“Os homens, estáticos, observavam o préstito que avançava. Os corpos das mulheres, besuntados de óleo de rícino, brilhavam, nus, prendendo os olhares dos homens.
Moças de pomos semiesféricos, túrgidos, inclinando os rostos à admiração dos olhos, cerrando as pálpebras sob o véu do pudor; mulheres de meia idade, de corpos tatuados, ventres flácidos e seios semelhando a barbelas de vacas tísicas; velhas de cútis rugosa e pregueada pelo tempo; mulheres gordas e magras, belas e feias, todas expunham o seu físico com uma impudência sem limites.
Agora, lá longe, nas dunas cujos cimos se desenhavam em contornos suaves como que a traços de bistre, a face da lua poisava branca e redonda, vestindo as dançarinas com clâmides de prata que mal lhes velavam os corpos.”
(Aníbal Aleluia, “Mbelele e outros Contos”.)
Em Gaza, num ano de seca severa e de absoluta desolação, em que se adivinha e teme o apocalipse, com o povo a atribuir o infortúnio da falta de chuva à zanga dos “nguluves”, mesmo quando o “nhamussoro” imolava carneiros e bodes ou sacrificava galinhas, a esconjuração revelava-se sempre improficiente. Os homens pegavam nos seus “xitendes” e faziam malas e rumavam para a terra prometida do Jone e as raparigas deixavam para trás os berimbaus, abandonavam as palhotas e iam para Mafalala ou Estrada Nova comerciar o corpo. Os sobas resolveram mandar consultar “Nengueuassuma” (homem de perna de mosquito), o mais famoso “nhamussoro” em toda a região de Gaza e este não foi de tergiversações, mas sim assertivo: “Ide fazer mbelele...”
“Mbelele e Outros Contos”, que narra, de forma exímia, a ocorrência miraculosa da chuva, na sequência do mbelele, naquelas terras assoladas pelo desfortúnio, é um livro que Aníbal Aleluia escreveu em meados dos anos 50, mas só foi publicado em 1987. Estes belos contos estiveram para ser publicados em 1961 por iniciativa do jornalista Joaquim Correia. Contudo, o autor foi preso em Maio desse infausto ano e a sua mulher relacionou aquela detenção com as suas investidas literárias e pediu o livro de volta. O volume iria permanecer inédito longos proverbiais anos.
Aníbal Aleluia era acusado de ter contactos com Kamuzu Banda, do Malawi, era aviltado como “nacionalista africano”, ou visado por estar mancomunado com Baltazar da Costa na revolta do Norte do Zambeze. Tudo inverdades, patranhas, invencionices de quem o odiava, sobretudo os “bufos de Zóbuè”.
A ligação que, eventualmente, se lhe poderia assacar era aos chamados democratas, sobretudo Santa Rita e Soares de Melo, em cujo escritório trabalharia, vínculo que o levaria a colaborar na publicação “Itinerário”. Santa Rita, Soares de Melo, Ricardo Fernandes, Ovídeo Cordeiro ou Almeida Santos encorajam-lhe a escrever e ele fazia-o com denodo: animava-se por um espírito contestatário e incumbia-se da tarefa de falar de uma comunidade sem cidadania e das suas misérias. Debutaria em 1947 e foi decisivo o estímulo de Cassiano Caldas – figura tutelar para a geração da Noémia de Sousa e do José Craveirinha – que lhe pagava 250 escudos naqueles tempos difíceis. A escrita de intervenção era, por conseguinte, o seu apanágio.
Para além do “Itinerário” colaborou em “O Brado Africano”. Curiosamente, fê-lo na mesma época que Carolina Abranches. Aníbal Aleluia tinha uma rubrica mensal, intitulada “De mês a mês”, na qual se debruçava sobre várias personalidades. Um dia quis escrever sobre Noémia de Sousa, de quem ninguém sabia tratar-se, e resolveu pedir ajuda à Carolina Abranches do “Brado Africano”. Ela respondeu-lhe dizendo que conhecia Noémia de Sousa e sabia que era uma pessoa modesta e que talvez ficasse extremamente melindrada ao saber que iria ser objecto de um artigo no jornal. Aleluia redigiria o seu artigo com os materiais de que dispunha e, só mais tarde, descobriria que Carolina Abranches e Noémia de Sousa eram uma mesma pessoa: Carolina Noémia Abranches de Sousa.
A sua vida foi dura e marcada por adversidades. Não só a agrura da prisão, mas os afrontamentos ou ultrajes que teve que suportar. Certa vez redigiu um texto (“Dignificação do Trabalho”) criticando o salário de fome que era pago aos chamados “indígenas” e denunciando o próprio conceito de trabalho entre os nativos. Enviou-o para a publicação na qual colaborava. Não foi publicado. Quem dirigia o jornal mandou-o para o caixote de lixo e com o mesmo título redigiu um outro texto que estava nos antípodas daquele feito por Aleluia e que era um verdadeiro ditirambo às políticas laboral e salarial do regime. Não muito tempo depois o tal cavalheiro seria nomeado conselheiro de uma instituição em Portugal.
No tempo em que Aníbal Aleluia colaborava para o “Itinerário” e/ou “O Brado Africano”, nos anos 50, despontavam alguns dos nomes fundadores da literatura moçambicana. Ele acompanhava discretamente a sua produção, sobretudo a dos poetas: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui Knopfli, Ruy Guerra, Fonseca Amaral ou até Santos Abranches (que teve um papel crucial na época).
Uma pérfida personagem, de seu epíteto Parafuso, que se comprazia em usar o pseudo linguajar negro, que racicamente classificava de “pretoguês”, fazendo, assim, pouco dos pretos, adquirira notoriedade. Aleluia sentir-se-ia vexado por essa personagem e rejeitava, por assim dizer, aquele tipo de narrativa. Noémia de Sousa, também, haveria de falar-me da espécie que lhe causara tal Parafuso e de objectar por completo aquele tipo de linguajar para caracterizar os moçambicanos.
Aníbal Aleluia falava, nos seus artigos, da injustiça social, da discriminação racial, proclamava a necessidade de se dignificarem os moçambicanos, advogando a premência de lhes serem facultados recursos para se desonerarem do sadismo social de que eram vítimas e no qual estavam atolados. Este era o escopo da sua escrita.
Como somos um país que não preza a memória, mas sim faz descaso do passado e do que realmente importa, estes artigos que mereceriam uma edição cuidada e uma atenção crítica dos nossos acadêmicos, não concitaram, até hoje, o entusiasmo indispensável para saírem do sepulcro dos jornais. A despeito, as nossas universidades afadigam-se a arrazoar, com volúpia, sobre questiúnculas e se deleitam com a enxúndia dos dias.
Henrique Aníbal Aleluia nascera a 30 de Agosto de 1921 na Península de Linga-Linga em Inhambane e era oriundo de uma família de antigos construtores de barcos. Carpinteiro, marçano, enfermeiro, professor, solicitador, auxiliar de veterinária, funcionário administrativo, calcorreara o país, sobretudo como enfermeiro, do extremo norte litoral em Palma, em Cabo Delgado, às províncias de Nampula, Tete, Manica, Gaza, Inhambane e Maputo. A sua permanência em Zóbuè foi indubitavelmente marcante. Os seus contos testemunham o seu conhecimento do país.
Teria sido um repto do seu amigo António Caetano Fernandes que o levaria a escrever ficção. Havia quem asseverasse, à época, na “Elo”, que existia um substracto orgânico que incapacitava o nativo de fazer ficção e a recusa de Aníbal Aleluia de a praticar seria então prova bastante. O autor, que vivia no Zóbuè, na zona europeia de inspecção de combate à tripanossomíase, encontrando-se, por essa razão isolado e com tempo que lhe enfastiava, resolveu contraditar aquele anátema.
Houve quem visse, nos seus textos literários, exposição dos segredos que seriam sagrados para os naturais. E houve quem o acusasse de “denegrir a comunidade africana”, o que lhe valeu impropérios, por vezes, violentos. Aleluia procurava tão somente “revelar facetas da vida e dos sentidos dos grupos menos evoluídos da minha terra com os olhos de dentro, fazer uma observação centrífuga da alma da minha gente”.
Guardados na gaveta durante décadas haveriam de ser publicados em finais dos anos 80 quando o autor tinha 67 anos. Talvez por isso, Aníbal Aleluia não se considerasse escritor: “Um homem que se estreia próximo dos 70 não pode ser de esperanças nem de mudanças”.
Recordo-me da sua extraordinária elegância, do seu formalismo, do seu rebuscado vocabulário e da sua retórica enformada, da sua conversa culta e inteligente, do seu asco à indigência e à mediocridade, do seu vasto percurso e do seu pecúlio. Da sua probidade. Da sua solidão. Da sua profunda solidão. Sobretudo recordo-me do facto de ser um homem marcado pela dureza da vida, pela tristeza, pelas provações, pelos tormentos, pelas aflições.
Ainda que fosse corrosivo ou incisivo na crítica e irónico e alegórico nas invectivas, fazia-o com galhardia. Aníbal Aleluia não se furtava a uma boa polémica. Gostava de alegar, de citar, de demonstrar, de pretextar. Denotava uma grande cultura literária. Aliás, quando frequentou a Escola de Professores devorava 10 romances por mês e era lendária a sua avidez pela leitura.
Aníbal Aleluia usou diversos pseudónimos na sua vasta actividade jornalística e literária: Roberto Amado, Augusto António ou Bin Adam. Colaborou, para além do “Itinerário” e “O Brado Africano”, em: “Voz Africana”, “Boletim Médico do Sul do Save”, “Almanaque de Moçambique”, “Elo”, “D´Aquém e D´Além Mar”, “Vértice”, “Notícias”, “Voz de Moçambique”, “Tempo” e “Charrua”. Não será de todo um disparate dizer que ele pertenceu ao movimento da “Charrua” ao lado dos jovens iconoclastas que o promoveram. Um dos seus integrantes, Ungulani Ba Ka Khosa, que um dia disse que esta era a melhor revista do mundo (uma “boutade”, certamente) quando se refere à “Charrua” nomeia, entre os seus constituintes, Aníbal Aleluia.
Aleluia sonhava escrever um ambicioso romance. A ideia central do livro defendia a “tese” de que o nacionalismo (ou o proto-nacionalismo, se se quiser) não nascera no Sul, mas brotara no Centro e Norte do País. Para o autor o berço da resistência não era Gaza, mas sim Angoche, entre o tempo de Mogossurima, no século XVIII até aos tempos de Farelay no limiar do século XX, quando os sultões cótis, de origem quiloana, opuseram o Crescente à Cruz.
A sua contumácia irá render-lhe dissabores também nos anos ulteriores à independência. Tendo uma posição equidistante politicamente, não se comprometendo com o regime, exercendo aliás sobre este um espírito crítico, acerbo muitas vezes, cedo viu os prosélitos e defensores do antigo regime se transfigurarem em revolucionários inequívocos. O que lhe causava urticária.
Era crítico firme das exorbitâncias da revolução, como a operação produção e de outros exageros e desregramentos que se praticavam. Foi contra o banimento da educação moral e via, como consequência, uma sociedade que resvalava para a imoralidade. Repugnava-lhe a lei da chicotada. Indignou-se quando um causídico, em plena Assembleia Popular, defende tal lei e foi ovacionado pelos deputados. Censurava o facto de, na administração pública, a inteligência e a competência se subjugarem aos interesses políticos que, a seu ver, não concorriam para o desenvolvimento equilibrado da sociedade.
Preso no tempo colonial, não faltou quem o quisesse ver proscrito no tempo subsecutivo. “Pertenço à primeira leva – caça grossa para a Pide, reaccionário para a Frelimo”, dizia sem acrimónia, mas profundamente desgostoso. Não praticava nenhum júbilo quanto ao futuro. Muito ácido nas suas análises, não se animava com aquilo que a efervescência política então produzia. Numa entrevista a Michel Laban terminava o seu juízo sublinhando: “Quero com isto significar que considero inquietante o futuro deste país”.
Aníbal Aleluia sentir-se-ia sempre marginalizado, quase sempre omitido. Tivera uma vida vivida sempre com dificuldades, atribulações, agruras. Em Agosto de 1990, quando o entrevistei para o livro “Os Habitantes da Memória”, quis, entre outras coisas, saber se ele, à beira dos 70, escreveria um livro de memórias. Não enjeitava de todo a ideia, contudo realçava o facto de que o seu “testemunho acordaria em algumas pessoas recordações amargas”. Foi quando me disse uma frase que eu nunca mais haveria esquecer: “Tenho um hábito que atrai empatias incómodas”. Usei-a para título.
A 21 de Janeiro de 1993 redigiu o prefácio para a sua novela “O Gajo e os Outros”. Esta é a sua derradeira efeméride literária. Pediu a Calane da Silva que lhe aduzisse um posfácio. A 13 de Maio, regressado de Inhambane, liga a Calane para saber do texto. Combinam um encontro no dia seguinte para que este lhe entregasse o texto. Esse encontro não acontecerá. Henrique Aníbal Aleluia morrera nessa madrugada, 14 de Maio de 1993, passam hoje 30 anos. O livro sairia em edição póstuma no mesmo ano com a chancela da AEMO. Era a obra subsequente a “Mbelele e Outros Contos”. Em 2011 a AEMO publica, postumamente, os seus Contos do Fantástico:
“Na Península de Linga-Linga onde nasci – cunha de palmares encravada entre o Índico, a nascente, e a baía de Inhambane, a poente, seis léguas a Sul do Trópico de Capricórnio , cobrindo perto de quarenta e cinco quilómetros quadrados, com centenas de fogos distribuídos por seis ou sete clãs – conheci um único nhanga, dos de tocar batuque, cantar e dançar.
Deixe a Península, infante, para ir estudar em Inhambane primeiro, seguindo depois para Morrumbene e acabando em Furvela.
Quatro anos depois, voltei à Península onde apenas me detive por ano e meio, aprendiz de carpinteiro barçal (sic) na pequena oficina de meu pai. Depois que parti dali, nunca mais voltei a morar na Península.
Cruzei então esta terra de lés a lés. Pelo litoral, conheço Moçambique do Cais de Maputo ao rio Rovuma (que atravessei). Para o interior atingi as regiões serranas do Alto Tete, pois vivo no Zóbuè. Com esta vida de nómada fui-me empobrecendo cada vez mais materialmente, enquanto enriquecia no conhecimento das nossas microetnias.”
(Aníbal Aleluia, “Contos do Fantástico”.)
Henrique Aníbal Aleluia: aqui o lembro hoje neste breve preito e neste país onde se pratica, com complacência, o esquecimento, a deslembrança e o oblívio. Ou neste tempo de desatenção, indiferença, desrespeito, omissão e descaso.
KaMpfumo, 14 de Maio de 2023
Define-se cidadania como a qualidade de um cidadão com um vínculo jurídico, que traduz a condição de um indivíduo enquanto membro de um Estado, constituindo-o como detentor de direitos e obrigações, perante esse mesmo Estado. A cidadania é exercida através da participação na vida pública e política de uma comunidade, (dicionário infopedia).
Moral define-se como um conjunto de valores, individuais ou colectivos, considerados universalmente como norteadores das relações sociais e da conduta dos homens, (dicionário Oxford).
Impostos são os valores que o Estado cobra, pagos pelo cidadão-contribuinte para custear as despesas desse mesmo Estado, em benefício dos cidadãos. Com a cobrança de impostos, o Estado visa diminuir as desigualdades sociais, sendo a tributação uma das ferramentas para a redistribuição de renda.
Desde que existem as civilizações que os cidadãos contribuem através de impostos, taxas e outras diversas formas para garantir a existência do Estado.
Sem o cumprimento dos cidadãos, nenhum Estado poderá subsistir na sua função, afim de atingir a igualdade de oportunidades no acesso à educação, saúde, segurança pública e territorial, pelo que a cidadania e moralidade fiscais são a base da civilização e do desenvolvimento sustentável.
Soberania define-se como o direito de um Estado ter o domínio e poder sobre si, que não e delegável nem renunciável. Sempre ouvi dizer: “quem paga, escolhe a música”. Se o Orçamento Geral do Estado de Moçambique é neste momento constituído aproximadamente com 40% entre ajuda e dívida externa, é caso para perguntar, como podemos ser soberanos?
Uma certa “moda” impregnada pelas agências multilaterais e ONGs veio branquear a economia ilegal, apelidando-a de paralela ou informal (não confundir com o sector familiar), além de atribuir-lhe a indevida dignidade, fazem acreditar que têm direitos como agentes económicos. Como a maioria dos nossos dirigentes dançam a música de quem paga, acabam massacrando os poucos contribuintes que cumprem com os seus deveres (matando a galinha dos ovos d’ouro).
Imoral e insustentável é tolerar e defender ou considerar como parte da “economia” os sistemas paralelos ou ilegais. Estas são algumas das formas que os países que dominam as instituições supostamente multilaterais encontraram pós-colonização, para perpetuar o empobrecimento dos nossos países em seu benefício.
Mais grave é que usam essas mesmas instituições para acusar o nosso Governo de inconformidades fiduciárias e monetária (lavagem de dinheiro). Como é possível combater o contrabando e a fuga ao fisco, quando 60% da nossa economia é ilegal (informal), patrocinada pelas agências de desenvolvimento e cooperação.
Aceitar este tipo de cooperação é uma violação ao juramento que os nossos dirigentes dos três poderes fizeram, aquando da sua tomada de posse, em “cumprir primeiramente com a Constituição da República e demais leis”, fazendo tudo em sua capacidade para preservar a soberania e servir os cidadãos.
Desmotivante é um contribuinte cumprir com as suas obrigações e verificar que o Estado não lhe respeita nem lhe dignifica, distribuindo parte dos seus contributos para o sector ilegal que causa disrupção económica e social, razão pela qual muitos cidadãos e agentes económicos desistem da actividade formal, optando pelos negócios informais ilegais. Porquê?
Porque é muito confortável ser-se informal, ninguém fiscaliza, não há regras, tão pouco leis, até os agentes do Estado mais corruptos não aparecem. Por outro lado, os cidadãos e empresas formais estão registados, localizáveis, alvo fácil para os sanguessugas que não medem a sua agressão, atropelando todos os valores de servidor público e de cidadania.
Mais grave é que o contribuinte que tenta cumprir com as suas obrigações, pagando os seus impostos e taxas, é convidado por agentes tributários a pagar efectivamente menos (com documentos carimbados com o valor oficial) desde que a diferença seja paga em benefício destes agentes corruptos, para não dizer coisa pior. Precisamos de mudar radicalmente a forma como o Governo gere a política tributária.
Precisamos de uma mudança paradigmática da forma como as instituições tributárias fiscais, aduaneira e sociais lidam com os poucos contribuintes, tratando-lhes como criminosos, devendo estes contribuintes estarem constantemente a provar a sua inocência. Mais de 75% das inspecções do sistema tributário visam ameaçar os visados, para alimentar a cadeia de corrupção de cima para baixo, uma cópia ampliadíssima da polícia trânsito.
Se as instituições de anti-corrupção não vêem estes crimes devem fechar as portas, porque estes bandidos não são discretos, nem modestos, actuam com maior descaramento. Para reduzir a corrupção no sistema tributário e aduaneiro, adopte-se modelos digitais de pagamento, de verificação e de inspecções, como acontece no resto do mundo.
Contrate-se empresas privadas para fiscalizar os sistemas contributivos, com benefícios recíprocos sobre a receita adicional. Não pode haver país soberano sem sustentabilidade fiscal, aduaneiro e social. Mais grave ainda é que as vítimas da corrupção tributária (empresas contribuintes) são também vítimas das dívidas, que o Estado não paga às empresas. O Estado é o maior devedor da praça.
Quando o Estado mata as empresas, está a suicidar-se a médio prazo, porque está a destruir a “machamba” que lhe alimenta e que garante a criação de postos de trabalho, estabilidade social e desenvolvimento sustentável. Falamos muito de direitos fundamentais, democracia, eleições, mandatos, para quê?
Se não tivermos cidadãos e soberania, deixamos de existir!
Indivíduos qualificados fiscalmente que não cumprem o seu dever deveriam ter os seus direitos suspensos. Se não contribui para o sistema tributário de forma proporcional não é cidadão! Os agentes tributários corruptos deveriam ser julgados e castigados severamente, como traidores à Pátria.
Nenhuma instituição, incluindo as multinacionais e ONG’s, ou indivíduo deveriam estar isentos da contribuição fiscal proporcional, enquanto o Estado não tiver contas públicas sustentáveis.
Os nossos líderes têm de separar o “trigo do joio” não se deixarem entreter com “faits divers” ou seja, factos diversos, sobre hipotética democracia e direitos fundamentais, quando na verdade os cidadãos supostamente beneficiários quase não existem.
A Luta continua!
Amade Camal
O dia 5 de Maio foi oficializado em 2009, com o propósito de promover o sentido de comunidade e de pluralismo dos falantes do português na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Desde então, esta data celebra este idioma como parte da identidade de todos estes países e povos. Num dia comemorativo tão especial como o de hoje, gostaria de fazer uma menção especial a dois feitos extremamente marcantes.
O primeiro, de efeito extraordinário, é o da premiação da escritora moçambicana Paulina Chiziane, a vencedora do Prémio Camões 2021, escolha unânime anunciada no dia 20 de Outubro de 2021 e que só hoje, dia 5 de Maio de 2023, finalmente, chegou às mãos da legítima dona. Este prémio reconhece a vasta produção e recepção crítica da Paulina Chiziane, como também o reconhecimento académico e institucional da sua obra, sobretudo a importância que dedica nos seus livros aos problemas da mulher moçambicana e africana.
Esta escritora, a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, tem desenvolvido uma relação muito próxima com a UP-Maputo, a quem já atribuímos, num passado muito recente, um título Honoris Causa e que tem tido presença regular nos eventos científicos e culturais organizados pela nossa universidade. A Paulina Chiziane escreve em português, língua que aprendeu a falar na escola de uma missão católica como muitos outros moçambicanos da sua geração o faziam pela primeira vez. Ela é, indubitavelmente, a prova viva de que, mesmo sendo de origem humilde e sem nenhum arcaboiço linguístico de berço, é possível fazer grandes coisas e chegar a tão destacado reconhecimento no espaço lusófono global. Hoje celebramos, mais uma vez, este feito que projecta e faz brilhar todo o nosso país e o nosso povo na arena internacional.
O segundo feito, não menos importante e também de efeito extraordinário, é o da Ludmila Bata, estudante do 2° ano do curso de Jornalismo, ministrado pela Faculdade de Ciências da Linguagem, Comunicação e Artes (FCLCA) da UP-Maputo, que foi declarada vencedora do Prémio Eloquência Camões do ano 2023. Esta vitória tem um sabor especial para a UP-Maputo, especialmente se se tomar em consideração que a Ludmila Bata, nossa estudante, destacou-se num universo extremamente competitivo de 49 estudantes pertencentes a 6 universidades nacionais. É importante frisar que o Prémio Eloquência Camões, organizado, em parceria, pelo Camões – Centro Cultural Português em Maputo e pelo Camões – Centro de Língua Portuguesa em Maputo, pretende ser uma alavanca institucional para a descoberta de novos talentos na redacção e na oralidade em língua portuguesa.
A Ludmila Bata demonstrou, com a sua vitória, que é possível fazer história, ainda em tenra idade e sendo também mulher, como a Paulina Chiziane. Num dia especial como o de hoje celebramos, também, este feito que projecta e faz brilhar os nossos estudantes e a nossa comunidade universitária na arena nacional.
Destacar estes feitos, num dia que exaltamos a língua portuguesa, como nosso património cultural e histórico, faz a nossa celebração mais especial e simbólica. Aliás, tornou-se uma tradição – uma boa tradição, diga-se! – que nos juntemos na UP-Maputo, no dia 5 de Maio de cada ano, para comemorar o dia Mundial da Língua Portuguesa e, igualmente, para celebrara amizade entre os povos que partilham esta língua.
A língua portuguesa é uma das mais ricas e influentes línguas do mundo e, como Reitor desta universidade, tenho orgulho em fazer parte de uma comunidade académica que valoriza e celebra a sua riqueza e diversidade. Nestas salas e corredores revisitamos a língua portuguesa como factor de unidade nacional.
A língua portuguesa é uma língua viva, dinâmica e em premente transformação, falada por mais de 265 milhões de pessoas em todo o mundo. É a língua oficial de 9 (nove) países e de organizações como a CPLP, a SADC, a União Europeia, o Mercosul e a Organização dos Estados Ibero-americanos.
Mas, a língua portuguesa é muito mais do que uma língua falada ou escrita. É um património cultural e histórico que representa a rica herança e a diversidade das sociedades e culturas que a falam, cantam, dançam, escrevem e declamam poesia. Na essência, em português se comunicam. É, por isso, necessário que olhemos para a língua portuguesa sem preconceitos. Que assumamos esta língua como nossa! Nenhum angolano, cabo-verdiano, português ou brasileiro fala a língua portuguesa como nós. O nosso português moçambicano é único. Nós, moçambicanos, soubemos tornar o português numa língua melodiosa, poética e sensual. Neste momento, a língua portuguesa não pode ser mais vista como a língua do outro. O outro não consegue falar um português tão belo como o nosso!
Neste simpósio, debatemos a especificidade do Português de Moçambique na diversidade da língua portuguesa. Temos, hoje, a oportunidade de conhecer melhor a língua em que nos comunicamos diariamente e de compreender o contributo de Moçambique para a afirmação da língua portuguesa no Mundo, mas, não menos importante, temos também uma oportunidade para perceber de que modo o Português de Moçambique pode contribuir para o nosso desenvolvimento individual e colectivo.
O punho cerrado de Hugh Masekela enquanto cantava “Bring Him Back Home” (Nelson Mandela), num memorável espectáculo, em Harare, no Zimbabwe, a 14 de Fevereiro de 1987 – eu estava à beira dos 20 anos! –, povoa, de forma vívida, a minha memória, necessariamente nostálgica daquele tempo. O som pungente do seu trompete ainda esplende dento de mim e acorda nas minhas entranhas os deuses africanos. Passaram-se quase quatro décadas e eu me lembro daquele momento exuberantemente singular. As imagens aparecem esbatidas numa vetusta TVE, predecessora da TVM: Paul Simon apresentava “Graceland” e estava acompanhado de magos sul-africanos no Rufaro Stadium. Para quem não viveu os duros e exaltantes tempos em que enfrentámos o apartheid tudo isto não tem a mesma carga simbólica e até pode parecer uma frivolidade.
Miriam Makeba cantou “Soweto Blues”, a música que Hugh Masekela fizera para ela. Cantaria também “Under African Skies” ou “N´kosi Sikeleli Africa” (com todos). “Soweto Blues” foi a primeira música de Masekela que eu conheci, ainda nos tempos em que vivia na mítica Nacala, nos anos 70, na voz de Makeba. Hugh cantou “Bring Him Back Home” (Nelson Mandela) e “Stimela”, com aquela sua força telúrica. Ele era uma brutal força da natureza. Ray Phiri, outro deus morto, estava na viola solo. Estão os três mortos na planície. Como estão outros. Os deuses da minha adolescência lírica, feita de versos, canções, sonhos e futuros.
Hugh Masekela impressionou-me ali para sempre. Estava na companhia dos seguintes músicos sul-africanos: Ladysmith Black Mambazo, comandados pelo carismático Joseph Shabalala, outro deus estirado na planície. Estavam ainda: John Selowane na guitarra, Bakithi Khumalo no baixo, Barney Rachabane no saxofone, entre outros, para além Nomsa Caluza e Sonti Mndebele, que faziam os coros. As duas grandes figuras, para além de Paul Simon, naquele palco e naquela tarde, foram, indubitavelmente, Miriam Makeba e Hugh Masekela.
Os dois eram, à época, expoentes da música sul-africana e activistas intrépidos na luta contra o apartheid. O seu apoio ao projecto de Paul Simon, que desagradou a cúpula do ANC, foi importante. Deles e de Ray Phiri e todos outros. Aquilo que fizeram como contributo na luta pela erradicação do regime do apartheid está por reconhecer. No meu entender, foi um contributo decisivo. Romperam barreiras, deram visibilidade a uma luta, foram a extensão da voz de Nelson Mandela, que estava encarcerado.
A importância de ambos não se pode aurir no facto de terem estado naquele palco, naquele dia e naquela tarde. Mas ali se pode dizer da poderosa metáfora daquela luta e de todas as vezes e de todos os palcos.
Há uma fotografia celebérrima de Peter Magubane, um deus sul-africano, hoje nonagenário, que mostra um punho cerrado. Foi a grande alegoria da luta. Não sei se naquele plano e naquele momento, Hugh Masekeka fazia o paralelo com essa imagem poderosíssima do mítico fotógrafo, outro combatente contra o apartheid, mas a sua voz poderosa, o seu trompete singularíssimo e aquele seu gesto enfático, mesmo depois de estes anos todos, ainda me deixam exultado.
Masekela usava ainda o cabelo grande e tinha, como sempre teve, aqueles olhos impressivos e esbugalhados. Tinha, à época, 48 anos, contava quase 30 anos de exílio, combatia intransigentemente nos palcos do mundo. Vê-lo cantar “Stimela”, com aquela força da natureza, com aquela energia, fez dele um dos músicos sul-africanos que eu haveria de cultuar para sempre. Eu nunca vira algo igual. Era extraordinário. Era libertador. Era exultante. Era poderoso. Era vigoroso. Era potente. Era veemente.
Aquele espectáculo de Paul Simon foi um marco na minha vida. Aquele disco de Paul Simon foi um acontecimento para mim. Para aqueles que sonhavam com a liberdade dos sul-africanos. Para aquele que pugnavam por uma África do Sul igual para todos. Decerto, aquele momento prenunciava um novo tempo e estava inscrito nele a esperança do porvir. Nós vivíamos na ânsia de ver Nelson Mandela liberto e “Graceland” e a incursão de Simon pela música sul-africana e com os músicos sul-africanos parecia um sinal inequívoco de que algo iria acontecer. Algo estava para acontecer. Isso só viria a suceder nos primórdios da década ulterior.
Oiço agora, como sempre, Hugh Masekela cantar: “There is a train comes from Namibia and Malawi/ there is a train that comes from Zambia and Zimbabwe. / There is a train that comes from Angola and Mozambique. / From Lesotho, from Botswana, from Swaziland. / From all the hinterland of Southern and Central Africa. / This train carries young and old, African men/ Who are conscripted to come and work on contract/ in the golden mineral mines of Johannesburg/ And its surrounding metropolis, sixteen hours or more a day / For almost no pay. / Deep, deep, deep down in the belly of the earth”. Deep! Deep! Deep!
A letra e a música têm uma força e a interpretação de Hugh Masekela é inesquecível. As várias interpretações, digo. Há pouco vi uma que ele fez em Lugano. Mas há várias nos vários palcos do mundo. Ele cantou esta música não sei quantas vezes, e sempre com uma energia, um alento, um dinamismo e um arrojo. Cantou-a, por assim dizer, até ao fim. A sua fibra, a sua vivacidade, a sua força moral, intelectual e política.
Era a música da sua causa maior: a luta contra a injustiça. Para além de a cantar, era seu hábito fazer um discurso sobre os explorados, sobre os espoliados, sobre os oprimidos, sobre a liberdade, o valor da liberdade, sobre os mártires, sobre os que tinham morrido nas minas ou na luta. O seu trompete vibrava em nós. Continua a vibrar em nós.
Vi-o cantar, mais tarde, em diversos lugares. Vi-o em Maputo, vi-o na Cidade do Cabo e em Joanesburgo. A última vez que o vi tocar e cantar foi no Kippies – assim se chama o palco em homenagem a Kippie Moeketsi no festival de jazz da Cidade do Cabo -, com a sala completamente cheia a cantar e a dançar numa explosão de alegria que não sei descrever. Masekela fazia uma extraordinária homenagem a Miriam Makeba, sua companheira de vida e de luta. Mas vi-o sobretudo naquele 14 de Fevereiro na minha vetusta TVE. Continuo a vê-lo nos meus dias. Continuo a ouvi-lo por estes dias aziagos. Continuo a encontrar nele o alento e o estímulo. A esperança. O tónico para estes dias ominosos. O lenitivo de que preciso.
Hoje, de 23 de Janeiro, passam 5 anos sobre a sua morte e volto a ouvi-lo. Oiço obsessivamente “Stimela”: a sua força, a telúrica força desta música, da sua música, que releva da fusão de vários ritmos, sobretudo da música dominante das townships da África do Sul, como mbhaqanga, marabi, jit e kwela, numa alquimia com o jazz, voltam à minha memória e vibram.
Ontem, por alguma razão que não sei explicar, pus-me a ouvir Brenda Fassie e a ver as imagens de Nelson Mandela e do seu milagre da nação arco-íris. Começara, por algum sortilégio, por rever as imagens lancinantes dos funerais de Samora, que são o ocaso de uma época e que se inscrevem nesta mitologia da libertação dos sul-africanos. Hoje retorno a Harare, a Hugh Masekela, a Miriam Makeba, a Joseph Shabalala e os seus companheiros, a Ray Phiri, a Paul Simon. Oiço, de novo, “Stimela”.
No alinhamento daquele memorável espectáculo: “Township Jive”, “The Boy in the Bubble”, “Gumboots”, “Whispering Bells”, “Bring Him Back Home”, “Crazy Love”, “I Know What I Know”, “Jinkel e Maweni”, “Soweto Blues”, “Under African Skies”, “Unomathemba”, “Hello My Baby”, “Homeless”, “Graceland”, “You Can Call Me Al”, “Stimela”, “Diamonds On The Soles of Her shoes”, “N´Kosi Sikeleli Africa” e “King of Kings”. Ali não se celebrava apenas o futuro inequívoco da África do Sul. Ali celebrava-se um tempo, que nos era comum e solidário, um tempo de uma história comum, de uma luta colectiva, de ideários partilhados, de sacrifícios que tínhamos consentido e compartilhado, de um destino igualmente comum e inexpugnável.
Hoje tudo isso está perdido. Quando me volto para estes tempos e oiço estes músicos libertários, quando me empolgo com estes hinos emancipatórios, quando exulto com estas vozes e estes ritmos vibrantes, falo de uma época, falo de um contexto, falo de uma História. Hoje estamos nos antípodas dessa História, desse contexto e dessa época. Hoje é difícil explicar o punho cerrado de Hugh Masekela, o seu poder simbólico e encantatório, a sua força mobilizadora e empolgante. Hoje é difícil explicar que descíamos às praças para que Nelson Mandela fosse livre e que a África do Sul não fosse o lugar da segregação racial. Hoje é difícil explicar que a luta dos sul-africanos era a nossa luta e que hipotecamos muito do nosso futuro quando nos engajamos – eis um termo do vocabulário da época – nessa luta.
Oiço “Sitmela”, oiço sobretudo o disco “Hope” (1994), com o seu vigor metafórico indesmentível, oiço Hugh Masekela, a sua voz robusta e a pujança do seu trompete e não temo em assumir-me como um nostálgico de um tempo em que havia grandeza nos propósitos, havia ideários, havia lideranças e um futuro por cumprir. Havia lutas por fazer. É isso, não tenho pejo em dizê-lo, que o punho cerrado e a voz potente de Hugh Masekela, enquanto canta “Bring Him Back Home” (Nelson Mandela), ainda hoje acordam em mim.
A LUTA CONTINUA!
KaMpfumo, 23 de Janeiro de 2023
Patrício Langa[1] e Jorge Ferrão[2]
O Laissez-faire é um termo da língua francesa que simboliza o liberalismo económico. Na acepção mais radical do capitalismo, o neoliberalismo, o mercado funciona livremente sem ingerência do Estado. O papel do Governo, em representação do Estado, é mínimo. O Governo estabelece o quadro legal, normativo e regulatório suficiente para proteger os direitos de propriedade privada. O princípio da mão invisível, termo cunhado pelo economista clássico Adam Smith, determina a auto-regulação do mercado criando as condições de possibilidade para a troca livre de bens e serviços. A recente história social e económica, em particular depois das crises económicas de 2007 e 2008, seguida da intervenção reguladora dos governos, veio mostrar tanto a ilusão da perfeição da invisibilidade da mão do mercado (laissez faire) como a imperfeição da excessiva regulação do Estado.
A expressão laissez faire, mais conhecida e usada do que outras quase sinónimas como laissez aller, laissez passer, significam literal e respectivamente “deixar fazer”, “deixar ir”, “deixar passar”. A subida ao poder de Margaret Thatcher (a dama de ferro), como Primeira-Ministra da Inglaterra, em 1979, em representação do Partido Conservador, e de Ronald Reagan como Presidente dos Estados Unidos da América, em 1980, em representação do Partido Republicano, dois promotores da ideologia neoliberal do mercado livre e da mão invisível, popularizou os programas de reformas macroeconómicas e financeiras com vista a promoção da privatização de bens e serviços públicos sociais como a educação, a saúde e até a defesa.
Em Moçambique, as reformas macroeconómicas foram precedidas de reformas políticas profundas com a aprovação de uma nova Constituição da República, em 1990. Com a morte de Samora Machel, foi a enterrar também o utópico projecto do experimento socialista de sociedade que abordamos no decénio anterior. O que alguns dos nossos pensadores, como Severino Ngoenha e José Castiano, referem como a Segunda República, nasce no regulado do segundo Presidente de Moçambique, Joaquim Alberto Chissano. Cognominado o pai do ‘deixa-andar’, ou ‘deixa-fazer’, Chissano e seu Governo representam, simbolicamente, o período do laissez faire da história política, social e económica do país.
O laissez faire no ensino superior
A reforma económica e financeira conhecida como Programa de Reabilitação Económica (PRE) e Social (PRES), ainda que iniciados após a negociada adesão do país ao financiamento e disciplinarização fiscal pelas instituições de Bretton Woods, Banco Mundial (BM) e Fundo Monetário Internacional (FMI), em meados de 1980, ganharam corpo após os acordos de paz que puseram fim à Guerra Civil dos 16 anos entre o Governo da FRELIMO e a RENAMO, em 1992, e a realização das primeiras eleições gerais multipartidárias, em 1994.
No ensino superior, a implementação da primeira Lei 1/93 veio abrir espaço para o surgimento das primeiras iniciativas de provisão da educação superior por entidades não públicas. Assim, podemos falar de diferentes fases, estágios, ondas, ou até gerações de instituições de ensino superior (IES) em Moçambique.
A origem das primeiras IES privadas
A primeira geração de IES, como referimos, gerou apenas uma instituição, os Estudos Gerais e Universitários de Moçambique – EGUM (1962), ainda durante o período colonial, mais tarde elevada ao estatuto de universidade e renomeada Universidade de Lourenço Marques (ULM) em 1968. Após a independência do país, a ULM foi transformada em Universidade Eduardo Mondlane (UEM) em 1976. A segunda geração de IES surge apenas nos anos de 1985 e de 1986, com a criação respectivamente do Instituto Superior Pedagógico (1985), actual Universidade Pedagógica, e o Instituto Superior de Relações Internacionais (1986), actual Universidade Joaquim Chissano. A terceira geração introduz, pela primeira vez, instituições de ensino superior privadas. Este texto aborda as IES até a terceira geração, sendo que as subsequentes irão ser abordadas nos próximos decénios. As primeiras entidades particulares a criarem IES privadas incluem aquelas de natureza secular empresarial e as de natureza religiosa, todas se propondo a prestar serviço público.
A actual Universidade Politécnica (A Politécnica) foi a primeira instituição de ensino superior privada e secular a entrar em funcionamento em Moçambique. Inicialmente designada Instituto Superior Politécnico e Universitário (ISPU), foi criada através do Decreto n.º 44/95, de 13 de Setembro. No entanto, o início do seu funcionamento deu-se apenas no ano académico de 1996/97 quando foi autorizada através da Resolução n.º 16/96, de 6 de Agosto.
No mesmo período, a SOPREL – Sociedade Promotora de Ensino e Serviços Limitada – fundou o Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique (ISCTEM), aprovado pelo Decreto n.º 46/96, de 5 de Novembro. O Instituto Superior de Transportes e Comunicações (ISUTC) foi instituído pela Transcom, Sociedade Anônima. A sua criação foi aprovada pelo Decreto n.º 32/99, de 1 de Junho de 1999, e a autorização de entrada em funcionamento pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33/99, de 1 de Novembro de 1999. Iniciou com as Licenciaturas no ano lectivo 2000-01, precedido de um Semestre Zero no início de 2000. Estas são as primeiras IES privadas que surgiram no país, particularmente tendo promotores de cariz privado-empresarial.
As primeiras IES de cariz religioso
A Igreja Católica de Moçambique, detentora de um património de infra-estruturas sociais considerável, parte da qual nacionalizada a 24 de Julho de 1976, negociou a recuperação do seu património que reverteu a favor do estabelecimento da Universidade Católica de Moçambique (UCM), em 1995, na província de Sofala. Este marco teve um significado simbólico assinalável, pelo facto de a UCM ter levado o ensino superior privado para fora da capital do país pela primeira vez na história, especialmente através de uma entidade privada.
Consta que a ideia de criação da UCM surgiu com Dom Jaime Pedro Gonçalves, Arcebispo da Beira. Dom Jaime e outros membros distintos da Cidade da Beira, tal como o antigo governador de Sofala, Francisco de Assis Masquil, propuseram a criação de uma universidade com enfoque nas questões da promoção da paz e reconciliação nacional.
Assim, a UCM foi fundada oficialmente em 1995 como uma instituição de ensino superior privada através do Decreto n.º 43/95, de 14 de Setembro. A UCM, portanto, é uma instituição da Conferência Episcopal de Moçambique (CEM), com sede na cidade da Beira, província de Sofala. A UCM, assim como as demais IES, depois se expandiu através de delegações provinciais. Em Agosto de 1996, a UCM abriu uma Faculdade de Economia e Gestão (FEG), na Beira, e uma Faculdade de Direito (FADIR), em Nampula. Subsequentemente, criou a Faculdade de Ciências de Educação, actualmente Faculdade de Educação e Comunicação (FEC) em Nampula (1998), a Faculdade de Agricultura (FAGRI) em Cuamba (1999), a Faculdade de Medicina, actualmente Faculdade de Ciências de Saúde (FCS), na Beira (2000), a Faculdade de Gestão de Turismo e Informática (FGTI) em Pemba (2002), o Centro de Ensino à Distância na Beira (2003) e a Faculdade de Engenharia (FENG), a mais recente, em Chimoio, no ano de 2009. A UCM abriu, ainda, três delegações: uma em Tete (2008), outra em Quelimane (2009) e a terceira, de Informática, na Beira (2010).
No Decénio 1993-2003, juntaram-se à família das IES também a Universidade Mussa Bin-Bique (UMB) fundada em 1998. Se as autoridades eclesiásticas cristãs viram na criação da UCM a materialização da ideia de inclusão e expansão do ensino superior para além da capital do país, as autoridades islâmicas, predominantemente no Norte do país, juntaram-se ao movimento criando a Universidade Mussa Bin Bique, abreviadamente designada por UMB. A UMB estabeleceu-se como uma instituição privada de ensino superior criada pelo Centro de Formação Islâmica, ao abrigo do Decreto n.º 13/98, de 17 de Março, tendo a sua sede na cidade de Nampula.
O primeiro passo estava dado para o início da expansão do ensino superior privado no país. O contexto regulatório do laissez-faire permitia que, com algum esforço, se pudesse criar uma IES. No entanto, ainda havia alguma timidez por parte das entidades promotoras, mas este cenário prevaleceu apenas no decénio em análise.
Neste sentido, podemos falar tanto de uma primeira geração de IES privadas seguida de novas fases onde a pujança para a criação de outras aumentou, como também das exigências, em termos de requisitos, à medida que as alegações de baixa qualidade entravam para a ordem do discurso.
Com o surgimento das IES privadas, o subsistema do ensino superior começou um processo de diversificação e de diferenciação. Destaca-se aqui a diversificação das ofertas de cursos e programas e a diferenciação em termos do tipo de IES, não somente entre públicas e privadas mas também de carácter, estas últimas promovidas por entidades religiosas e por sociedades empresariais. Timidamente, começou a surgir o debate sobre a intenção lucrativa ou não-lucrativa das entidades promotoras, dado que se percebia que, nalguns casos, o investimento para a criação das IES não permitia o provimento de condições mínimas para as actividades do ensino superior.
Com efeito, parte significativa da informação sobre as IES neste texto foi obtida com recurso às suas páginas da Internet (vulgo website). É notório como algumas IES com mais de 20 anos de existência, algumas oferecendo formações até ao nível do doutoramento e outras, inclusivamente, em áreas relacionadas com a informática, não dispõem de uma página web funcional, para falar do mínimo. A facilidade de se criar uma IES levou a alguma banalização do ensino superior, sem deixar de referir que nas IES públicas também surgia e se consolidava a expansão por via da abertura de delegações e da abertura do regime pós-laboral. As consequências da expansão desenfreada com um pendor para a comodificação, comoditização e tratamento da educação como um produto comercializável serão escrutinadas nos próximos textos desta série.
O relatório da comissão Comiche
O relatório da Comissão Comiche da revisão do ensino superior em Moçambique deve ser um dos documentos mais referenciados, mas pouco difundido ou até mesmo indisponível ao público. Um de nós já entrevistou vários actores-chave e personalidades que fizeram parte dos trabalhos da comissão e que o citam como um documento fundamental para entender a reforma do ensino superior, particularmente no decénio após a virada do milénio. No entanto, ninguém tem o documento disponível.
Entre 1997/8, a comissão foi constituída e encarregada pelo Presidente Joaquim Chissano para repensar o ensino superior e o papel dos diferentes actores públicos e privados face ao crescente discurso e a preocupação com a necessidade da expansão sem comprometer a qualidade.
Consta que é das recomendações da Comissão que o novo Governo saído das eleições gerais de 1999 fundamentou a criação do primeiro Ministério para a Coordenação do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia (MESCT), cuja pasta foi assumida pela académica Lídia Brito, saída da Vice-Reitoria da UEM. Foi sob tutela do MESCT que se preparou o primeiro Plano Estratégico do Ensino Superior 2000-2010, no qual os pressupostos da expansão, diversificação e diferenciação, bem como dos mecanismos de garantia de qualidade, foram lançados.
O trabalho da criação de um quadro legislativo, normativo e de regulação, traduzido num plano estratégico e operacional de desenvolvimento do sector, conduziu a necessidade de revisão da primeira Lei do Ensino Superior 1/93, de 24 de Junho, e a aprovação de uma nova Lei, a 5/2003, de 21 de Janeiro. Os instrumentos regulatórios da nova lei abriram espaço para o surgimento da terceira geração de IES e uma nova onda de expansão, diversificação e diferenciação do sistema que iremos abordar no decénio 2003-2013.
(Continua*)
[1] Sociólogo, Professor de Estudos de Ensino Superior
[2] Reitor da Universidade Pedagógica de Moçambique