento de operadores, designadamente gasolineiras distribuidoras, foi facilitado. Hoje, Moçambique tem cerca de 40 gasolineiras licenciadas (a África do Sul tem apenas oito), embora apenas 15 estejam no activo. Cada uma destas gasolineiras é obrigada, por lei, a ter pelo menos um posto de abastecimento de bandeira.
Mas o Governo abriu também espaço para a entrada no retalho de postos de abastecimento de linha branca, designadamente bombas que não têm qualquer relação umbilical com as gasolineiras distribuidoras.
Hoje, qualquer cidadão pode abrir um posto de linha branca, desde que tenha um vínculo contratual de fornecimento com uma gasolineira. Esse licenciamento da linha branca foi, aliás, descentralizado, não se sabe com que intenções. O efeito foi imediato. As bombas cresceram como cogumelos e o Estado quase perdeu o controlo deste nicho. Requisitos ambientais como a distância de 5 km entre cada posto estão sendo violados, a olhos vistos.
Nas regiões centro e norte do país, a proliferação de postos de linha branca é visível. No corredor Beira/Machipanda existem cerca de 20 postos. A maioria é propriedade de estrangeiros, nomeadamente somalis, tanzanianos e chineses.
De onde vem o financiamento? Ninguém sabe, ninguém exige informação. Talvez o PR saiba! Aliás, ele disse que tinha essa informação e que não estava a fazer acusações sem bases. E exigiu que o MIREME e a Autoridade Tributária garantam a legalidade das operações dos postos de linha branca. Mas, mesmo em face do alerta de Nyusi, ainda não é claro se o licenciamento destes postos vai ser interrompido. "Carta" sabe que há na mesa pedidos de autorização para cerca de 20 novos postos. Afinal quem põe o guizo ao gato? (M.M.)