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O antigo juiz-conselheiro do Tribunal Constitucional, Teodato Hunguana, insurge-se contra o legalismo eleitoral, que remete para os tribunais a aferição do sufrágio universal, e sai em defesa de Samora Machel Júnior e de Mulweli Rebelo contra os seus detratores internos na Frelimo. Num texto escrito no quadro do actual contexto de crise eleitoral em Moçambique, e partilhado com “Carta”, Hunguana abre aquele que deverá ser, a nosso ver, o debate central nos próximos temos em matéria de gestão eleitoral: como reverter a actual judicializacão do voto e devolver a sua soberania perdida (a soberania do voto)? 

 

Eis o texto integral:

 

As eleições autárquicas, cujo desfecho definitivo só irá acontecer com as decisões do Conselho Constitucional, e enquanto não acontece, vão dando espaço, não só para o que é mais visível, que são as manifestações de repúdio ou de celebração, de uns e de outros, como de revelações sobre como elas foram realmente organizadas e decorreram, e também de ulteriores desenvolvimentos que vêm ocorrendo á volta e por causa das mesmas. Tudo isso abre, amplia e alimenta, o espaço para análises e comentários nas redes sociais, nos órgãos de comunicação social, públicos e privados, e em conversas a todos os níveis. Pode-se afirmar, sem grande margem de erro, que este é o assunto dominante da vida nacional, desde a família, célula base da sociedade, até ao espaço público mais amplo, de forma contínua e ininterrupta, desde o dia 11 de Outubro.

 

Por isso, quer se queira quer não, este é um assunto que não precisamos de o procurar, porque ele vem a nós, nos persegue, nos entra em casa, nos inquieta, interpela e questiona, não deixa ninguém indiferente. Obriga a preocuparmo-nos, a reflectir seriamente. Tanto que não é lícito presumir que o silêncio de quem quer que seja, só possa ter um significado, qual seja…de assentimento, concordância ou cumplicidade. Esse não é o único significado, longe disso. E não é por várias razões objectivas, já devidamente identificadas por quem se esforçou por analisar as razões de um silêncio que é institucional e organizado como componente essencial de um sistema de poder. A partir de certos partidos, que não careço de nomear, e, depois, na sociedade e no Estado. Portanto, além das vozes em silêncio, de que se tem falado, temos vozes silenciadas, inúmeras, e para ouvir estas vozes basta ter ouvidos de ouvir e curar em ouvi-las. Mas deixemos este intróito sobre o silêncio e vamos adiante ao que interessa, até porque, no que me diz respeito, trata-se, uma vez mais, de romper esse silêncio. Então vejamos:

 

Não obstante as questões que envolvem este processo eleitoral, e o tornam problemático, não sejam de todo novas, por causa das mesmas, vemo-nos de repente na emergência de um momento decisivo e de grande perigo sobre o nosso futuro colectivo, sobre o destino do nosso País, na pendência de decisão sobre essas questões.

 

Não pretendo abordar aqui as questões de ordem estritamente constitucional ou legal, de foro criminal, meramente policial, organizacional ou procedimental. Importantes que são, essas questões têm merecido muita atenção, abordagem e discussão, e esperemos que do Conselho Constitucional nos venha finalmente a mais elevada e profunda consideração, ponderação e decisão sobre as mesmas. E não apenas de um ponto de vista estritamente legal ou legalista, como veremos adiante.

 

O que pretendo aqui reter, e relevar, é a abordagem de um ponto de vista e de um ângulo que, salvo poucas excepções, não tem sido privilegiado, sendo no entanto, a meu ver, o que é de maior relevância, visto que deve preceder todo o processo, deve acompanhá-lo em todo o decurso, e deve ser preponderante e determinante em todas as decisões que se tomem, até ao seu desfecho. Refiro-me ao fundamental ponto de vista ético e moral.

 

Deste ponto de vista, quero reportar-me em primeiro lugar ao Comunicado da CEM, pela inquestionável respeitabilidade e credibilidade dessa instituição na sociedade moçambicana.

 

Antes de mais a Igreja Católica não se limitou ao papel de simples espectador do desenrolar do processo. Tal como em eleições anteriores, como faz questão de nos lembrar, a Igreja Católica fez parte do grupo de observadores eleitorais da Comissão de Justiça e Paz, que, por sua vez integra o Consórcio Eleitoral «Mais Integridade».

 

E é nessa condição que o Comunicado da CEM, além dos «ilícitos e irregularidades eleitorais, uns mais graves que outros, aqueles reportados oficiosamente e difundidos pelos Mídias sociais, e outros reportados pontualmente pelos observadores eleitorais», nesse contexto, acolheu relatos essencialmente sobre o seguinte:

 

- destruição de materiais de campanha, confrontos violentos, pessoas presas injustamente;

 

- actuação questionável dos que deveriam garantir a ordem e segurança das pessoas;

 

- diversidades de irregularidades na votação, contagem e justeza dos resultados pronunciados;

 

Neste cenário, constata, com muita preocupação, o crescimento dos níveis de incompreensão e de expressões de descontentamento no povo, sobretudo dos que se sentem trapaceados.

 

Face a esta situação, os Bispos Católicos de Moçambique fazem um veemente apelo «a todos os homens e mulheres de boa vontade para manter a PAZ, como valor supremo da nossa convivência e cidadania”, o que deve, segundo eles, compreender necessariamente:

 

1-Diálogo entre o Governo, os órgãos de gestão eleitoral, os Partidos políticos, a sociedade civil, o Conselho Constitucional, o Conselho de Estado;

 

2- Reposição da legalidade, sabendo que não há legalidade sem verdade, fazendo com que a força da lei seja a que dirima e ajude a superar toda a possível manipulação de resultados ou fraude eleitoral;

 

3-Busca da justiça, que é o maior caminho para a paz e para a convivência saudável e fraterna de todos os moçambicanos;

 

4-Respeito da razão e da ética para que se evite por todos os meios qualquer possibilidade de derramamento de sangue entre irmãos;

 

5- Oração, uns pelos outros, que nos une como criaturas do mesmo Deus nas diferentes religiões existentes no país;

6- Aos órgãos eleitorais, a reverem com responsabilidade e justiça todo o processo de apuramento dos resultados, garantindo que os resultados sejam o reflexo verdadeiro dos votos depositados nas urnas, e, portanto, da vontade do povo;

 

7- Às lideranças do partido beneficiário desta crise eleitoral que chamem à razão os seus membros e simpatizantes para aceitarem a contestação dos resultados como parte do jogo democrático, multipartidário e inclusivo, e colocarem a viabilidade política, social e económica do país acima dos interesses partidários de uma mera vitória eleitoral questionável;

 

8-Às lideranças dos partidos que protestam os resultados eleitorais, a que chamem à razão os seus membros e simpatizantes a fazerem-no de forma pacífica, seguindo os princípios consagrados na Constituição da República e os trâmites legais, sem violência;

 

9-As Forças de Segurança assumam o seu papel de protecção do cidadão, independentemente da sua filiação partidária e zelem pela manutenção da lei e ordem, sem extremismos, não intimidando nem favorecendo ninguém;

 

10-Que não falte a ninguém a coragem de fazer presente a justiça que conduza os moçambicanos à concórdia e convivência saudável como nação.

 

Transcrevi, no que julgo serem todos os seus pontos essenciais, este posicionamento dos Bispos Católicos, por duas razões: por um lado, a consciência que tenho de que nos encontramos a caminho do pico de uma crise, que não cessou de se agravar, num crescendo que agudiza a iminência de um perigo catastrófico sobre nós; por outro lado a consciência de que é justamente nesse posicionamento dos Bispos Católicos que está a chave para que o perigoso curso dos acontecimentos não se torne irreversível, e retomemos rapidamente o caminho conducente à normalidade e à paz.

 

Com efeito, a complexidade e os perigos desta crise não se compadecem com atitudes de surdez e cegueira, de obstinação, arrogância e soberba, hostis ao diálogo profícuo e necessário.

 

Ainda menos se compadecem com o refúgio em tecnicidades de ordem legal, ignorando ou violando o princípio de que a legalidade tem que assentar na verdade, e que não há legalidade sem a verdade. A legalidade que nos impede o caminho da verdade pode ser legalismo mas não é legalidade.

 

Assim como não haverá justiça sem a verdade. Donde, a paz só será paz verdadeira se for o fruto da justiça.

 

Todos sabemos que não existe senão uma ética, essa que tem na verdade o alicerce fundacional. Neste sentido a ética confunde-se com o Bem, e tudo o mais que não se identifica com ela, ou lhe é contrário, não é outra coisa senão o Mal, as forças do mal, as forças negativas, da destruição, contrárias à sociedade, ao homem, à Humanidade.

 

Ninguém está acima ou à margem da ética, como quem possa dispensar a luz do sol para ter como suficiente a luz da sua própria lanterna ou candeeiro.

 

No curso cego de uma continuação da guerra por todos os outros meios, perdemo-nos da razão e da ética que nos ditam que não há pior vitória do que aquela que se alcança, ou se arranca, contra o seu irmão ou compatriota. Porque ela só nos pode votar à desgraça da continuação da guerra.

 

Por isso este ponto de vista dos Bispos Católicos tem carácter ecuménico, e está virado para todos os cidadãos, independentemente da sua filiação religiosa, política ou partidária, da sua etnia ou nacionalidade.

 

Esta é a ética fundamental que vincula a Sociedade e o Estado, de tal sorte que é imperativo que todos, cidadãos, instituições, partidos e Estado, a tenham como ponto de partida para enfrentar e responder aos desafios que o presente processo eleitoral nos coloca.

 

«A César o que é de César, ao Povo o que é do Povo»

 

Chegados a este ponto, lancemos mão daquele ensinamento segundo o qual se deve «Dar a César o que é de César», significando isso que os cidadãos têm obrigações para com o Estado, cujo cumprimento é irrecusável. Os cidadãos pagam impostos, taxas e outras contribuições ao Estado. Porém esta não é uma relação unilateral mas contratual. É que, sendo eles cidadãos e não meros súbditos, o Estado tem em contrapartida obrigações incontornáveis para com eles. Donde que seja imperativo que «César dê ao povo o que é do povo». E entre o que «é do povo» avulta, em lugar cimeiro, respeitar e fazer respeitar a Constituição e fazer justiça aos cidadãos. E nisto se resume toda a ética, razão e justiça, e toda a lei.

 

Na situação com que nos confrontamos, a das eleições, isso significa garantir que prevaleça a vontade do povo expressa nas urnas, e não qualquer outra coisa, fruto de manipulações, de fraudes, ou de decisões tomadas por quem se refugie e enfie a cabeça nos labirintos, ou nos becos e impasses legalistas, criados para impedir ou dificultar o caminho da verdade. Com o fim de não se confrontar com a verdade da vontade expressa nas urnas, e assim passar por cima ou à margem da mesma.

 

Assumindo que «a vontade do povo é a vontade de Deus», é imperdoável agir ou interferir, a qualquer nível que seja, institucional ou pessoal, para a perverter! Ou não agir para a fazer prevalecer!

 

Assim, se César não der ao povo o que é do povo, César estará a provocar o tumulto e a revolta daqueles cidadãos, que não mais são súbditos, e que, eventualmente, em algum momento, podem reivindicar e chamar a si a soberania, de que são donos, para decidir sobre César, e para decidir sobre o seu próprio futuro. Portanto, ao fim do dia, terá sido César quem terá criado este estado de coisas, e não os cidadãos.

 

Alguns outros pronunciamentos

 

Apesar de o pronunciamento dos Bispos Católicos merecer a especial atenção que eu dei, não é o único a assinalar, deste ponto de vista ético. Com efeito, e deste ponto de vista, são para mim de destacar ainda os pronunciamentos que lemos ou ouvimos de Samora Machel Jr, de Mulweli Rebelo, e de Brazão Mazula. Qualquer deles pronuncia-se assente fundamentalmente no imperativo ético que é, essencialmente, o dos Bispos Católicos. Senão vejamos:

 

Samora Machel Jr, depois de reconhecer que «por todo Moçambique o clamor do povo é de desacordo perante os atropelos flagrantes à integridade das escolhas feitas pelos eleitores», e de declarar o seu «total desacordo e desdém aos actos antipatrióticos, profundamente antidemocráticos» que «…comprometem a paz que se deseja para todo o povo Moçambicano, independentemente das opções partidárias», e de lamentar que que «em momentos cruciais da nossa vida, como são as eleições, interesses pessoais e de grupo se sobreponham ao desiderato colectivo, pondo em causa o nome do Partido Frelimo e da nação que um dia ousamos edificar», conclui que: 1- porque aquelas «acções e comportamentos minam a confiança que os cidadãos depositam nas instituições «…é fundamental que se esclareça, antecedido de uma exaustiva investigação para identificar os responsáveis» e que «Sem excepções os culpados devem ser levados  à barra da justiça..»; 2- que para «..o Partido Frelimo, é imperativo do momento a educação e qualificação de seus membros sobre a importância do respeito aos princípios democráticos, do estado de direito e a vontade do povo expressa nas urnas.»; 3-que «A  nossa postura em relação aos futuros processos eleitorais deve ser guiada pela ética e integridade, em vez de sentimentos meramente partidários»; 4- que «Não podemos, nem devemos tolerar nas nossas fileiras, indivíduos que cometeram actos condenáveis, pois a nossa conduta não se coaduna com este tipo de postura»; 5-que «Devemos continuar a trabalhar incansavelmente para assegurar que a visão e os princípios fundamentais do partido sejam restaurados e protegidos».

 

Mulweli Rebelo, no mesmo espírito, diz-nos na sua carta: 1-«Estamos actualmente num processo de eleições, em que está claro que o partido está envolvido em actividades questionáveis, talvez por saber que está prestes a perder. Isto não é algo que pode ser ignorado ou justificado»; 2- «Pessoalmente, sinto vergonha por fazer parte de um grupo elitista que continua a apoiar cegamente um partido ignorante e arrogante, sem uma avaliação crítica das suas acções, mas pelos benefícios pessoais e vantagens…»; 3-«Não foi para isto que nossos pais lutaram»; 4- «Que legado queremos deixar para os nossos filhos? De lambebotismo? Covardia de pais que seguiram a direcção de corrupção e da bajulação em benefício próprio? Como jovens podemos questionar juntos e tomar acções que busquem mudanças, escolhas que estejam alinhadas com a justiça, a transparência e o bem-estar não apenas deste grupo»

 

Estes são dois exemplos dos jovens da geração seguinte à minha geração, a geração dos seus pais. Sem dúvida que eles se situam na continuação, e reivindicam a restauração e preservação, dos valores e princípios pelos quais os seus pais tanto lutaram e se sacrificaram. O seu posicionamento significa a sobrevivência e perenidade desses princípios e valores fundamentais e é à luz dos mesmos que analisam e avaliam a situação que vivemos. Construindo e argumentando com solidez e elevada consciência cívica e patriótica, com maturidade.

 

O ponto de convergência entre o pronunciamento dos Bispos Católicos, e agora também o do Conselho da Igreja Anglicana (que acabo de conhecer pelos resumos dos telejornais já depois de terminado este meu texto), e os pronunciamentos de Samora Machel Jr e Mulweli Rebelo, é justamente a razão e a ética que devem iluminar-nos e guiar-nos a todos, cidadãos, instituições, Estado, para fazer prevalecer a verdade da vontade expressa nas urnas, ou seja, a vontade do Povo.

 

Finalmente, e neste contexto, o posicionamento de Brazão Mazula é uma inestimável contribuição, em convergência com as que antecedem, na medida em que:1- dá-nos os instrumentos de análise que permitem compreender melhor como funciona todo o sistema, pois que se trata de um sistema e de uma engrenagem; 2- de como nada acontece acidentalmente, como se fossem actos isolados, por erro ou por iniciativa individual, mas de forma orientada, organizada, portanto premeditada.

 

Brazão Mazula, ao introduzir os conceitos de uma CNE formal e de uma CNE real, de um STAE formal e de um STAE real, ilustra como, na prática, funcionam os mecanismos daquilo que, no contexto da análise da separação dos poderes no nosso País (isto é, da ausência real da separação dos poderes e da não despartidarização do Estado), eu designei de «centralismo presidencialista absoluto».

 

E a grande vantagem de Brazão Mazula é que ele conhece bem estas instituições, esteve envolvido no momento da sua emergência, do seu problemático parto. Acompanhou depois, como nós, o seu crescimento, e constatou, também como nós outros, a forma como a cada passo, a cada alteração, seja da Constituição seja das leis pertinentes, essas instituições foram sendo ajustadas de forma útil ao sistema de «centralismo presidencialista absoluto». Para podermos entender melhor como o problema não está propriamente nelas, sem que isso signifique isentar quem quer que seja das suas responsabilidades pessoais e de cidadania.

 

Não encerrarei este texto que já vai longo para o que era minha intenção( infelizmente não tive tempo para ser mais breve), sem um apontamento crítico a algumas vozes que criticam Samora Machel Jr e Mulweli Rebelo, por falarem «fora das estruturas». Na realidade só por indesculpável distracção ou por declarada má-fé se pode fazer tal crítica. É que por um lado se fala de um «silêncio ensurdecedor» de dentro da Frelimo, mas por outro lado quando se fazem ouvir corajosamente estas vozes, que são bem de dentro da Frelimo, lançam-lhes essa crítica. Sejamos honestos…ou somos intelectuais, analistas, comentaristas, jornalistas, livres e independentes, ou então se é para exigir publicamente que os membros doa partidos não saiam da caixa e se mantenham no silêncio do «falar só nas estruturas», acho que se deviam candidatar a membros dos «grupos de choque» organizados nos partidos para manter essa «lei e ordem». E, para não me alongar mais, permito-me remeter esses críticos ao capítulo sobre o «Debate interrompido» do Volume I de «À sombra da Utopia», de José Luís Cabaço, e ao comentário que eu fiz sobre o mesmo em entrevista ao semanário Savana.

 

Teodato Hunguana

 

26.10.23

terça-feira, 17 outubro 2023 15:30

O desastre da comunicação da CNE

A CNE convocou uma conferência de imprensa, pela pessoa do seu porta-voz Paulo Cuinica, e disse que vai ser implacável contra os perpetradores de ilícitos eleitorais. Fiquei estarrecido! Eu estava convencido que a acção penal no quadro das maracutaias eleitorais fosse da alçada do judiciário. Agora surge a CNE, arvorando-se de possuir poderes de acção penal. 

 

A noção de implacabilidade remete para sectores com poderes de repressão, constitucionalmente plasmados. A Polícia, na repressão ao crime. Os tribunais na aplicação intolerável da lei penal. 

 

A CNE onde entra? Em lado nenhum. Ela, que devia ter agido à montante das ilicitudes eleitorais, vem agora querer devolver ao processo um certo retoque de integridade. Agora que alguns tribunais distritais se mostram implacáveis contra os ilícitos eleitorais denunciados pelos partidos políticos (por exemplo, a Renamo em Cuamba, e a Nova Democracia no Chokwe) vem a CNE fingir navegar na mesma onda dessa implacabilidade. 

 

E quando? Quando o apuramento distrital e a centralização provincial dos dados já foram concluídos, restando à CNE fazer o apuramento geral.

 

Compreende-se que a CNE tivesse alguma urgência de comunicar. Sua reputação está nas ruas da amargura. Ninguém lhe dá crédito. Nem os partidos nem a sociedade civil. A CNE parece uma engrenagem movida por uma batuta nas mãos da Frelimo. Então, era preciso dizer algo, mostrar à sociedade que seu trabalho também é independente. 

 

E até calhava bem. Com os tribunais agindo sobre os ilícitos eleitorais ao nível local e a Frelimo a dizer, pela voz trêmula e insegura do Roque Silva, que o partido irá acolher as decisões dos tribunais (mais o “big brother” do gringos, que estão a meter 500 milhões de USD na Zambézia, que vão novamemte beneficiar a indústria da corrupção, torcendo o nariz sobre o processo), a CNE acertaria na "mouche" com um discurso sobre implacabilidade. Mas deu errado!

 

O que a CNE devia dizer era que seria implacável contra a fraude, em sede do apuramento geral, corrigindo toda a manipulação do apuramento distrital. Era isso que devia ser dito, para renovar a esperança dos moçambicanos e dos partidos políticos, demovendo as perspectivas sombrias de violência política. 

 

Mas veio um desastre de comunicação, demonstrativo de uma CNE completamente à deriva, insegura de si, que acusou profundamente o toque do descrédito. Agora, a única forma de reparar sua monumental ‘gaffe” é mesmo através da implacabilidade contra a fraude em sede de apuramento geral. Não tem como! Deixem as ilicitudes eleitorais para o judiciário!

Por mais que tenha conquistado Nampula, e também Quelimane, embora haja forte contestação e com seus opositores alegando fraude, a Frelimo perdeu estas eleições. Por mais que tenha ganho a maioria das autarquias - e ainda a dúvida subsiste quanto a Matola e Maputo, a Frelimo perdeu em toda a linha. 

 

A fasquia da pré-campanha era ganhar tudo. Uma fasquia arrogante de quem há muito se desligou da sociedade. Aliás, o principal fenómeno na ressaca eleitoral é a comprovação de um fosso cada vez enorme entre o partido e a sociedade. O choque traumático nas hostes é de tal ordem que até os “betinhos” da Frelimo sentiram finalmente um abanão derrubando sua árvore das patacas. 

 

Em condições normais, tal como na revanche anti-Azagaia, o jota Frel teria saído ontem (13 de Outubro) à rua para mostrar ao "venancismo" que, no campeonato do barulho, também ela podia expelir decibéis também ruidosos na mesma ou em escala mais alta. Mas a turma Frelimista recolheu-se toda ela no divã (ou esteira?) do Sofrimento Ningore, para expurgar seus fantasmas e jogar às cartas do Tarot (ou búzios) tentando perceber o futuro. Como estreitar novamente o fosso? E não sucumbir em 2024?

 

O nível de desnorte é tão grande que Venâncio fez sua passeata pela Guerra Popular (12 de Outubro) sob a aquiescência tácita do sector castrense do regime. A trama está patente. Seu indicador, nada latente, é a constatação desse fosso. Nunca a Frelimo sentiu na pele toda uma sociedade lhe dando costas, reprovando a conduta dos seus dirigentes. Nunca a Renamo passeou sua gritaria, agora com algum respaldo intelectual, no coração da capital. 

 

A Frelimo perdeu e, dentro dela, o Nyussismo saiu derrotado: sua tendência autocrática foi reprovada, incluindo entre as hostes, onde a imposição centralizada de cabeças-de-lista terá demovido até militantes. 

 

A Frelimo perdeu na canibalização do eleitorado, hoje composto por grupos demográficos que já não têm medo do desconhecido (o correspondente a escolher um Muchanga para a Matola), mas que não têm medo de penalizar quem não lhes têm dado pão, emprego, educação e saúde. Quem lhes reprime nas ruas de Maputo e permite tamanha extorsão ao pouco que têm para vender e comer.

 

A Frelimo está a sentir hoje o que o colonialismo sentiu em 1974. Na altura, o povo abraçou uma Frelimo desconhecida, reprovando o monstro da repressão e das políticas desigualitárias do colonialismo. Os novos grupos demográficos olham a Frelimo como um símbolo da repressão, tal como foi na saga fúnebre do "rapper" martirizado.

 

Mas o principal responsável pela derrota da Frelimo foi mesmo Filipe Nyusi. Ele conduziu o partido para um estágio nunca visto, fazendo vigorar o culto da sua personalidade, aniquilando a discussão interna, a crítica e a autocrítica, e impondo aos cabeças-de-lista um comportamento de seguidismo, em que eles não podia ter ideias próprias porque não eram candidatos, mas apenas cabeças-de-lista, totalmente dependentes de uma máquina partidária amorfa, aversa ao debate de ideias.

 

Em Maputo, isso ajudou o discurso inflamado do "venancismo", que procurou vender uma aura de super-homem num palco onde ele não teve opositor no debate de ideias. A Frelimo continua a viver das glórias do passado, tipo sua camisola vence qualquer despique, vista-a o pequenote de Namicopo ou qualquer outra figura resgatada das catacumbas da irrelevância política. 

 

Maputo precisava de ouvir mais do Razaque Manhique é isso foi recusado. Os eleitores de Maputo precisavam de ouvir propostas concretas e isso foi considerado uma heresia no tom monocórdico do Nyussismo.

 

O mapa eleitoral está ainda por definir. Algumas ilações podem ser feitas. Na Beira, parece claro que o MDM deu uma goleada. Se isso se comprovar, é mais uma derrota do Nyussismo, aqui pela interposta pessoa do seu Secretário Geral, Roque Silva, que apostou todas as suas fichas no Chiveve. A derrota da Frelimo na Beira demonstra todo o improviso de uma campanha sem propostas concretas para os beirenses, dominada por forasteiros étnicos quando se sabe da aversão local por tudo quanto é de fora. 

 

Nampula também suscita alguns ângulos de leitura. A Frelimo canta vitória em todas as autarquias da província. Na capital nortenha parece indubitável a vitória do celsismo (CC). Embora haja evidências de mesas com mais votos que o número de inscritos, também parece claro que não houve, como se propalou, um enchimento massivo das urnas a favor da Frelimo e isso se pode demonstrar factualmente. Basta comparar as eleições de 2023 com as anteriores, de 2018. 

 

Em termos comparativos com 2018, constata-se que nestas eleições (2023), em Nampula, a Renamo obteve apenas 65 mil votos (41%); em 2018 havia ganho com 116 mil votos (61%). Quanto à Frelimo, em 2018, o partido obtivera apenas 63 mil votos (33%), mas nestas eleições sua performance subiu para 82 mil vistos (51%).  Os dados mostram que a Renamo perdeu eleitores (ou houve um desenchimento?!) e que a Frelimo obteve apenas mais 20 mil votos que em 2018.

 

A onda vermelha não conseguiu uma vitória retumbante na capital nortenha, mas obteve maioria estável. A vitória da Frelimo em todas as autarquias da província de Nampula, em terreno da oposição, é também uma vitória pessoal de Celso Correia. Do mesmo modo que a Renamo conseguiu arregimentar uma boa franja do eleitorado maputense, a Frelimo também mostrou que pode ser alternância do norte.

 

No mapa eleitoral, subsistem as incógnitas de Maputo e Matola. É óbvio que a CNE e o STAE se mostram mais uma vez capturadas. Na passada quarta-feira, e depois de um grande silêncio quanto às gravíssimas incidências da campanha eleitoral e do dia da votação, a TVM começou a divulgar resultados distritais de Maputo, completamente disparatados. Sua fonte exclusiva era o STAE, que fornecia à estação pública mapas distorcidos, martelados nos recantos secretos de suas instalações.

 

O que vai acontecer em Maputo e Matola ainda é uma incógnita. A Frelimo vai esticar longamente a sua corda para se manter controlando o capim, revelando a actual propensão autocrática, menos democrática. Eventualmente, uma crise política nacional será resolvida por via de uma negociação, como Chissano fez com Dhlakama quando a Frelimo perdeu em 1999. A questão que se coloca é:  até que ponto o "venancismo" está disposto aceitar um “quid pro quo” para abafar suas reivindicações?

 

Seja como for, é esperado que a Frelimo não insista no erro da sua cartilha repressiva e comece a captar a mensagem do eleitorado. Ao invés da táctica da avestruz, a Frelimo pode começar a ouvir o que realmente os novos grupos demográficos anseiam. Não fazê-lo pode representar o caos final em 2024. O fosso é grande e o partido deve fazer cedências e leituras (a repressão de Comiche contra os informais foi fatal) corajosas, admitindo os erros.

 

Apostar na repressão e na arrogância subjacente vai causar uma resposta: a revolta, a desobediência e a resistência. Sim. Tal como escreveram Severino Ngoenha e Filomeno Lopes no seu último ensaio:

 

“Revoltar-se (Albert Camus), resistir (Eboussi Boulaga), desobedecer (Henry Thoreau) a regimes e instituições político-económicas que legitimam a injustiça não é só um direito: é um dever.”

 

Esse dever está a ser assumido em Moçambique contra um partido elitista, capturado por famílias que partilham entre si a riqueza nacional, deixando milhares na pobreza. (Marcelo Mosse)

quinta-feira, 12 outubro 2023 17:53

Educação

É o acto de transmitir conhecimento natural dos progenitores e genitores, aos seus infantes, antes que estes atinjam a maturidade.

 

Para o efeito, os progenitores não precisam de formação específica, é conhecimento inato, ou seja, natural. Quem ensina o cabritinho, passarinho, o pinto, acabado de nascer, a comer, andar, berrar ou a piar respectivamente?

 

Da mesma maneira que os animais na selva ou no mar sabem que não devem interferir nos territórios e na alimentação uns dos outros, independentemente do seu volume, força ou capacidade.

 

Se Deus diz nos Livros Sagrados que fez o ser humano à sua semelhança, dotando-o de competências racionais e de livre-arbítrio, só podemos esperar dos seres humanos uma responsabilidade maior na educação dos seus descendentes, comparativamente com os animais ditos irracionais.

 

A Escola era originalmente o local onde os cidadãos, durante o ócio, conversavam, discutiam, trocavam ideias e experiências, cultivando-se mutuamente.

 

Pela sua relevância, decidiu-se institucionalizar a Escola de forma a maximizar a transmissão de conhecimento como forma de dotar os infantes de competências para saber fazer. Para o efeito, seleccionavam-se os melhores missionários entre os cidadãos para se encarregar dessa tão nobre tarefa.

 

Em todas as sociedades do mundo, o professor foi sempre considerado um cidadão Nobre, Digno e Admirado. As virtudes do professor não se limitavam no conhecimento, aliás, na modernidade, os professores estão muito dependentes do programa de ensino oficial.

 

O professor era o Modelo de cidadão a copiar, pelos seus princípios e valores. Através do exemplo de ser e estar, o senhor professor tinha autoridade Ética, Social e Profissional. Os seus alunos estar-lhes-iam gratos pelo resto da vida.

 

Comemoramos a Semana do Professor, com discursos politicamente correctos pela ocasião, numa altura em que o País despertou, de um sonho ilusório, de que bastava tornar a educação obrigatória e acessível, que os cidadãos aprenderiam nas escolas e seríamos uma sociedade a caminho do desenvolvimento. Paradoxalmente, ficamos a saber que, no Ministério da Educação, os responsáveis pela elaboração dos livros e manuais não os liam, nem antes, nem depois da sua produção, confiando as respectivas tarefas a entidades contratadas.

 

Mais grave é que os professores também não leram, de tal forma que alguns erros graves prevaleceram anos.

 

Como foi possível, já que existem dezenas milhares de professores que consomem a maior fatia do OGE. Será que os nossos professores também são iletrados? (sabem ler e escrever, mas não sabem interpretar), ou não cumprem com os requisitos básicos para instruir infantes, nomeadamente Princípios, Valores, Ética e Conhecimento.

 

“Ninguém dá o que não tem, nem mais do que tem”.

 

Como é possível haver inúmeros alunos na sétima classe que não sabem escrever o seu próprio nome?

 

Parafraseando ilustres professores e profissionais de ensino superior, “muitos alunos chegam às universidades iletrados”, de tal sorte que o ensino superior não pode fazer milagres, ou seja, as universidades não podem corrigir as anomalias consequentes de um ensino primário deficiente.

 

É obvio que o professor não é o único responsável nesta calamidade. Os professores ou alguns professores (muitos) são o elo mais fraco desta cadeia da suposta transmissão de Valores, Princípios e Conhecimento de saber fazer. Em última análise, quem gere o Sistema Nacional de Educação é o Governo, cuja maior herança degradativa foi dos Governos após o multipartidarismo.

 

Porque será que as instituições do Estado estão a comportar-se de forma irresponsável?

 

“Quem não sabe é como quem não vê”.

 

Os nossos gestores públicos, apesar de terem licenciaturas, não devem ter princípios, nem valores e muito menos conhecimento para compreenderem a destruição social e económica dos moçambicanos, incluindo os seus próprios filhos.

 

Porque será?

 

Os nossos supostos líderes, governantes, gestores do aparelho estatal, professores, forças de defesa e segurança, magistratura, políticos e, de forma geral, os moçambicanos não são extraterrestres, nasceram numa família.

 

Desde 1994, com as eleições multipartidárias, o engajamento político-ideológico dos nossos governos no Neoliberalismo, cujos promotores (Banco Mundial, FMI e ONU) convenceram-nos que desde que houvesse dinheiro o desenvolvimento estaria garantido.

 

Despejaram (endividando-nos) centenas de milhões de dólares americanos, corromperam os nossos princípios e valores, convenceram-nos para cumprirmos com os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (2000-2015), a passagem obrigatória na educação primária (apelidaram de acesso à educação) traria a base para uma sociedade evoluída.

 

Resultado: construímos uma sociedade medíocre, de cima para baixo.

 

As nossas famílias ensinam-nos que é preciso termos dinheiro, não importa como, se o conseguirmos, um futuro risonho aguarda-nos.

 

Consequências?

 

Somos cada vez mais empobrecidos e dependentes.

 

Ninguém é responsável, as famílias responsabilizam as escolas, as escolas os professores, os professores o governo e vice-versa, tipo “pescadinha com rabo na boca”.

 

Gostaria de ter escrito um artigo diferente, enaltecer, reconhecer e agradecer os professores, pela Honrosa Missão de educar os nossos filhos, netos e bisnetos, mas esta é a realidade lamentavelmente.

 

Não desanimem senhores professores, vocês são a nossa última esperança, comecem por educar os vossos filhos, eduquem os pais dos vossos alunos que devem cuidar dos seus filhos em casa, partilhem esses ensinamentos com os vossos superiores no Sistema Nacional de Educação e no Governo.

 

Se forem competentes e persistentes, resultados estarão visíveis na campanha eleitoral de 2043, em que teremos candidatos e eleitores letrados, uma oportunidade para invertemos o actual rumo ao abismo.

 

A Luta Continua!

 

Amade camal

sexta-feira, 29 setembro 2023 06:43

Salteadores do sepulcro

I

 

John Mac Gavin, director da mina de ouro de “Stanford Mine” na periferia de Joanesburgo estava transtornado com os resultados de produção dos últimos meses que não justificavam os investimentos por ele solicitados aos  em Londres e na cidade de Luxemburgo.

 

A mina já existia há mais de vinte anos e grande parte dos mineiros eram provenientes do país vizinho, Moçambique.

 

Desesperado, o director decidiu marcar uma reunião com os mineiros para explicar a grave situação que enfrentavam e que corriam riscos de perderem os seus empregos.

 

Carlos Mulungo, um experimentado mineiro moçambicano, trabalhava na Stanford Mine há mais de dez anos, saiu da sua terra natal, Manhiça, no sul de Moçambique na companhia de seu amigo de infância António Cossa para o eldorado em busca de melhores condições para si e suas famílias, aliás ele, era a quinta geração de mineiros da família.

 

António perdera a vida num incidente no interior da mina, não resistiu aos ferimentos causados pela queda de uma rocha na sua cabeça, o seu corpo foi transladado para sua terra natal, passaram-se seis meses desde do fatal incidente.

 

No final da tarde de uma sexta-feira decorreu uma reunião no pátio do escritório, estavam todos apreensivos sobre a decisão que a direcção tomaria, pois era sabido pelos mineiros que muitas minas que não geravam lucros acabam encerradas.

 

Estavam todos capturados pela fala do director, que se lamentava pelo rumo que a mina tomava, que certamente acabaria no descalabro.

 

Mas ele tinha interesse em salvaguardar o interesse de todos, dele inclusive, por isso pediu maior empenho na prospecção.

 

- Sei qual é o problema que acontece na mina. – manifestou inesperadamente Carlos.

 

Uma estupefectação colectiva apreendeu a atenção de todos, olharam-se num misto de admiração e desconfiança.

 

O pretenso salvador levantou-se, suspirou e pausadamente iniciou a sua fala:

 

- Temos que levar o espírito de António para casa, – afirmou convicto – Ele tem que voltar para a terra. – reafirmou sereno.

 

Depois de sua firme afirmação, um silêncio envolvente habitou o local, durou o tempo suficiente para a memória do falecido revisitar a mente dos presentes.

 

Mac Gavin largou um sorriso sarcástico influenciado pela erudição que herdara dos ensinamentos dos seus anos na Universidade de Oxford.

 

A visão místico-espiritual do mineiro não se compactuava com a sua percepção intelectual.

 

- Não me deixo corromper por atitudes pagãs. – afirmou o director seguro de si.

 

Formaram-se pequenas assembleias onde se debatia a proposta de Carlos para solucionar o problema que enfrentavam.

 

John Mac Gavin não tinha uma contraproposta convincente, por isso decidiu por um sufrágio para acalentar o mal-estar que se tinha gerado. O resultado do sufrágio foi apoio para execução do ritual para levar o espírito de António para sua terra natal.

 

24h após a realização  da votação e aceitação dos resultados, um mineiro da ala leste descobriu um filão de ouro.

 

O cepticismo do director foi suplantado pelo poder dos deuses.

 

Agora Carlos tinha por missão dar continuidade a cerimónia, precisava terminar o ritual na terra do falecido.

 

Todas as condições para efectuar a viagem foram criadas e ele partiu. No dia seguinte, chegou a Manhiça, não demorou, procurou os familiares do falecido para  efectuar-se a cerimónia de entrega do espírito.

 

Depois do intróito de apresentação dos espíritos dos antepassados da família do falecido, iniciaram o ritual com o “nyanga” a dirigir as cerimónias.

 

Inadvertidamente pelas cordas vocais do nyanga” fez-se ouvir:

 

- Obrigado por me trazeres a casa – afirmou António pelas cordas vocais do “nyanga”, mas ao som da sua voz.

 

Os desavisados alarmaram-se pelo “Kufemba” exercida pelo “nyanga”, o próprio curandeiro há muito que não era visitado por esse poder.

 

O possesso ainda confessou uma última vontade do espírito e depois cessou a sua mediunidade.

 

II

 

Dois petizes, Mário o mais velho e Benedito órfãos de pais haviam abandonado a escola para se dedicar ao serviço de tratadores de campa, para que com os ganhos adquiridos ajudarem as suas mães e irmãos.

 

Honravam contratos verbais que tinham com os seus clientes de cuidar de campas dos familiares e amigos destes.

 

Um recente túmulo devidamente ornamentado que desconheciam os seus representantes chamou-lhes atenção.

 

Um reflexo luminoso advindo de um dos objectos que ficavam na sepultura chamou atenção de Mário, movido pela curiosidade convocou o companheiro para darem uma vista de olhos.

 

O que descobriram encheu os seus quatro olhos e aguçou-lhes a ganância, retiraram os 1000 rands que estavam depositados numa chávena, Mário como o mais velho, por ter descoberto ficou com a maior fasquia e o restante para o colega.

 

Empolgados com a sua aquisição rumaram apressadamente para a loja do “monhé” na sede da vila da Manhiça para procederem o câmbio para a moeda nacional. Ali mesmo fizeram as primeiras compras, arroz, açúcar, sabão entre outros produtos.

 

Cada um foi recebido nas suas casas como benfeitor, Mário foi quem mais compras fez, e na noite desse mesmo dia preparou-se um banquete.

 

Mário apareceu para o festim junto da sua família todo bem aprumado, usava tudo novo, uma camisa colorida, calças de caqui e sapatilhas que havia comprado na loja mais concorrida da vila.

 

O frenesim inicial extinguiu-se quando o patrocinador da banga se retirou para o seu quarto movido pelo embriaguez e cansaço. Logo que se descalçou atirou-se para a cama, não demorou para começar a ressonar, sua mãe e irmão ainda riram quando o ouviram.

 

Cântico dos xiricos que debicavam restos de comida do festim da noite passada, anunciavam  a manhã que acabava de nascer.

 

Quando os raios solares adentravam pela janela, dona Ana, mãe de Mário, a muito custo despertou, saiu para varrer o quintal, os xiricos agora, num número considerável cantavam e debicavam a comida.

 

Fez-se silêncio, os pássaros  calaram-se, o som do vento leve que sacudia a ramagem das árvores também cessou, instantes depois o mesmo gemido sofrido voltou a fazer-se ouvir.

 

O instinto materno de dona Ana fez com que ela corresse para o quarto de seu filho Mário, encontrou o corpo desmedido ocupando toda a extensão da cama, as roupas romperam-se, banhas de carne extravasavam a borda da cama. O corpo franzino estava completamente inchado.

 

Ela soltou um grito, depois lágrimas banharam-lhe o rosto, soluçava enquanto chorava. De repente pela boca do moribundo saiam larvas, não se aguentou, vomitou, vomitou incessantemente.

 

O filho mais novo ouviu os gritos da mãe e correu para acudir, quando deparou com os factos pôs-se logo a vomitar.

 

O inchaço de Mário incrementava-se rapidamente enquanto sua mãe e irmão continuavam a vomitar enchendo o chão de uma amalgama malcheiroso. 

 

Pum, um estrondo fez-se ouvir, a barriga do moribundo abriu-se e as entranhas ficaram expostas, os intestinos mergulharam no vómito.

 

Dona Ana e o filho empreenderam uma correria desenfreada pelas ruas da vila, ora gritavam ora choravam. 

 

A loja do “monhé” foi fustigada por uma praga de ratos e quase todos os produtos ficaram contaminados, sem dinheiro para um novo investimento acabou arruinado.

 

Benedito o comparsa de Mário amalucou.

 

Os residentes da vila e arredores sussurravam sobre o acontecimento e temiam despertar a ira do espírito de António.

 

A vila ficou submersa num temor colectivo, as manhãs dominicais não eram mais preenchidas pelas visitas ao cemitério, os vivos coibiram-se de tal missão. Os mortos sentiram-se mais abandonados.

 

Os funerais eram realizados sob os auspícios de um curandeiro destacado para esse fim.

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